O mundo ao redor de Lucius parecia girar em um nevoeiro espesso de dúvidas. As memórias que havia visto ainda queimavam em sua mente, mas a presença de Nix diante dele era tão real quanto o calor que emanava da palma da mão dela.

    Ele a encarou.

    — A gente já se conheceu antes, não é?

    A pergunta pairou no ar, carregada de algo que nem ele mesmo sabia nomear. Nix ergueu uma sobrancelha, os olhos turquesa brilhando com uma diversão quase preguiçosa.

    — Nunca nos vimos pessoalmente — respondeu, girando uma mecha do próprio cabelo entre os dedos. — Mas sempre soube quem você era.

    Lucius franziu o cenho.

    — Então, quando me deixou ficar no navio… já sabia que eu era o príncipe de Spades?

    — É claro — ela deu de ombros, como se aquilo fosse óbvio. — Seus olhos te denunciam, sabia?

    Lucius apertou os lábios. Ela falava com tanta leveza, mas ele sentia o peso daquela resposta.

    — E você? Quem é você, de verdade?

    Nix sorriu, inclinando a cabeça para o lado, e Lucius percebeu como a sombra dela parecia se mover de forma estranha, se retorcendo ao redor dos pés como um animal inquieto.

    — Supostamente, o monstro que vai acabar com o mundo.

    Lucius cruzou os braços.

    — Você não acredita nisso, acredita? 

     Ela desviou o olhar, e ele não precisou de mais nada para entender a resposta.

    Lucius abriu a boca para dizer algo — para tentar dissipar a melancolia que dançava nos olhos dela — mas o mundo ao redor deles começou a tremer.

    A escuridão se expandiu.

    E então, eles surgiram.

    Formas distorcidas, criaturas de sombras com olhos vazios e bocas que se estendiam demais. Algumas rastejavam pelo chão, outras pendiam do nada como marionetes de um pesadelo.

    Lucius sentiu os pelos da nuca se arrepiarem.

    — O que são essas coisas?

    Nix apertou a mão dele com força.

    — Meus pesadelos.

    Ela sorriu, mas era um sorriso diferente. Dessa vez, não parecia uma brincadeira. A respiração de Lucius ficou presa na garganta enquanto as criaturas se moviam.

    Os pesadelos não tinham forma definida — eram sombras líquidas que tremulavam e se retorciam como se não pertencessem àquele mundo. Seus olhos, quando surgiam, brilhavam com uma luz doentia, e seus dentes eram apenas silhuetas afiadas na escuridão.

    Eles não deviam estar ali.

    — Nix… — ele chamou, sem tirar os olhos das aberrações.

    Ela soltou um longo suspiro, o peso da exaustão evidente.

    — Eu sei.

    Lucius sentiu a magia dela vibrar no ar, instável, errática. Mesmo assim, Nix levou uma das mãos ao cinto e puxou uma pistola prateada com gravuras detalhadas no cano. Ele só teve um segundo para se perguntar de onde ela tinha tirado aquilo antes que ela puxasse o gatilho.

    O disparo ecoou como um trovão, e o projétil brilhou em azul por um instante antes de atingir um dos pesadelos. O impacto rasgou a sombra como se ela fosse papel, mas, em vez de cair, a criatura apenas se refez, sua forma remendando-se em segundos.

    — Ótimo — Nix rosnou. — Estão teimosos hoje.

    Lucius ergueu a mão, murmurando um feitiço rápido. Chamas pálidas dançaram em seus dedos antes de dispararem contra o mesmo monstro. O fogo se espalhou, queimando a escuridão como se ela fosse combustível, e, dessa vez, a criatura gritou.

    O som era errado.Algo frio subiu pela espinha de Lucius.

    — Pelo menos agora sabemos que queimam — ele disse, tentando ignorar o arrepio.

    Mas mais deles se aproximavam. Nix torceu a boca, girando a pistola nos dedos antes de tocá-la levemente com a outra mão. A arma se dissolveu em uma névoa azulada antes de se reformar como uma lâmina curta. Lucius franziu a testa.

    — Você pode mudar os objetos de forma?

    — Contanto que tenham a mesma massa, sim — ela respondeu, testando o peso da adaga na mão. — Mas prefiro armas de fogo, sou melhor com elas.

    — E por que não usa mais magia?

    Ela chutou um dos pesadelos que se aproximava, lançando-o para trás.

    — eu tentei, quando estava te procurando. Existe um limite do que posso aqui.

    Um dos monstros saltou na direção dele, e seu corpo reagiu antes mesmo que pudesse pensar. Ergueu as mãos, e a sombra foi interrompida por uma barreira invisível antes de ser arremessada para trás por uma onda de força telecinética.

    — Fique perto de mim! — ele gritou, concentrando energia nas mãos.

    O espaço ao redor deles tremeu.

    Um segundo depois, o ar pareceu rasgar, e os monstros que estavam muito próximos foram sugados por uma fenda escura, como se tivessem sido atirados para um vazio sem fim. Nix assobiou.

    — Magia espacial? Impressionante, príncipe.

    — Pode me bajular depois — ele resmungou, puxando-a pelo pulso quando outro monstro avançou.

    Ela deslizou para trás, os pés movendo-se com precisão felina enquanto a adaga se dissolvia novamente e voltava a ser uma pistola.

    Dessa vez, seus disparos acertaram os olhos das criaturas, e as sombras estremeceram, demorando mais para se recompor.

    — Elas tem olhos… bom saber.

    Lucius sentiu um plano se formando na mente dela, e isso o preocupou. Antes que pudesse perguntar, Nix o puxou com força e murmurou algo incompreensível.

    A próxima coisa que Lucius soube foi que seu corpo começou a desaparecer. Ou melhor, se desfazer em névoa junto com o dela.

    O mundo os engoliu.

    A sensação de se desfazer em névoa foi desconfortável. Fria, como se Lucius estivesse sendo esvaziado de dentro para fora, seu corpo se dissolvendo em milhares de partículas sem peso. Ele tentou falar, mas sua voz não existia mais —apenas o eco distante de sua consciência pairava ali, perdida na imensidão da mente de Nix.

    Então, de repente, tudo se recompôs.

    Eles estavam correndo.

    Nix puxava Lucius pela mão através do nevoeiro, os pés pisando em um chão que se formava e se desmanchava sob eles. O mundo ao redor era um borrão de sombras e luz azulada, como se estivessem atravessando um espaço onde as memórias ainda não tinham forma.

    — O que diabos foi isso?! — Lucius arfou, sentindo seu corpo sólido de novo.— Isso? Só um pequeno truque de gato — Nix respondeu com um sorriso torto. — Mas não posso fazer isso por muito tempo.

    O nevoeiro atrás deles se contorceu. Sombras emergiram, silhuetas disformes com olhos vazios e sorrisos impossíveis. Os pesadelos estavam vindo.

    — Droga… — Lucius começou a conjurar um feitiço, mas Nix puxou-o com mais força.— Não adianta lutar aqui! Precisamos sair.

    Ela fez uma curva brusca e Lucius tropeçou, quase caindo. Mas então viu.

    No meio daquele vórtice de memórias havia uma fenda no espaço, brilhando como um rasgo de vidro na escuridão.

    A saída.

    — Vai dar certo? — ele perguntou, já sabendo que a resposta seria algo irritantemente vago.

    Nix apenas sorriu.

    — Só tem um jeito de descobrir.

    Sem hesitar, ela saltou.

    Lucius praguejou e foi atrás dela.

    O mundo os engoliu outra vez.

    A mente de Nix desmoronou ao redor deles, dissolvendo-se como tinta na água. O nevoeiro puxou os dois para baixo, e Lucius sentiu o impacto frio da realidade quando acordou.

    Seu corpo estava pesado. O mundo ao redor ainda girava, mas ele percebeu que estava de volta ao navio, caído no convés.

    O ar estava quente, quente demais.

    Nix estava ao lado dele, respirando com dificuldade, os olhos brilhando em um azul incandescente. O navio tremia, rangendo como se estivesse à beira do colapso.

    Lucius piscou, forçando-se a se concentrar. Precisavam consertar isso.

    Agora.

    — Vamos, Príncipe — ela murmurou, estendendo a mão com esforço.

    A pele suada, o toque trêmulo.

    Lucius a segurou. Sentiu o calor subindo pela palma, como se tivesse agarrado uma brasa viva.

    — O que diabos está acontecendo?

    Nix indicou a escotilha aberta da sala de máquinas.

    — O coração do navio… está faminto.

    Desceram juntos. Cada passo era mais quente, mais denso. Quando chegaram ao núcleo da embarcação, Lucius recuou um passo, ofuscado pelo brilho.

    Onde antes havia um motor rudimentar, agora uma árvore pulsava. Crescia entre os mecanismos, os galhos embutidos nas engrenagens, o tronco fundido ao metal e à madeira. As folhas eram translúcidas, e nelas cintilavam fragmentos de sonhos — pequenos brilhos suspensos, como se estivessem presos no momento de um desejo.

    Mas havia algo errado.

    A árvore tremia, os galhos se contorcendo. As raízes sugavam com avidez a energia ao redor, e o chão queimava sob seus pés. A pulsação mágica era instável, aguda, quase dolorosa.

    Lucius sentiu a resposta em Nix. Ela cambaleou, levando a mão ao peito.

    — Ele está consumindo só os meus sonhos — disse, ofegante. — Todos eles… sem parar.

    Lucius arregalou os olhos.

    — Por isso você está desmaiando. Está se apagando.

    Ela não respondeu, apenas fitou a árvore como se implorasse por alívio. Lucius se aproximou do tronco. O calor era quase insuportável ali, mas ele manteve a mão estendida.

    — Ei. Eu sei que você pode me ouvir. Você não precisa queimar só ela.

    A árvore pareceu hesitar. Um dos galhos se moveu, curvando-se levemente em sua direção, como se o avaliasse.— Eu também tenho sonhos. Também posso alimentar você. Divida o peso.

    O ar ao redor silenciou por um instante. Então, uma raiz se ergueu do chão, como uma serpente feita de madeira viva, e encostou suavemente no peito de Lucius.

    A conexão foi imediata — um fluxo de consciência invadiu sua mente, memórias embaralhadas, desejos antigos, lembranças do palácio, da solidão, da fuga, da liberdade buscada e nunca alcançada. A árvore o viu. E o aceitou.

    Um brilho prateado explodiu entre os dois. Nix cambaleou para trás, e o azul incandescente de seus olhos começou a esfriar, voltando ao tom natural. O espírito do navio agora tinha dois corações. E com isso, estabilizou-se.

    A árvore enraizou-se mais profundamente na estrutura, os galhos se acalmando, folhas novas brotando com um leve sussurro, como um suspiro aliviado.

    Lucius ofegou, sentindo o elo se firmar em sua essência.

    — Nós temos um pacto agora… — murmurou.

    Horas depois, Lucius despertou com o cheiro de chá amargo flutuando no ar. A cabine estava à meia-luz, o som do mar batendo suavemente contra o casco. Nix estava sentada ao lado, com os pés apoiados em uma cadeira, um pano úmido na testa dele. Seu rosto ainda trazia traços de exaustão, mas havia algo diferente. Um leve alívio, talvez.

    — Olha, a princesa acordou — disse ela, sem levantar os olhos do livro que fingia ler.Lucius pigarreou, tentando se sentar. Ela o impediu com um toque leve no ombro.— Descansa. O navio já se acalmou. Eu também. Mais ou menos.

    Ele fechou os olhos por um segundo e então perguntou, com a voz ainda rouca:

    — Por que você me deixou ficar na tripulação? Foi só porque eu sou bonito?

    Ela soltou um riso nasalado, sem ironia, sem deboche.

    — Seria um bom motivo… — murmurou. Depois, ergueu os olhos e falou com mais clareza— Mas não. Foi porque você é problema. E eu não queria problemas com a Coroa.

    Lucius sorriu, mesmo sem entender completamente se aquilo era um elogio ou uma ameaça.Então, com um suspiro cansado, Lucius passou a mão pelo cabelo e encarou o teto.

    — Eu fugi.

    Foi instintivo. A verdade, sem peso, sem floreios.

    Mas antes que pudesse continuar, a mão de Nix tampou sua boca com força.

    — Shhh. Eu não quero ouvir. — Os olhos dela estavam semicerrados, perigosos. — Eu não quero me envolver com política. Nem com fugas, coroas, segredos. Isso aqui é meu navio. Meu caos. Se você quiser ajuda, está no lugar errado.

    Lucius afastou a mão dela com delicadeza, os olhos reacendendo o seu habitual tom sedutor.

    — Mas você gosta de mim.

    Ela olhou para o lado. Fingiu pensar. Depois, deu de ombros.

    — Gosto. O que não significa que eu vá morrer por você. Ou pela sua rebelião. Ou sei lá o quê.

    Ele riu, baixo, como quem não sabia se devia acreditar.

    — Então…

     Nix se levantou, pegando a xícara de chá que descansava no criado-mudo. Estendeu para ele com um gesto suave, como se entregasse mais do que só calor.

    — Te darei um lugar pra voltar. Um canto só seu no navio. E talvez… proteção.

    Lucius recebeu a xícara com cuidado, mas era o jeito como ela o olhava — com aquela mistura de ironia e ternura que só ela sabia — que o fez sentir o peito aquecer.

    Não era amor. Ainda não. Mas também não era apenas sobrevivência. Era algo frágil, recém-nascido. Um pacto silencioso. Um abrigo mútuo. Caótico, imperfeito, sincero.

    Como tudo que realmente valia a pena.

    A luz filtrava-se pelas frestas da madeira como dedos tímidos, dourando o chão da cabine com um calor preguiçoso. O cheiro salgado do mar, misturado ao aroma de madeira envelhecida e ervas secas, preenchia o ar com uma sensação de lar

    — um lar flutuante, entre marés e silêncios.

    Lucius encostou a testa no ombro de Nix, os olhos semicerrados, tentando entender em que momento exato havia aprendido a respirar naquele espaço.

    Ela mantinha um meio sorriso, os dedos brincando com uma mecha do cabelo dele — sem pressa, sem pretensão.

    Então a porta se abriu sem cerimônia.

    — E aí? Dormiram bem, pombinhos?

    A voz de Vênus explodiu como um trovão ensolarado, preenchendo a cabine de riso e sarcasmo. Ela se escorou no batente com a segurança de quem conhece cada segredo da casa — e dos corações que nela habitam.

    Lucius se endireitou tão rápido que quase caiu da poltrona.

    — N-não foi nada disso! — começou, mas a voz falhou quando percebeu o quanto parecia culpado mesmo não sendo.

    Nix apenas arqueou uma sobrancelha, apoiando o queixo na mão com um ar debochado.

    — Dormimos sim. Como duas pedras. Quase ronquei no ombro dele — disse, sem perder a compostura.

    Vênus gargalhou, os olhos faiscando de malícia.

    — Ah, que romântico. Aposto que o navio ficou todo derretido de emoção.

    Lucius, já ruborizado até a ponta das orelhas, tentou esconder o rosto com uma mão.

    — Te garanto que ele ficou quente.

    Vênus riu.

    — Mas vim por um bom motivo. Chegamos à ilha de Mirana.

    Nix se levantou, o humor brincando nos olhos, mas algo mais profundo se firmando no peito, expectativa, talvez. Ou um pressentimento daqueles que só o mar traz.

    Ela esticou a mão para Lucius, que hesitou por meio segundo antes de aceitar, ainda um pouco corado.

    — Vamos?

    Do convés, já era possível ouvir o canto das gaivotas se misturando ao eco distante de sinos. A ilha de Mirana, com seus mistérios e promessas, aguardava.

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