As luzes douradas do entardecer escorriam pelo céu como mel morno, filtrando-se entre nuvens espessas e pintando reflexos de fogo sobre a superfície serena do mar. Ao longe, a ilha flutuante de Mirana se ergueu no horizonte — não como uma cidade feita de pedra e madeira, mas como se tivesse brotado da própria rocha, moldada por sonhos antigos e um desejo obstinado de continuar existindo.

    Casas de madeira escura se empilhavam de maneira impossível encosta acima, conectadas por pontes frágeis e escadas que serpenteavam como serpentes bêbadas. As janelas acesas observavam os visitantes como olhos desconfiados, iluminadas por um brilho amarelado e cínico. Tudo ali parecia prestes a desabar — e ainda assim, nada caía.

    O Semente do Caos rangeu sob os pés do vento enquanto se aproximava do cais principal, balançando levemente como se hesitasse em ser engolido pela ilha.

    — Eles parecem urubus. — Vênus sussurrou do convés, os olhos fixos nos piratas que se aglomeravam à margem. Homens e mulheres armados até os dentes, com sorrisos famintos e mãos nervosas.

    Lá do alto, Matthew ajeitou-se na cesta da gávea. Seu rifle descansava em posição, mas os olhos estavam alertas.

    No interior do navio, Lucius observava o movimento pela escotilha. Nix se aproximou e segurou o ombro dele com firmeza.

    — Não importa o que aconteça, você não sai. Não aqui. — Seus olhos eram graves. — Se te reconhecerem, não vai ter tempo de fugir.

    Lucius assentiu em silêncio, e ela apertou os lábios antes de se virar e subir.

    Quando atracaram, o convés se tornou um teatro de olhares afiados. Apenas Nix, Panacéia e Madoc desceram, deixando Vênus e Matthew para vigiar o navio e proteger o príncipe.

    Os três seguiram em direção ao coração da ilha — uma praça circular ladeada por pilares cobertos de musgo antigo e varandas pendendo como asas quebradas. No centro, uma mansão escura se erguia como um ninho de feras, esculpida diretamente da rocha vulcânica, negra e orgulhosa.

    Mas apenas Nix pôde atravessar os portões.

    — A rainha só quer ver você. — anunciou um guarda.

    Panacéia estreitou os olhos, mas não discutiu.

    — Vamos cuidar das compras. Não demore. — disse, lançando um último olhar protetor antes de se afastar com Madoc.

    O interior da mansão era abafado e silencioso, como se engolisse qualquer som além da própria respiração de Nix. O ar cheirava a pólvora velha, couro ressecado e sal.

    Então ela apareceu.

    Sentada em um trono de veludo gasto, cercada por mapas náuticos, espadas afiadas e garrafas vazias como promessas quebradas, estava Mirana — a Rainha Pirata.

    Seus cabelos longos eram brancos como nuvens prestes a desabar. Os olhos, vermelhos como botões de rosas. A armadura prateada reluzia não como proteção, mas como provocação.

    — Você é menor do que imaginei. — disse ela, a voz arrastando-se como uma maré traiçoeira.

    — E você é mais vaidosa do que me avisaram. — respondeu Nix, com o coração acelerado mas a voz firme.

    A gargalhada de Mirana estalou pelo salão, reverberando nos ossos da sala.

    — Então é verdade. A filha do Caos veio bater à minha porta.

    — Vim me registrar. — Nix ergueu o queixo. — Ser reconhecida como pirata

    Mirana se levantou com a fluidez de uma lâmina desembainhada. Passos lentos, quase felinos, a aproximaram de Nix como uma ameaça elegante.

    — Você acha que é assim tão simples? Traçar um nome em papel e ganhar uma bandeira? — os olhos dela ardiam. — Há rumores de que você é: A origem. A fagulha que vai incendiar o mundo.

    Nix cerrou os punhos.

    — Eu sou só uma garota com um navio e uma tripulação.

    — O Senhor do Tempo discorda. — disse Mirana.

    Sem aviso, ela atacou. A espada cortou o ar com um assobio faminto. Nix saltou para o lado, os joelhos tocando o chão. Outro golpe — mais veloz, mais cruel.

    — Se você quer navegar sob minha bandeira, vai sangrar por ela. — grunhiu a rainha, os movimentos entre o aço e a dança.

    Nix lutava mais para sobreviver do que para vencer. Aparava, recuava, respirava entre os golpes como quem bebe ar entre ondas. Mas havia algo estranho: Mirana não queria matá-la. Queria ver até onde ela iria.

    No instante em que a rainha avançou com o braço exposto, Nix girou sobre os calcanhares e, com a lâmina curta da adaga, riscou a bochecha da mulher como quem assina um contrato em carne viva.

    O sangue caiu — espesso, escuro e quente. Um só pingo.

    Mirana recuou. Passou o dedo na ferida e, ao vê-lo manchado, sorriu.

    — Você passou. — declarou, e sua voz agora soava como o trovão depois da chuva.

    — Como é? — Nix arfava, o peito subindo e descendo com força.

    — Se fosse fraca, estaria morta. Se fosse covarde, teria fugido. Mas você me feriu. Revidou. Sorriu para a morte. — ela lambeu o sangue do polegar. — Agora sim. Você é uma de nós.

    A Rainha se aproximou e estendeu a mão, não como um gesto de paz, mas de pacto.

    — Bem-vinda, Nixoria. Filha do Caos. Pirata da Tempestade.


    O mercado fervilhava sob o céu avermelhado, com o calor do entardecer grudando nos ombros como um cobertor de poeira e sal. O chão era feito de tábuas soltas que rangiam sob os passos, e os gritos dos vendedores se misturavam ao cheiro de peixe seco, couro molhado e frutas fermentadas.

    Panacéia girava entre as barracas como uma dança, empolgada diante de potes coloridos e tecidos que tilintavam com pingentes de cobre. Os olhos brilhavam mais do que os colares que examinava. Segurava a lista de suprimentos como um mapa do tesouro.

    — Você realmente tá se divertindo com isso? — Madoc perguntou, arqueando uma sobrancelha enquanto observava um peixe com dentes demais.

    — Claro! Isso é o mais próximo de uma folga que eu tive em meses. — Pan sorriu e cutucou o braço dele com o papel. — Mas se você quiser terminar logo, pode dividir comigo.

    Antes que ele respondesse, rasgou a lista ao meio com um gesto preciso e lhe entregou uma parte.

    — Você pega as peças de reposição e a farinha. Eu fico com os mantimentos perecíveis e o rum. — piscou. — Negócio fechado?

    Madoc pegou o papel e bufou, mas um leve sorriso escapou do canto dos lábios.

    — Fechado.

    Por alguns minutos, caminharam lado a lado, se perdendo entre barracas de objetos enferrujados e velas que cheiravam a especiarias doces. Panacéia parecia fazer questão de interagir com tudo — ria com os vendedores, cheirava cada fruta, avaliava cordas como se costurasse planos com os olhos.

    — Você sempre foi assim? — ele perguntou, quando ela se agachou para escolher cebolas com dedos ágeis.

    — Assim como?

    — Iluminando o lugar inteiro sem nem perceber.

    Ela o olhou surpresa, e depois riu — uma risada leve, sem defesa.

    — Não é o tipo de coisa que dizem pra mim, sabia?

    — Então os outros estão errados. — respondeu Madoc, sem ironia.

    Panacéia desviou o olhar, corando discretamente, e apontou com o queixo para a frente.

    — Vou pegar umas ferramentas naquela barraquinha. Te encontro na doca de carga em dez minutos.

    — Tá. Não se perde.

    Ela riu de novo e seguiu sozinha pela trilha de barracas, o tecido do vestido agitando-se como uma bandeira solta.

    Foi quando os risos cessaram.

    Entre as barracas, três figuras se destacavam pela postura predadora. Homens encardidos, tatuagens visíveis até o pescoço e olhos que não sorriam. Um deles se aproximou de Panacéia com um sorriso exagerado.

    — Uma fada tão bonita andando sozinha nesse mercado velho… 

    Ela parou. O sorriso sumiu. Os olhos brilharam em alerta.

    — Vocês escolheram a pessoa errada pra tentar intimidar.

    — Que nada, moça. A gente só quer ajudar. — outro pirata falou, girando uma adaga nos dedos. — Sabia que tem uma recompensa pela cabeça de vocês? Alta o bastante pra fazer qualquer um cantar.

    — E se levarmos você junto… a oferta dobra. — completou o terceiro.

    Panacéia recuou um passo, mas já estava cercada.

    Antes que pudesse reagir, um estalo cortou o ar — madeira quebrando, carne encontrando aço.

    Madoc surgiu por trás como uma sombra afiada. O primeiro pirata caiu com o rosto enterrado em um barril. O segundo tentou sacar a espada, mas nem viu a cotovelada que quebrou seu nariz. O terceiro gritou algo, mas a voz morreu com o som de um chute no estômago.

    Quando o silêncio voltou, só restavam os gemidos baixos dos agressores derrotados.

    Panacéia respirava pesado, mãos ainda em guarda. Madoc se abaixou e pegou um dos papéis amarrotados que caiu do bolso de um dos piratas.

    Era uma recompensa. Três nomes.

    Nixoria. Madoc. Mathew.

    O papel tremulava entre os dedos calejados de Madoc. Ele olhou para Panacéia, a sombra de algo antigo atravessando seus olhos.

    — Alguém nos quer mortos. E pagaria bem por isso.

    Ela assentiu, os olhos arregalados, e as palavras vieram em um sussurro:

    — Mas por que vocês?

    — Porque agora… somos dela.


    O interior do Semente do Caos exalava madeira úmida, sal e o aroma suave do café que Panacéia havia deixado antes de partir. A mesa estava posta com simplicidade, mas o clima ao redor dela era qualquer coisa menos acolhedor.

    Lucius bebia em silêncio, os dedos finos envolvendo a caneca com uma delicadeza que não combinava com o olhar perdido em algum ponto além da cabine. Mathew o encarava do outro lado, os olhos semicerrados como lâminas prestes a se fechar sobre o pescoço do príncipe.

    O silêncio era cortante, denso como névoa antes da tempestade.

    — Se continuar me olhando assim, vai acabar quebrando a própria cara. — disse Lucius, sem tirar os olhos da parede.

    Mathew não respondeu. Apenas empurrou a cadeira para trás com um rangido agressivo e se ergueu, os passos pesados sacudindo o convés quando saiu.

    Vênus, que até então apenas observava com os braços cruzados, largou a caneca com um suspiro irritado.

    — Idiotas, os dois. — murmurou, antes de seguir Mathew com a elegância feroz de quem caminha como quem caça.

    Lá em cima, o céu parecia mais escuro, mesmo sem nuvens. A gávea era um abrigo alto onde o mundo se tornava pequeno — e, naquele momento, Mathew parecia querer exatamente isso.

    Ele estava de costas quando Vênus subiu. Um cigarro aceso entre os dedos e o maxilar travado como se prendesse o próprio passado entre os dentes.

    — Vai ficar aí em cima fingindo que não quer rasgar o pescoço dele ou vai me dizer o que tem contra o príncipe? — Vênus se encostou na borda da cesta, os olhos fixos no horizonte.

    Mathew demorou a responder.

    — Ele é filho daquele maldito. — disse, enfim, entre os dentes. — O rei destruiu vidas por ambição. Usou pessoas como se fossem peças. E o filhinho dele? Fica aí sentado, mimado, com cara de quem nunca teve que escolher entre matar ou morrer.

    Vênus não respondeu de imediato. Apenas observou Mathew, como quem desmonta um enigma.

    — Engraçado. Eu pensava exatamente o mesmo de você.

    Ele a olhou com surpresa, e ela continuou.

    — “O cãozinho de Lafaiete”, foi como pensei da primeira vez que te vi. Achava que você era só mais um dos brinquedos dele. Frio, treinado, obediente.

    — Eu fui. — Mathew admitiu, com uma amargura que soava antiga. — Mas não sou mais. Estou aqui por ela. Só por ela.

    — Eu também. — Vênus murmurou, e seus olhos se encontraram no silêncio que veio depois.

    Ali, no alto da gávea, onde o vento soprava livre e o mundo parecia distante, os dois guerreiros se enxergaram — não como o que foram, mas pelo que escolheram ser agora. Sobreviventes. Protetores. Cães sem dono.

    A tensão entre eles, até então afiada, desfez-se como neblina sob o sol.

    Vênus cruzou os braços e olhou para baixo, para o convés onde Lucius ainda estava.

    — Ele ainda me irrita. Mas se ela o protege, talvez valha a pena engolir a antipatia.

    — Contanto que ele prove que merece estar aqui… — Mathew murmurou, puxando outra tragada. — Não vou deixá-lo encostar nela.

    — Nem eu.

    Por um momento, eles riram. Não como amigos — ainda —, mas como quem reconhece no outro as mesmas cicatrizes.

    E lá do alto, sob a luz morna do entardecer, os dois vigias se tornaram, pouco a pouco, cúmplices da mesma causa.


    O Semente do Caos balançava suavemente sobre as águas turvas ao redor de Mirana. O céu já vestia tons azulados e roxos, e as lanternas da cidade flutuante começavam a se acender como vaga-lumes preguiçosos.

    O primeiro a ser ouvido foi o som de passos apressados na prancha de embarque, seguido por uma voz animada:

    — Abram caminho! Estamos carregados de tesouros… e cebolas. — anunciou Panacéia, com os braços ocupados por sacolas, pacotes e um riso que preenchia o ar.

    Madoc vinha logo atrás, carregando o dobro, com a expressão cansada e uma sacola pendurada precariamente na ponta da espada embainhada.

    — Alguém avisa que a missão de suprimentos foi um sucesso… com bônus. — murmurou ele, chutando a porta da cozinha com o pé.

    Vênus apareceu para ajudar, recebendo as sacolas com um aceno de cabeça. O ambiente logo se encheu de cheiro de ervas, pão fresco e especiarias locais — uma promessa de conforto depois do caos.

    — Onde tá a Nix? — perguntou Panacéia, olhando em volta. Mas antes que alguém respondesse, passos firmes soaram no convés.

    Nix entrou no barco como uma rajada de vento decidido, as bochechas coradas, o olhar afiado.

    — Vamos pra Hearts. Agora. — ordenou, já indo em direção ao timão.

    — Cacete, o que aconteceu lá dentro? — murmurou Mathew, mas ninguém respondeu de imediato.

    Lucius apareceu na porta da cabine, curioso, mas Vênus o cortou com um gesto e passou por ele, levando as compras para a cozinha.

    Poucos minutos depois, todos estavam reunidos ali, onde o calor do fogo começava a preencher o ambiente. Vênus cortava legumes com destreza, Madoc limpava o suor da testa e Panacéia organizava os frascos de tempero.

    — Ah, certo… quase esqueci. — disse Madoc, puxando um rolo de papel do bolso e desenrolando-o sobre a mesa com um baque seco.

    Cartazes de procurados. Quatro deles.

    — “Nixoria, também conhecida como Nix, pirata de alto perigo.” Olha só… nada de “filha do Caos” — ele sorriu torto. — Agora é só “perigosa, armada e provavelmente sorrindo”. E com recompensa.

    Nix riu. Riu alto, sincera, como não fazia há dias.

    — Finalmente! Era isso que eu queria. — pegou o cartaz com as próprias mãos, os olhos brilhando como os de uma criança que acabou de ganhar um brinquedo novo. — Estou me tornando uma pirata de verdade.

    Panacéia resmungou algo como “nada pra se orgulhar”, mas estava sorrindo também. Vênus revirou os olhos, mas seus ombros estavam mais leves. E Mathew… bem, Mathew apenas cruzou os braços e disse:

    — Se você se empolgar demais, vou ter que te capturar pra ganhar a recompensa.

    — Vai precisar de uma perna nova pra isso. — rebateu Nix, piscando.

    Eles riram. Todos.

    Por um instante, o Semente do Caos não era só um navio vivo que cortava mares perigosos — era um lar. Cheio de vozes, de pratos sendo colocados à mesa, de provocações e promessas.

    E enquanto o navio começava a se afastar de Mirana, seguindo em direção a Hearts, a noite caiu sobre eles como um cobertor morno. O caos dormia por ora — mas o sonho de liberdade, esse permanecia acordado.

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