Talvez teremos dois capitulos por semana apartir de agora
Capítulo 17
O céu cinzento parecia esmagado contra o horizonte quando o Semente do Caos deslizou pelas águas fundas como um presságio silencioso. O som ritmado das ondas foi engolido por uma massa colossal de pedra: Hearts.
A cidade não fora construída — fora entalhada na rocha viva como uma oferenda esquecida aos deuses antigos. O paredão se erguia da água como um túmulo colossal, as cavernas abertas em sua base funcionando como portos naturais. Fendas estreitas e túneis escuros guiavam os barcos por entre estalactites e pilares úmidos até ancoradouros internos, onde tochas tremeluzentes iluminavam paredes gravadas com runas que o tempo quase apagou.
Era um lugar de silêncios abafados e segredos que pareciam escorrer das pedras.
Nix apoiou os cotovelos no parapeito enquanto o navio se aproximava de uma das cavernas. As velas tremiam com a mudança de ar e o casco rangia ao entrar na penumbra. Matthew, no topo da gávea, observava em silêncio, e Lucius permanecia atenta ao leme que se movia sozinho
— Nunca vou me acostumar com isso. — os olhos fixos nas sombras que se fechavam ao redor do barco.
— Parece a boca de uma besta. — murmurou Madoc, ao lado dela.
— E a gente tá entrando direto. — respondeu Nix, sem esconder o desconforto.
O navio atracou com um baque suave contra a pedra. O ar cheirava a musgo, maresia e ferrugem. Eles não foram recebidos por guardas ou comerciantes — apenas pelo eco de seus próprios passos.
Nix saltou do navio com passos rápidos, os olhos dançando entre as sombras e curvas da cidade. O frio da pedra sob os pés era compensado por algo quente dentro do peito: ansiedade boa, saudade inquieta. Os Jïa estavam ali, e isso significava que ela logo veria seus amigos.
Pensar neles a fez sorrir. Será que ele ainda usava os colares exagerados? Será que deixara crescer o cabelo como prometera? E o pequeno Nino, seu dragãozinho companheiro, ainda vivia empoleirado no ombro como um guardião impaciente?
Cruzou os corredores úmidos da cidade de pedra com passos decididos, guiada pelo som da vida. A música surgia aos poucos — primeiro como um sussurro de flautas, depois como o bater ritmado de tambores. O cheiro de especiarias começou a preencher o ar, misturado ao aroma doce de frutas cristalizadas e incensos queimando. Cores começaram a surgir também, como se um arco-íris tivesse desabrochado bem ali no centro de toda aquela melancolia cinzenta.
A feira dos Jïa.
Era um mar de tendas coloridas, tecidos bordados tremulando sob cordas presas a estacas de pedra. Joias, cerâmicas, ervas, instrumentos musicais e máscaras estavam espalhados em bancadas improvisadas, entre dançarinos com tornozeleiras sonoras e crianças correndo com dragõezinhos sobrevoando suas cabeças.
Os Jïa eram como uma flor que nascia mesmo entre as fendas mais duras.
Foi então que o viu.
No centro da praça, cercado por caixas de frutas, um tapete vermelho estendido sob os pés e uma barraca de tecidos translúcidos às costas, estava Ele. Alto, pele escura como terra molhada, os olhos verdes brilhando como jade à luz do entardecer. O cabelo agora era trançado com pequenos sinos e miçangas, e o sorriso… aquele sorriso ainda fazia o mundo parecer menos perigoso.
Sobre seu ombro esquerdo, empoleirado como se fosse a realeza, repousava um pequeno Jia: corpo alongado, escamas iridescentes e olhos dourados, atentos a tudo, Nino.
Nix não se conteve.
— Ei, Echo! — gritou, com a voz meio rouca de alegria.
Ele virou devagar, como se não acreditasse no que ouvira. Os olhos se arregalaram e, por um segundo, ficou parado como uma pintura viva.
Então correu até ela, abrindo os braços com o mesmo exagero dramático de sempre.
— Nix! Pelo céu das serpentes, olha só quem saiu do fundo do mar!
O abraço foi apertado, cheio de risadas abafadas e tapas nas costas. O pequeno dragão, curioso, esticou o pescoço para farejar os cabelos de Nix, antes de soltar um assobio agudo e satisfeito.
— Ele lembra de mim? — perguntou ela, apontando com o queixo.
— Nino lembra de tudo. — disse Echo, com orgulho. — Inclusive da vez em que você tentou dar rum pra ele.
— Ainda acho que ele teria gostado.
Os dois riram, cercados pela música e pela dança da feira. Mas logo os olhos de Echo se tornaram mais sérios.
— Não devia estar aqui. Tem olhos demais em Hearts… e rumores demais sobre você.
O sorriso de Nix murchou só um pouco.
— Vim descobrir por que estão atrás de vocês.
— Ou por que estão atrás de você também? — murmurou Echo, olhando ao redor.
Nix assentiu, o olhar já mais afiado.
— Me conta tudo.
Enquanto o sol afundava devagar entre as torres de pedra de Hearts, a luz alaranjada arranhava os muros talhados e tingia os corredores com tons quentes e melancólicos. Nix e Echo caminhavam lado a lado, o som dos passos ecoando baixo pelo túnel de volta ao porto. O pequeno Jia espreguiçava-se no ombro do amigo, as asas finas batendo de leve, preguiçosas.
— Então fiquei sabendo que virou pirata. — disse Echo, com um sorriso enviesado.
Nix deu uma risada breve, chutando uma pedrinha pelo caminho.
— Sabe como eu sou… uma hora isso ia acontecer. E com o Templo atrás da minha cabeça, as coisas só… aconteceram.
— Um bom motivo pra sair navegando por aí, pelo menos. — respondeu ele, com um tom que misturava humor e preocupação.
— E você? — ela perguntou, virando o rosto para encará-lo. — Como tem se virado?
— A gente se adapta, como sempre, Elena vai ganhar seu Jia semana que vem, depois do aniversário, se ainda tiver por ai…
— Já? Nossa parece que foi ontem que a gente brincava nas cavernas. — Ela respondeu sonhadora. — Você acha que dá pra fazer um aniversário pra ela?
— Não sei… a tensão tá crescendo. O Templo da Lua tá se tornando um problema a cada dia que passa.
— Que houve? — perguntou, mais séria agora.
Echo respirou fundo, passando os dedos por uma das trancinhas do cabelo.
— A fé nos deuses antigos tá desaparecendo. Os novos tempos, os novos impérios… ninguém mais faz oferendas como antes, ninguém conta as histórias. O Templo da Lua viu isso como ameaça… e como oportunidade.
— Oportunidade?
— Eles dizem ter encontrado um artefato. Um antigo catalisador, algo que pode trazer a deusa deles de volta. Mas o problema… é onde esse artefato está.
— Deixa eu adivinhar: A tumba do sol, a única cidade Jïa.
Echo assentiu com pesar.
— É uma das poucas terras que ainda seguem o Deus do Sol. E os Jïa protegem aquele lugar com a vida. Dizem que foi lá que o próprio sol caiu do céu uma vez. Aquele lugar é sagrado.
— E agora o Templo quer arrancar isso de vocês.
— Eles disfarçam de “missão divina”. Mas no fim, é invasão. Querem reescrever a fé com espada e sangue.
O silêncio entre eles pesou por um momento. Apenas o som do mar preenchia o ar, conforme se aproximavam da caverna onde a Semente do Caos dormia entre musgo e sombras.
— Não queria que você se envolvesse nisso, Nix. — murmurou Echo.
Ela olhou para o navio, depois para ele, o vento bagunçando seus cabelos.
— Já tô envolvida. E se tem uma coisa que aprendi com o caos… é que fugir não resolve.
Echo sorriu com tristeza, mas também com orgulho.
— É… você sempre foi uma tempestade andando.
— E você sempre foi burro por tentar me seguir.
Eles riram juntos, e o dragãozinho Jia assobiou alto, como se estivesse zombando também. Ao se aproximarem da proa do navio, Nix estendeu a mão para Echo e a apertou com firmeza sentiu os dedos calejados dele, haviam passado por muita coisa, mas agora estavam juntos.
— Vem, vou te apresentar pro pessoal. — disse ela, com um sorriso enviesado.
Subiram pela rampa improvisada, o casco do navio exalando aquele cheiro familiar de madeira molhada, resina e um perfume tênue de flor-do-sonho, que sempre parecia se intensificar quando Nix voltava para casa. Echo ergueu uma sobrancelha ao sentir o aroma, mas não comentou.
Matthew foi o primeiro a notar a presença do estranho, observando da gávea com olhos estreitos. Nix ergueu o rosto e gritou:
— Tudo certo aí em cima, Matty?
— Mais ou menos. Quem é o novo? — respondeu ele, seco.
— Um amigo. Echo, esse é Matthew, nosso vigia mal-humorado.
— Só mal-humorado? — murmurou Echo com um sorriso.
— Também é excelente com o mosquete. Só não elogia muito, senão ele se joga no mar de vergonha.
Matthew bufou e virou o rosto, mas um meio-sorriso escapou no canto da boca.
Logo em seguida, Panacéia apareceu do convés inferior, limpando as mãos com um pano sujo de graxa.
— Tem visita?
— Pan, esse é Echo. Echo, essa é Panacéia. Navegadora, engenheira, minha tia e…
— …fada má em tempo integral. — completou ela, cruzando os braços. O dragãozinho Jia emitiu um chiado curioso ao vê-la, mas Vênus apenas sorriu. — Bonitinho o seu bichinho.
— É um Jia. — disse Echo, orgulhoso. — Essa é a espécie que deu nome ao meu povo.
— Ele é menor do que eu esperava.
— Ele come sapos maiores do que você.
Os dois se encararam por um segundo e, surpreendentemente, Panacéia riu.
— Gosto dele.
— Eu também, Vamos Echo! Ainda tem mais gente que você precisa conhecer. — disse Nix, guiando-o pelo convés.
No canto, ajustando cordas com precisão quase militar, estava Madoc. A manga arregaçada deixava ver os braços fortes cobertos por cicatrizes e tatuagens de mapas apagados.
— Esse é Madoc, nosso navegador. Ele cuida da disciplina, das cordas e, basicamente, de manter o navio inteiro funcionando.
Madoc lançou um olhar avaliador a Echo, depois assentiu com a cabeça.
— Se vai ficar a bordo, não atrapalhe. Se atrapalhar, você rema. — disse, seco como sempre.
— Justo. — respondeu Echo, sem perder o humor. — Se eu remar mal, também remo?
— Você aprende rápido. — murmurou Madoc, voltando ao trabalho, mas agora com um leve brilho nos olhos.
Nix puxou Echo em direção à escotilha da cozinha, onde Vênus cozinhava com a porta aberta, deixando o cheiro de carne assada e especiarias se espalhar pelo ar. Ela estava com um avental de couro e segurava uma concha como se fosse uma arma cerimonial.
— E aqui temos a Vênus. Minha prima, cozinheira, filha adotiva da Panacéia e provavelmente a criatura mais teimosa a bordo.
— Prazer. — disse Echo, com um aceno respeitoso.
— O prazer é meu, desde que você coma o que eu fizer sem reclamar. — respondeu ela, apontando a concha em sua direção como uma ameaça amistosa.
— Ele prefere sapos mesmo. — rebateu Echo, o que fez Vênus rir.
— Sabe escolher as batalhas, pelo menos. Gosto disso.
— Vocês todas gostam dele, hein? — sussurrou Nix para Panacéia, que observava da amurada com um sorriso disfarçado.
Por fim, Nix conduziu Echo até a popa do navio. O cheiro de sal, madeira aquecida e flor-do-sonho se intensificava ali, onde a brisa passava mais livre. Entre dois mastros, uma rede improvisada balançava preguiçosamente, ocupada por Lucius. Ele estava deitado de costas, um livro aberto sobre o rosto e um dos pés descalços oscilando no ar como se estivesse dançando ao som de uma música só dele.
Ao ouvir os passos, Lucius afastou o livro com uma mão teatral e revelou o sorriso largo que parecia viver estampado no rosto. Os olhos brilhantes se estreitaram com interesse ao avistar Echo.
— Quem é o bonitão com dragão de bolso? — perguntou, já se ajeitando para se levantar.
Nix bufou, mas os lábios não escondiam o sorriso.
— Esse é o Echo. Echo, esse é o Lucius. Agora oficialmente nosso médico… e metido de nascença.
— Metido? — Lucius se ergueu com a leveza de um gato bem alimentado, descendo da rede com um giro elegante. — Eu prefiro “confiante”. — completou, estendendo a mão com um floreio e inclinando-se como se fosse beijá-la. — Bem-vindo ao Semente do Caos.
Echo arqueou uma sobrancelha, segurando a mão oferecida com firmeza, desviando educadamente do beijo com um leve sorriso.
— Agradeço. E… só um aviso: dragão de bolso ou não, ele morde.
Jia, aninhado em seu ombro, chiou baixinho, como se confirmasse com orgulho.
Lucius riu, encantado.
— Perfeito. Já temos quem cozinhe, lute, pilote e conserte o navio. Faltava alguém que mordesse. Agora sim estamos completos.
— Lucius… — começou Nix, cruzando os braços com um olhar cansado mas divertido — você consegue fazer ao menos uma apresentação sem flertar?
— Duvido muito. — respondeu ele, sem perder o ritmo. — Eu flerto com o vento se ele soprar do jeito certo. Faz parte do meu charme profissional.
— Que romântico. — murmurou ela, revirando os olhos.
— Que honesto. — devolveu ele, piscando para Echo antes de se afastar com as mãos nos bolsos e um assobio leve, como se nada mais importasse.
Echo acompanhou tudo com um sorriso sereno, os olhos verdes captando cada detalhe da tripulação — o jeito que se provocavam, os gestos automáticos de cuidado, as piadas que serviam como armaduras contra o mundo. Jia ronronava baixinho, enroscado em seu ombro como se aquele convés já fosse lar.
— Você formou um bando interessante. — murmurou ele, ainda ao lado de Nix, a voz baixa, quase respeitosa.
Ela cruzou os braços e ergueu o queixo com aquele meio sorriso que só aparecia quando ela estava orgulhosa e fingia que não.
— Eles são minha tripulação. Minha bagunça. Meu caos. — disse, e a palavra “meu” soou como um escudo e um abraço ao mesmo tempo.
Echo encarou o mar escuro por um momento, o silêncio preenchido pelo estalar das cordas e o rangido suave da madeira.
— E o que vem agora?
Nix também olhou para o horizonte. As estrelas começavam a surgir entre nuvens rasgadas, refletindo no mar como olhos atentos.
— Agora… a gente se prepara pra guerra.
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