O Cais das Lágrimas tinha uma energia própria. As tábuas gastas rangiam sob os pés, e o cheiro salgado do mar misturava-se ao odor de peixe fresco, óleo de barco e fumaça. Barracas improvisadas alinhavam-se nas ruas estreitas, enquanto barcos ancoravam e zarpavam constantemente. Para quem cresceu ali, como Nix, cada canto carregava uma memória, mas para Zander, era um labirinto desconcertante.

    — Tem certeza de que sabe onde estamos? — Nix perguntou, inclinando-se para espiar o mapa nas mãos dele.

    — Claro que sei! — Zander respondeu, tentando soar confiante, mas a expressão em seu rosto dizia o contrário.

    — Certo. Então me diga: onde estamos?

    Zander abriu a boca para responder, mas fechou de novo, soltando um suspiro resignado.

    — Talvez eu esteja… ligeiramente perdido.

    Nix deu uma risada baixa, mas antes que pudesse provocar o primo, um grito interrompeu o momento.

    — Você ouviu isso? — perguntou, já girando na direção do som.

    — Nix, espera! — Zander chamou, mas ela já havia desaparecido na esquina.

    Quando dobrou a curva, Nix encontrou uma cena inusitada. Em um beco, duas mulheres estavam cercadas por um grupo de ladrões cujos punhos brilhavam com runas de força, provavelmente roubadas, e suas facas tinham entalhes que sugavam a luz — ferramentas de pesadelo, ilegais até mesmo no cais, destinadas apenas para os assassinos da sombras de Érebo.

    A mais jovem, uma garota de longos cabelos negros e olhos roxos intensos, segurava uma espada com firmeza, protegendo a irmã com uma postura defensiva. Sua armadura de paladina parecia um contraste gritante com o cenário caótico ao redor. Ela brandiu a espada, e o metal emitiu um som de sino, desenhando um glifo dourado no ar uma magia semi-externa de Proteção Sagrada que Nix havia visto uma única vez quando ainda estava no orfanato do templo.

    — Não se aproximem! — gritou.

    A mais velha, por sua vez, parecia muito mais relaxada. Com cabelos cacheados e roupas provocantes, o cigarro entre os lábios liberava uma fumaça roxa, um feitiço do sono, “que incrível, uma maga semi-externa especializada em feitiços!” Pensou Nix, ela observava a cena escondida atrás de uma pilastra.

    — Kaelena, você está exagerando. Eles são só um bando de amadores. — a cacheada soprou a fumaça devagar, lançando um sorriso provocador para os ladrões. — Já pensaram em tentar outro trabalho? Porque vocês são péssimos nisso.

    — Amarílis! Você não está ajudando! — a cavaleira rebateu, exasperada, enquanto desviava de um ataque.

    O que avançou contra Kaelena brandia uma marreta com um núcleo de pesadelo incrustado, pulsando em vermelho-sangue. Ao golpear seu escudo, a runa de Absorção de Impacto na superfície quebrou-se, liberando uma onda de choque que tirou a paladina do chão e fez os ouvidos de Nix sangrarem. A cavaleira caiu de joelhos, a mão esmagada sob a bota do bandido.

    Enquanto isso, Amarílis observava, imóvel como uma estátua, seus olhos roxos brilhando com um feitiço, clarividência. Cada movimento dos bandidos era pré-desenhado em sua mente como linhas de um diagrama, permitindo que desviasse de um machado com um balé de passos mínimos.

    Nix suspirou baixinho. Com um movimento rápido, lançou a primeira pedra. O projétil voou certeiro e acertou a testa do ladrão com o machado. Ele parou no mesmo instante, cambaleando para trás e esfregando a cabeça.

    — Quem fez isso?! – ele gritou, olhando ao redor. Nix, ainda encostada, lançou outra pedra que acertou a mão de um dos bandidos que segurava uma faca. O objeto caiu ao chão, e o ladrão recuou, surpreso. Kaelena percebeu a ajuda e aproveitou a distração para desferir um golpe rápido com a espada, derrubando um dos atacantes e consequentemente se libertando.

    — Quem está ajudando? — a cavaleira perguntou, desviando de mais um golpe enquanto olhava ao redor.

    — Só alguém que achou que você precisava de uma mãozinha — respondeu Nix em tom casual, já preparando mais uma pedra.

    Outro ladrão tentou correr em direção a Nix, mas ela se abaixou rapidamente, pegando outra pedra e lançando-a contra o joelho do homem. Ele caiu com um baque, segurando a perna. Amarílis deu uma última tragada no cigarro antes de apagá-lo com o pé, soltando a fumaça com um sorriso.

    — Bem, isso foi divertido. Obrigada pela ajuda, querida.

    — Obrigada. Eles vivem nos causando problemas.

    — Não foi nada — respondeu Nix, se revelando. — Vocês estavam se saindo bem… mais ou menos.

    — Ei! — a mais jovem protestou, mas havia um toque de humor em sua voz.

    Nesse momento, Zander apareceu com o mapa na mão.

    — Terminou de brincar de heroína?

    — Salvei o dia enquanto você estava perdido. — Nix piscou para ele antes de se virar para as irmãs. — Vocês conhecem bem o Cais?

    — Conhecemos, sim. Nós nascemos e crescemos aqui — respondeu a mais velha, o tom de voz firme, mas gentil.

    — Ótimo. Podem nos ajudar a encontrar o templo? — perguntou Nix, inclinando levemente a cabeça. Kaelena lançou um olhar rápido para Amarílis, que apenas deu de ombros, soltando um sorriso preguiçoso.

    — Claro. Não temos nada melhor para fazer — disse Amarílis, sua voz carregada de um tom despreocupado.

    O grupo começou a caminhar pelas ruas do Cais, um lugar vivo e caótico. Barracas de madeira estavam empilhadas umas sobre as outras, oferecendo mercadorias de todos os tipos: peixes frescos, ferramentas enferrujadas, joias baratas e até mesmo itens que claramente haviam sido roubados. O cheiro de sal e óleo pairava no ar, misturado com o som constante de vozes, martelos e ondas batendo contra os pilares de madeira.

    Enquanto seguiam por um beco mais tranquilo, Nix virou-se para Kaelena, a curiosidade brilhando em seus olhos.

    — Então, você cresceu aqui? — ela perguntou, olhando ao redor como se tentasse imaginar a vida naquele lugar.

    Kaelena sorriu, mas havia algo de melancólico naquele gesto.

    — Sim. O Cais é tudo o que conhecemos. Não é fácil, mas aprendemos a sobreviver.

    — Parece desafiador. — Nix fez uma pausa, observando a expressão da outra garota. — Por que decidiu ser paladina?

    Kaelena hesitou, seus olhos roxos desviando brevemente para Amarílis, que andava alguns passos à frente. Depois de um instante, ela suspirou, sua voz ganhando um tom mais baixo e sério.

    — Amarílis sempre foi minha protetora quando éramos crianças. Sempre. Não importa o que acontecesse, ela dava um jeito de nos manter seguras, mesmo que isso significasse passar fome ou se machucar.

    Ela fez uma pausa, os dedos apertando levemente o punho da espada em sua cintura.

    — Mas um dia… um grupo de bandidos apareceu. Eu era muito jovem para entender o perigo. Amarílis enfrentou todos eles sozinha, mas… ela quase morreu.

    Kaelena parou de andar por um momento, a mão apertando a alça da espada como se precisasse daquilo para se manter ancorada à realidade.

    — Eu nunca me senti tão impotente na vida — continuou ela, sua voz quase um sussurro. — Fiquei ali, parada, sem saber o que fazer enquanto ela lutava por nós. Quando finalmente tudo acabou, ela estava caída no chão, sangrando, mas ainda assim sorrindo e me dizendo que estava tudo bem.

    Nix observava em silêncio, sentindo o peso da história nas palavras de Kaelena.

    — Foi nesse dia que prometi a mim mesma que nunca mais dependeria de outra pessoa para proteger quem eu amo. Eu precisava ser forte o suficiente para cuidar dela, assim como ela cuidou de mim.

    A garota ergueu o queixo, tentando recuperar sua postura confiante, mas seus olhos revelavam um traço de vulnerabilidade.

    — Então fiz um acordo com o templo, me tornei paladina e eles salvaram minha irmã.

    Nix sorriu, sentindo uma admiração genuína crescer dentro dela.

    — Você é incrível, sabia? — disse Nix, com um brilho sincero no olhar.

    Kaelena desviou os olhos, claramente desconcertada pelo elogio, mas não conseguiu evitar um sorriso tímido.

    — Obrigada… mas eu só fiz o que qualquer pessoa faria por sua família.

    A gata balançou a cabeça, discordando.

    — Não. Muitas pessoas teriam desistido, mas você escolheu lutar. Isso é especial.

    A cavaleira corou levemente, mas antes que pudesse responder, Amarílis interrompeu.

    — Vocês duas vão continuar trocando elogios ou vão andar? O templo não vai esperar o dia todo. — seu sorriso descontraído contrastando com o tom provocativo. — E, por falar nisso, espero que não estejam falando de mim pelas costas.

    Kaelena suspirou, revirando os olhos, mas havia um leve sorriso em seus lábios.

    — Não se preocupe, Amarílis. Você é sempre o centro das atenções, não é?

    A irmã riu, acendendo outro cigarro com um gesto rápido.

    — Claro que sim. Alguém precisa trazer um pouco de diversão para esse grupo.

    Enquanto o grupo retomava o caminho, Nix olhou para a cavaleira e sorriu de novo, dessa vez mais suave.

    — Fico feliz por ter te encontrado.

    Kaelena lançou um olhar curioso para Nix, surpresa com a sinceridade em sua voz.

    — Eu também, Nix.


    O templo finalmente surgiu à frente, separando o Cais das Lágrimas de Drakensberg , a parte rica da parte pobre do povo. Seus altos ocultos de pedra cinzenta eram decorados com runas de supressão , projetados para conter a magia dos visitantes. Apesar de imponente, o local exala serenidade.

    No interior, tapeçarias finas retratavam santos e figuras religiosas sob a luz bruxuleante das velas. O cheiro suave de incenso pairava no ar, enquanto o eco de passos ressoava pelo mármore polido. No centro, um grande altar adornado com flores e velas se erguia sob um vitral azul e dourado, cujos raios solares pintavam o chão com toneladas multicoloridos.

    Ao passarem pelos portões, Nix e Zander foram recebidos pelo bispo, um homem alto de rosto magro e expressão serena. Ele os conduziu para o interior do templo, onde o cheiro de incenso e o brilho das velas criavam uma atmosfera de solenidade.

    — Bem-vindos ao nosso humilde templo — disse o bispo, com uma reverência cortês. — Fico feliz que tenham trazido o que pedimos.

    Zander deu um passo à frente, erguendo a bolsa reforçada.

    — Aqui está o dispositivo. Onde quer que eu o instale?

    O bispo fez um gesto para que ele o seguisse.

    — Venha comigo, jovem. Vamos levá-lo ao local designado.

    Enquanto Zander acompanhava o bispo, Nix permaneceu para trás, observando as esculturas de santos e as janelas coloridas que lançavam feixes de luz colorida pelo chão de mármore.

    — Vou aproveitar para me confessar — disse Nix casualmente, cruzando os braços atrás da cabeça. Zander deu de ombros.

    — Certo, só não se meta em encrenca.

    — Eu? Encrenca? — Nix sorriu com inocência fingida antes de desaparecer por um corredor lateral. Ela caminhava pelos corredores com passos leves, os olhos explorando cada detalhe. O templo parecia maior do que ela se lembrava, mas havia algo reconfortante e, ao mesmo tempo, inquietante naquele lugar. Ao virar uma esquina, viu um grupo de paladinos conversando. Seus uniformes eram impecáveis, as espadas brilhando sob a luz das velas.

    Nix hesitou por um momento, mas então se aproximou. Um dos paladinos, um homem alto com cabelos castanhos e olhos severos, chamou sua atenção. Ele parecia muito com um amigo que amava enquanto estivera alí.

    — Ei! Gabriel, é você? — disse ela, com um sorriso que misturava nervosismo e entusiasmo. — Você me reconhece?

    O paladino virou-se para ela, o cenho franzido enquanto a observava. Por um instante, parecia confuso, mas então seus olhos se arregalaram de reconhecimento.

    — Você… — Sua voz tremeu, e ele deu um passo para trás. — Você é… o monstro!

    A palavra cortou o ar como uma lâmina. Nix ficou paralisada, sem saber como reagir.

    — O quê? — murmurou, incrédula.

    O paladino, tomado pelo pânico, sacou sua espada com rapidez.

    — Fique longe de nós, criatura amaldiçoada!

    Antes que Nix pudesse reagir, a lâmina brilhou e cortou sua bochecha. Ela sentiu o calor do sangue escorrer, mas o choque a manteve imóvel.

    — Espere! O que… Do que vc tá falando… — balbuciou, levando a mão ao rosto.

    O paladino avançou, os olhos arregalados. Nix, com o rosto ainda ardendo pela dor do corte, sentiu a pressão da confusão tomar conta de seu corpo. Ela não conseguia entender o que havia acabado de acontecer. O seu amigo a chamara de “monstro”, e a lâmina cortara sua pele com uma rapidez que ela mal teve tempo de reagir. O que ela fez de errado? O que aconteceu com aqueles tempos em que o templo era seu lar? Aquele lugar, agora, parecia sufocante e estranho, e o peso das memórias se tornava cada vez mais insuportável.

    Sem pensar, ela virou-se e correu, seus pés ressoando contra o mármore do corredor vazio. Sua respiração estava irregular, e o sangue escorria lentamente pela sua bochecha, mas o que a movia não era a dor — era a necessidade urgente de fugir, de escapar daquele olhar acusador.

    Os passos ecoaram nas paredes de pedra, e ela sentiu o frio do templo envolver seu corpo, mas não parou. As vozes de surpresa e gritos de alerta começaram a se espalhar, e os paladinos, que estavam espalhados pelo interior do templo, começaram a perceber o que estava acontecendo. Um deles gritou para os outros, alertando-os sobre a “criatura”, e Nix sentiu o pânico crescer dentro de si. Eles a estavam chamando assim. “Criatura”. “Monstro”. Palavras que a feriam, palavras que ela não podia entender.

    Ela correu sem direção, os olhos frenéticos buscando uma saída. O templo, antes familiar, parecia se estender sem fim, cada corredor um labirinto sem respostas. Atrás dela, os passos dos paladinos se intensificaram.

    — Pare!

    Ela virou uma esquina, quase tropeçando. O pânico queimou seus pulmões, mas ela não podia parar. Não queria ser tocada, não queria ser vista como algo que não entendia.

    Então, um lobo surgiu em seu caminho. Um guarda.

    Ele sacou a espada, pronto para detê-la. Seu corpo reagiu antes da mente.

    As mãos dela encontraram a garganta dele. O impacto os jogou contra a parede. Ele tentou se soltar, mas a força dela era brutal, crua, desesperada. A respiração dele tornou-se um engasgo curto, um sufocante agonizante, até que, enfim, cessou.

    Silêncio.

    O corpo caiu aos pés dela. O sangue quente manchava seus dedos. Sujava sua pele.

    Nix recuou, ofegante, o peito subindo e descendo de forma errática. Seus olhos fixaram-se no homem caído.

    Ela o havia matado.

    Os gritos dos paladinos cortaram o choque. O horror e a culpa se entrelaçaram dentro dela, mas não houve tempo para hesitar.

    Ela forçou as pernas a se moverem.

    Fugiu, o sangue ainda quente sobre sua pele, queimando mais do que qualquer palavra.

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