No convés inferior, o cheiro doce de canela se misturava ao sal do mar e ao óleo da madeira viva. Vênus girava uma colher dentro de uma panela rústica, os olhos semicerrados pelo vapor. Ao lado, Panacéia moldava um pedaço de arame com os dentes, encaixando pedrinhas coloridas como se criasse uma coroa para alguma fada desastrada — e não para Elena, que naquele dia completava seus dezesseis anos.

    A jovem dançava entre os enfeites improvisados com os outros adolescentes Jïa, suas saias coloridas girando como pétalas. Havia música em um tambor de couro e nas palmas dos que batiam ritmo; havia risos tímidos, acesos como lamparinas pequenas, mas firmes. Era uma festa discreta — pequena, contida, mas pulsante como o coração do próprio navio.

    Nix observava tudo de longe, encostada numa viga lateral. O som das batidas suaves e o rastro de luzes que os tecidos pendurados lançavam balançavam no compasso do mar. Por um instante, tudo parecia… tranquilo. E isso, talvez, era o que mais doía.

    Ela não pertencia àquela tranquilidade.

    Os ombros curvados denunciavam o cansaço que seus olhos ainda não confessavam. Cada gargalhada distante soava como um lembrete de que havia uma distância entre ela e qualquer coisa simples.

    O tambor cessou aos poucos, como uma onda que recua. As saias pararam de girar. Um silêncio reverente caiu sobre o convés inferior quando o ancião se ergueu do assento de madeira entalhada, coberto por mantos bordados com fios dourados e símbolos solares.

    Ele carregava algo embrulhado em linho escuro, que trazia preso ao peito como se fosse parte do próprio corpo. Ao lado dele, a mãe de Elena caminhava com passos suaves, os cabelos presos em uma trança grossa decorada com penas e pérolas. Seus olhos, brilhantes de orgulho, buscavam os da filha entre a multidão.

    — Elena, filha da Aurora, nascida sob o sopro do leste… — entoou o ancião, sua voz grave enchendo o espaço como incenso. — Hoje, aos dezesseis, você atravessa o limiar da infância. E como é costume entre os nossos, receberá não apenas um nome novo, mas uma alma companheira.

    Elena deu um passo à frente. As pulseiras nos tornozelos tilintaram com leveza. Apesar do sorriso, havia nervosismo em seus olhos.

    O ancião estendeu o embrulho com lentidão cerimonial. Elena esticou as mãos — e, assim que os dedos tocaram o linho, um calor inesperado subiu por seus braços. O tecido se desenrolou sozinho, revelando um ovo ovalado, de escamas douradas e veios vermelhos, como um pequeno coração pulsando.

    O calor aumentou. As escamas tremeram.

    Um som baixo — como um ronronar grave misturado a um rugido contido — preencheu o ar. O ovo brilhou. Rachaduras delicadas se abriram, tecendo linhas luminosas. Quando a casca cedeu, um ser serpentino emergiu, envolto em vapor quente.

    Era um dragão — mas não como os das lendas de destruição. Seu corpo alongado, semelhante aos dragões orientais dos antigos mitos, flutuava com elegância, envolto por uma crina de luz. As antenas dançavam no ar como fitas, e os olhos, dourados, fitaram Elena com um reconhecimento imediato.

    O pequeno ser pousou em sua palma, enroscando-se como se a conhecesse desde sempre. Um suspiro coletivo percorreu os presentes. O ancião sorriu, sereno.

    — Receba teu Jïa, Elena. Guardião dos teus dias e da tua sombra. Ele viverá contigo até que os fios da tua história se encerrem — ou até que um de vocês desista de ser quem é.

    A mãe de Elena aproximou-se, emocionada, e envolveu a filha num abraço apertado, sem dizer palavra. O dragãozinho estalou as garras, aninhando-se entre os ombros da garota, a cauda pendendo como uma fita de seda.

    A música voltou devagar, tímida no começo, depois vibrante como antes. Os sorrisos reapareceram. Alguém jogou pétalas ao ar.

    Mas no canto da sala, Nix permaneceu imóvel. O olhar preso não no dragão, nem em Elena, mas na promessa que aquela criatura representava: pertencimento.

    Algo que, no fundo, ela não sabia se algum dia teria.

    — Fugindo da festa? — perguntou uma voz baixa.

    Echo se aproximava com passos cuidadosos.

    Nix arqueou uma sobrancelha, sem encarar de imediato.

    — Estou de folga do cargo de capitã por algumas horas. Não quero recomeçar o plantão com bolo nos cabelos.

    Ele riu. Um riso pequeno, mas sincero.

    — Vem. Quero te mostrar uma coisa.

    Ela hesitou, mas o seguiu.

    Subiram juntos até o topo do navio, onde as velas dormiam sob o céu. A madeira ali era mais fria, e o vento soprava mais livre, empurrando os fios negros do cabelo de Nix para longe do rosto.

    Acima deles, o céu desabava em constelações.

    — Faz tempo que não temos paz assim — disse Echo, sentando-se com os braços cruzados sobre os joelhos. — Mesmo que seja só por algumas horas… eu já tinha esquecido como era ver minha irmã sorrindo sem medo.

    Nix não respondeu de imediato. Sentou-se ao lado dele, olhando para a dança tímida das luzes no convés.

    — Também não lembro da última vez em que estive num lugar onde ninguém gritava ordens ou sangrava na minha frente.

    O silêncio entre os dois era confortável, denso. Como se as palavras precisassem ganhar peso antes de cair ali.

    — Quando o templo invadiu nossa vila, Andressa me empurrou pro mar. Eu e Elena — contou Echo, voz baixa. — Achei que ela viria atrás. Mas nunca veio.

    Ele não chorava. Não havia tremor em sua voz. Mas cada palavra carregava a textura de algo guardado por tempo demais. Em contraponto, Nix tentava se lembrar quem era Andressa.

    — Eu passei muito tempo achando que devia ter ficado. Que devia ter morrido com ela… Minha noiva.

    — Não sabia que tinha uma noiva.

    — Não gosto de falar sobre.

    Nix encostou a cabeça nos joelhos, os olhos fixos na linha do horizonte, onde o mar tocava o céu com uma delicadeza cruel.

    — Você acredita que eu já quis que a Fallon fosse a filha do Caos? — a voz saiu baixa, quase um sussurro perdido no vento. — Só pra eu não ter que carregar tudo isso. A fé cega das pessoas. O medo delas. Essa… maldição que me engole cada vez que alguém me chama de escolhida.

    As palavras pareciam sair de algum lugar fundo, escuro, onde ela raramente deixava luz entrar.

    — Eu me sinto como uma peça que encaixaram no lugar errado. Como se alguém tivesse escrito meu nome numa história que não era minha.

    Echo não respondeu com palavras. Apenas assentiu, os olhos brilhando sob o céu salpicado de estrelas. Então puxou do cinto um pequeno tubo de bambu, fino e entalhado, e o girou entre os dedos até que ele se desdobrasse com um estalar leve.

    — Isso é uma kriya. A gente usa pra acalmar o espírito — explicou, a voz serena como as ondas abaixo. — Você sopra… assim.

    Encostou os lábios e emitiu uma nota grave, melancólica, que parecia flutuar no ar muito depois de o som cessar.

    — Tenta.

    Nix pegou o instrumento com cuidado, como se tivesse medo de quebrá-lo. Os dedos se ajustaram às marcas entalhadas com uma familiaridade estranha — quase como se aquela coisa pequena e frágil soubesse quem ela era.

    Na primeira tentativa, o som saiu rouco, feio, e ela bufou, impaciente. Na segunda, uma nota trêmula emergiu, como se carregasse em si o peso que ela não sabia soltar.

    — Nada mal pra uma pirata — comentou Echo, sorrindo de canto.

    — Olha quem fala. — Ela respondeu com uma risada curta, fraca, mas genuína. Talvez a primeira daquela noite.

    Ficou ali aprendendo com Echo a tocar a flauta, sentados no topo do mundo, respirando o mesmo ar frio, olhando estrelas que pareciam mais próximas do que nunca — e ainda assim, distantes demais para tocar.

    Quando voltaram ao convés, a festa se desfazia aos poucos, como brasas ao fim de uma fogueira — ainda havia calor, mas a luz começava a se apagar. As lanternas penduradas oscilavam preguiçosamente ao sabor da brisa, e o tambor já silenciara. Apenas risos espaçados e o cheiro doce de canela permaneciam no ar.

    Elena veio correndo, os pés descalços e leves como se o chão fosse feito de nuvens. Os olhos dela, grandes e úmidos de emoção, pareciam refletir todas as estrelas do céu.

    — Você tocou! — disse, animada, mirando Nix com uma alegria quase infantil. — Echo nunca ensina isso a ninguém!

    Nix ergueu uma sobrancelha, surpresa, mas não teve tempo de reagir. A garota já lhe estendia um pedaço de bolo de arroz, envolto num pano bordado, ainda quente pelas mãos pequenas.

    — Eu errei todas as notas — resmungou Nix, mas pegou o doce com um aceno de agradecimento.

    Elena riu, um som leve como sinos distantes.

    — Mas mesmo assim… parecia que o céu escutava.

    Nix não soube o que responder. Apenas mordeu o bolo, sentindo o calor e a textura delicada se desfazerem na língua — era doce, suave, como se alguém tivesse conseguido cozinhar um pedaço de conforto.

    Na varanda do quarto de comando, antes de se recolher, Nix se apoiou no batente e olhou uma última vez para o mar.

    Lá, flutuava uma vela lançada pelos Jïa — uma oferenda delicada, cheia de desejos para o novo ciclo de Elena.

    A luz se afastava devagar, como se deslizasse sobre a superfície com o cuidado de quem não quer acordar o mundo.

    E Nix, com as mãos ainda marcadas de fuligem e a alma cansada, desejou em silêncio que aquela chama durasse mais do que a maioria.


    O quarto de Nix cheirava a lavanda e maresia, com almofadas espalhadas pelo chão de madeira viva e cobertas penduradas como tendas improvisadas. As luzes estavam baixas, suaves, e o teto parecia respirar junto com a embarcação. Um caldeirão pequeno borbulhava em silêncio no canto, espalhando um aroma doce de chá de flores.

    — Eu devia dormir aqui sempre — resmungou Vênus, se jogando de costas em uma almofada.

    — Isso aqui é território da capitã — Nix resmungou de volta, mas um sorriso lhe escapou enquanto observava Elena tentando equilibrar duas xícaras de chá sem derramar.

    — É por isso mesmo que é mais aconchegante — retrucou Vênus, com um olhar maroto.

    Elena riu e passou as xícaras com cuidado, depois se sentou entre as duas, o rosto iluminado pela meia-luz. Havia algo solene em seus olhos, mesmo cercada de risadas e cobertores.

    — Então… — começou a jovem, cruzando as pernas. — É hoje que eu escolho meu nome.

    Nix arqueou uma sobrancelha.

    — Seu nome não é Elena?

    — É o nome da infância. Do ventre da minha mãe. Mas hoje… hoje eu escolho o nome que vou levar até o fim da vida — explicou com calma, o olhar firme. — Quando o Sol me chamar, ele vai usar esse nome. Ele será entalhado na minha alma. Por isso, depois de escolhido, ninguém mais pode pronunciá-lo.

    Vênus fez um assobio baixo, impressionada.

    — Poético e um pouco assustador.

    — Bem-vinda à fé solar — respondeu Elena, dando de ombros.

    Elas passaram boa parte da noite discutindo nomes. Nix sugeria nomes que soavam como tempestades. Vênus preferia os que lembravam fogo ou felinos. Elena ria, rebatia, às vezes anotava, às vezes franzia o nariz.

    — E se for Aszara? — sugeriu Nix, recostada contra uma pilha de travesseiros, o olhar perdido nas vigas do teto. — Soa como trovão engarrafado.

    — Soa como um feitiço que te transforma num peixe — zombou Vênus, rindo.

    — Melhor que Kafira, que você sugeriu mais cedo — rebateu Nix. — Isso literalmente significa “a que nega a fé”, Vênus. Vai deixar o Sol nervoso.

    Elena ria tanto que quase derrubou o chá.

    — Por favor, anotem todos os nomes ruins num livro. Vai virar herança de família.

    — Já temos: Zarafina, Lufira, Ekarra, Tempestra… — Vênus começou a listar nos dedos. — Nomes de bruxa, tempestade, vilã de ópera…

    — Numaia! — gritou Nix, e Elena jogou uma almofada nela.

    — Isso não é nem um nome, é um espirro!

    A conversa seguiu entre gargalhadas e zoações até que, num momento de pausa, Vênus ficou séria.

    — E se fosse algo como… Yasmina?

    O nome flutuou por alguns segundos, suave, perfumado como a flor que o inspirava.

    — Yasmina… — repetiu Elena, testando a sonoridade. — “Flor do deserto”, né?

    — E símbolo da coragem nas velhas lendas solares — completou Vênus. — Dizem que a flor só desabrocha sob o calor certo, mas quando floresce… nunca murcha.

    Nix inclinou a cabeça, pensativa.

    — É doce… mas tem força. Tipo você.

    Elena olhou para as duas. Por um instante, não sorriu. Apenas respirou fundo, como quem deixa o nome pousar. Ele cabia. Mais que isso — parecia ter estado sempre ali, esperando por ela.

    — É esse — disse, a voz baixa, segura.

    As três trocaram um olhar cúmplice. Elena então fechou os olhos e repetiu o nome para si mesma, como se o gravasse na alma. Um brilho dourado percorreu suas pálpebras, tênue, quase imperceptível.

    Quando Vênus tentou repetir, seus lábios se moveram… mas nenhum som saiu.

    — Ei! — sussurrou surpresa.

    Nix tentou logo depois — o mesmo. Silêncio mágico.

    Elena abriu um sorriso largo.

    — Funciona.

    As três riram até doer o estômago. Era tarde da noite, e o mundo lá fora parecia muito distante — sem pressões, sem guerras, sem expectativas.

    Só três garotas embaixo de cobertores, selando promessas com risos. E o nome sagrado dançando mudo entre elas, guardado pelo Sol, enquanto o navio navegava sob estrelas cúmplices.

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