Capítulo 22 – Onde a Névoa Respira
A luz da manhã chegou preguiçosa, como se também tivesse dançado até tarde.
No convés superior, a vida despertava aos poucos, embalada por risos sonolentos e passos arrastados. Vênus fora a primeira a aparecer, descabelada e com uma caneca de chá que cheirava a limão e hortelã. Trazia o cobertor ainda enrolado nos ombros e as marcas de travesseiro vincadas na bochecha. Espreguiçou-se como um gato preguiçoso e olhou para o céu com desconfiança.
— Se eu morrer hoje, que seja com outro travesseiro… esse quase me estrangulou — resmungou, mais para o vento do que para alguém.
Logo atrás, Nix surgiu com os pés descalços, os cabelos soltos ainda úmidos do banho rápido. Apesar das olheiras fundas, havia algo sereno em seu rosto — um traço de normalidade que raramente visitava seus traços. Carregava um pão doce com geleia de frutas e mastigava devagar, como se saboreasse o silêncio.
— Bom dia pra quem? — perguntou ao ver Vênus estendendo os braços ao sol.
— Pra quem dormiu em paz — respondeu ela, sorrindo.
— E você? Teve sonhos?
— Nenhum. Melhor assim.
O barulho de passos apressados ecoou da escada, e logo Elena apareceu, ofegante, com a roupa de dormir ainda desalinhada e os cabelos soltos como um rio desfeito.
— Vocês viram a tiara? Aquela que a Panacéia fez… eu juro que dormi com ela!
Vênus riu, apontando para o alto da cabeça da garota.
— Você ainda está usando.
Elena levou as mãos à cabeça e bufou, rindo de si mesma.
— Claro, típico meu.
Madoc veio por último, segurando dois baldes com água salgada para lavar o convés. A camisa branca aberta até o peito e os cabelos presos com um cordão simples denunciavam que também tinha acordado há pouco — mas, ao contrário dos outros, parecia já ter reorganizado sua mente e sua lista de tarefas.
— Os Jïa ainda dormem — informou. — E alguém vomitou perto da amurada.
— Viva a juventude — respondeu Nix, sem se comover.
Aos poucos, a manhã se consolidava. Matthew surgiu da gávea com o olhar atento, os olhos semicerrados. A caneca de café em suas mãos parecia mais uma extensão do corpo. Ele desceu como se flutuasse, observando tudo ao redor sem dizer nada.
— Tá todo mundo de bom humor, isso é um bom sinal ou um mal presságio? — perguntou, se juntando ao grupo.
— Depende — murmurou Nix. — Do que vem depois.
Por algumas horas, a calma se manteve. Elena sentou-se ao lado de Nix para perguntar sobre o leme, e Madoc discutia com Vênus sobre a arrumação dos barris de mantimentos. O convívio era quase familiar, quase simples.
E então…Veio o silêncio.
Não o silêncio comum das manhãs calmas, mas um que engoliu tudo: as vozes, os risos, o som das cordas se movendo com o vento.
Nix foi a primeira a perceber. O céu — antes limpo, de um azul quase doce — começava a se curvar em tons esverdeados. Como frutas maduras demais, prestes a azedar. O sol se tornara uma mancha pálida atrás do véu tênue que se formava no horizonte.
— Vento parou — disse Madoc, apertando os olhos.
Matthew olhou para cima, depois para o mar. E então, da gávea, murmurou com a voz mais baixa e tensa que já usara:
— É névoa.
Ninguém respondeu.
— Bruma dos Lamentos.
A respiração do navio parecia mudar. As tábuas rangiam baixinho, como se inspirassem e expirassem junto do oceano. A Semente do Caos avançava, mas era como se fosse empurrada com cuidado… ou arrastada por algo invisível.O mar ali era espesso. Quieto demais. A brisa quente demais.
— Não é normal — disse Nix.
— Nada no caminho pro Berço dos Dragões deveria ser — completou Vênus, o corpo inteiro em alerta.
Elena se aproximou instintivamente de Nix, buscando refúgio.
A névoa, quando chegou, não foi um manto gentil. Foi como uma criatura rastejante que engolisse as bordas do mundo. O convés inferior sumiu primeiro, depois as velas. A água ao redor se tornara opaca, sem horizonte. E havia um cheiro estranho — salmoura e flores mortas, como um funeral afogado.
Matthew girou o corpo devagar, as mãos firmes no cabo da adaga.— Estamos sendo observados.Nix assentiu. Também sentia.
O calor da água abaixo era insuportável agora. Quase podiam ouvir bolhas estourando sob o casco. Estavam perto. Muito perto do Berço.
E o mundo ao redor os avisava como podia.O silêncio da bruma não era apenas ausência de som. Era um silêncio vivo, do tipo que invade pelos ouvidos e se aloja sob a pele. Um silêncio que pesa. Que sussurra.
Elena foi a primeira a cambalear, levando a mão à cabeça.
— Eu… ouvi… uma voz? — sussurrou, olhando ao redor, perdida.
Nix se virou rápido, as mãos na adaga. Mas não havia ninguém — apenas aquela neblina espessa, viva, que agora escorria pelas cordas, pingava das velas como suor. O ar parecia carregado de murmúrios antigos.
— Fiquem juntos — disse ela, tensa. — Não respondam a nada que ouvirem.
— Tá brincando? — Madoc rangeu os dentes. — Eu ouvi a minha mãe. Ela morreu há doze anos.
Vênus agarrou o pulso dele.
— Isso é a Bruma. Ela cava dentro da gente. Mostra o que não queremos mais ver.
A névoa se adensava a cada segundo. E então, como uma chama acesa no escuro, as vozes começaram de verdade.
Sussurros que se tornavam frases inteiras. Palavras ditas com precisão íntima. As mentiras que alguém escondeu, as verdades que temiam.
— Nixoria… — chamou uma voz feminina. Suave. Quase maternal. Ela endureceu.— Nixoria, minha filha… — era a voz da mulher dos seus pesadelos, a que só conhecia nos fragmentos de sonhos, com cheiro de sangue e flores. A mulher que poderia ter sido sua mãe.— Você não é real — disse entre dentes. — Cala a boca.
Mas a bruma não cala. A bruma escava.
Ela sentiu o convés inclinar levemente. Ou seria sua mente?
Ao seu lado, Elena tremia. Os olhos fixos em algum ponto invisível à frente.
— Está me chamando — murmurou, assustada. — Mas ninguém além da minha mãe sabia…
Vênus estava de joelhos, as mãos pressionadas aos ouvidos. Chorava em silêncio. Madoc girava com a espada na mão, tentando atingir as sombras que nasciam da névoa. Matthew, da gávea, gritava ordens que já não alcançavam ninguém. O Semente do Caos rangia. Quase como se o próprio navio estivesse resistindo à invasão.
Nix apertou os olhos. Forçou-se a respirar.
“Isso não é real.
Isso não é real.
Isso não é…”
Mas a bruma respondeu.
“Você é um erro”, disse uma voz de criança. Sua própria voz, do passado. “Você devia ter morrido no templo. Fallon era a escolhida. Você… você é o resto.”
Ela caiu de joelhos.A sensação era como se estivessem sendo afogados em memórias que não viveram por inteiro. Ou que preferiam esquecer.
O chão do convés brilhou, por um segundo, com um símbolo antigo: espirais entrelaçadas que se expandiam e recolhiam — como um fôlego do próprio tempo. A bruma parecia reagir à marca viva do navio, enfurecida. Ela silvou.
E então, como uma resposta, algo se moveu dentro do casco da Semente.
A madeira pulsou.
Uma luz âmbar atravessou os vãos das tábuas.
A árvore no coração do navio despertava.
— O navio está lutando — murmurou Elena, os olhos arregalados. — Ele quer nos proteger.
A bruma uivou. Como um bicho ferido.
Nix se ergueu com esforço. A boca seca. Os joelhos instáveis.
— Chega — sussurrou e o navio respondeu.
Um som profundo ecoou de dentro da madeira, como uma melodia cantada por sonhos esquecidos. Era baixo, como o som de uma baleia misturado à pulsação de um tambor. A canção atravessava os corpos. Atingia a alma. Trazia à tona tudo que era verdadeiro — e queimava o que era falso.
As vozes na bruma começaram a falhar. A névoa se retorcia no ar como serpentes cegas, desfeitas pela melodia.
Vênus parou de chorar. Madoc baixou a espada. Elena respirou fundo, os olhos voltando ao foco. Matthew desceu da gávea como se acordasse de um sonho ruim.A música continuava.
A bruma gritava.
E então… cedeu.
Como se fosse sugada para dentro do mar quente, desaparecendo entre espirais de vapor.
A calmaria que se seguiu à partida da Bruma dos Lamentos era enganosa. Era o silêncio que vem antes do trovão — aquele que pesa mais que a tempestade em si.
O convés estava quieto, mas não em paz.
Nix se apoiava no mastro, ofegante. Seus olhos não focavam bem, como se ainda vissem a névoa. A árvore viva no centro do navio havia recolhido sua luz, mas não sem deixar marcas: pequenas rachaduras corriam pelo chão ao redor, como cicatrizes frescas em carne viva.
Elena sentia o peito apertado. Seus ouvidos zumbiam como se alguém ainda sussurrasse seu nome antigo — aquele que ninguém mais deveria saber. Vênus limpava o rosto sem lágrimas, lutando contra algo que não sabia nomear. Madoc estava em silêncio, de braços cruzados, o maxilar travado de quem viu um fantasma e não contou pra ninguém. Matthew subiu novamente à gávea. Era o único que ainda conseguia se mover com firmeza.
Do alto, gritou:
— Céu fechando a leste! Tem tempestade vindo!
Relâmpagos rasgaram o horizonte. Um trovão respondeu de longe, gutural, como um monstro despertando sob a água.
— Já não era ruim o bastante? — resmungou Madoc.Mas a brincadeira morreu na garganta quando o mar à frente começou a mudar.
A superfície das águas ficou manchada por nuvens de calor. Vapor subia em colunas finas e inquietas. E, num instante, um jato d’água quente explodiu a poucos metros do casco, assobiando como um dragão.
— Gêiseres! — gritou Vênus. — Estamos perto do vulcão!
O navio oscilou com violência. Outro jato subiu mais adiante, alto como um mastro. O calor no ar era sufocante — cada respiração queimava. Era um campo minado vivo, onde a própria água cuspia fogo.
— A corrente está puxando a gente pra dentro! — berrou Elena, as mãos nos cabelos.— Semente, nos tira daqui! — ordenou Nix, apertando o peito.
A árvore no coração do navio pulsou. Lentamente, o casco começou a virar de lado, tentando escapar da rota mais fervente. Mas os gêiseres pareciam cercá-los como dentes.
Matthew gritou de novo, apontando com força:
Com um rangido de madeira viva, girou. As velas se inflaram com um vento quente vindo do vulcão. Atravessaram o mar fervente com o casco tremendo, escapando por segundos de mais dois jatos que teriam partido a embarcação.
O cheiro de enxofre era insuportável. Até que, como um suspiro de alívio, o mar se acalmou.
A enseada apareceu diante deles como um abrigo inesperado: paredes de pedra fumegante e areia escura, quase negra. Mas o que chamou atenção foram as figuras na margem.
— À direita! Vejo terra! É uma costa escarpada, mas há uma enseada protegida!— Sementinha, ouve ele! — disse Vênus, agarrada a uma corda.O navio reagiu.
Eram altos, queimados de sol e vapor. Seus corpos estavam cobertos por pinturas minerais, vermelhas e ocres, como se a própria terra tivesse marcado sua pele. Carregavam lanças longas com pontas de pedra escaldada e arcos feitos de ossos e fibras trançadas.Um deles gritou algo — um som rouco, como um trovão rasgado.
— Acho que não são fãs de visitas — disse Madoc, lentamente alcançando a espada.
— Baixem as armas — pediu Nix, erguendo as mãos.
— Vai mesmo arriscar? — sussurrou Vênus.— Eles são os Escaldados.
— Se sobrevivem aqui, é porque conhecem o vulcão. E a gente precisa deles pra atravessar esse inferno.
O Semente encostou devagar na areia quente. O calor subia pelos pés como brasas invisíveis. Os Escaldados cercaram o grupo. Os arcos se mantiveram erguidos. As lanças, prontas.
Um velho se adiantou. Tinha os olhos completamente brancos, e cicatrizes que desciam da testa até o queixo. Quando falou, sua voz parecia o próprio vapor do vulcão.
— Vocês vieram pela Bruma — disse. — E não voltaram cinza.
Silêncio.
— Isso é raro.
Ele então ergueu uma mão.
Os guerreiros recuaram.
— Entrem, estrangeiros. Mas cuidado: o Berço não perdoa duas vezes.
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