O sol nascente derramava pinceladas de dourado e laranja pelo horizonte, mas o brilho suave não conseguia atravessar a atmosfera carregada dentro da mansão dos Fae. O saguão estava tomado pelo movimento, com caixas empilhadas próximas à porta e o som suave dos passos de Panacéia ecoando enquanto organizava os últimos detalhes. Suas asas de borboleta tremulavam quase imperceptivelmente, refletindo a luz em tons iridescentes.

    Ao lado dela, Vênus segurava uma pequena pilha de caixas, o rosto dividido entre ansiedade e curiosidade. Para a jovem dragão-de-komodo, a mudança parecia uma aventura, uma oportunidade de explorar algo novo.

    No topo da escada, Nix observava tudo em silêncio, as mãos segurando firmemente o corrimão. Seu coração estava pesado, como se cada batida fosse um lembrete de tudo que ela estava deixando para trás. Desde o funeral de Zander, a cidade parecia sufocante, os olhares desconfiados e os murmúrios se transformando em uma ameaça invisível. Partir não era apenas uma escolha; era uma necessidade. Antes que ela pudesse descer, o som de passos leves atrás dela a fez virar. Andréa se aproximava, as asas dobradas rente às costas, o semblante tranquilo, mas marcado por uma tristeza que parecia eterna.

    — Nix. — A voz dela era suave, quase um sussurro. — Antes de você ir, quero que leve algo.

    Nix franziu a testa, observando enquanto Andréa retirava um pequeno estojo de couro do bolso interno de sua jaqueta. A marquesa o segurava com cuidado, como se o objeto fosse tão frágil quanto as emoções que carregava.

    — O que é isso? — Nix perguntou, a voz hesitante.

    Andréa abriu o estojo e revelou um par de óculos delicados, com armações prateadas e lentes impecavelmente polidas, as pernas feitas de aço possuíam três runas antigas, uma de gravação, outra para exibir as gravações e uma menor bem discreta de armazenamento.

    — Zander fez para você. — Ela explicou, a voz carregada de um carinho quase palpável. — Ele percebeu que você estava forçando os olhos para ler ou enxergar detalhes.

    Por um momento, Nix não conseguiu falar. Os dedos trêmulos tocaram o estojo antes de pegar os óculos, segurando-os como se fossem feitos de cristal.

    — Ele… ele fez isso para mim? — Sua voz saiu embargada, as palavras quase se quebrando no ar.

    Andréa assentiu, os olhos brilhando com uma ternura que só uma mãe podia transmitir.

    — Ele sabia que você era teimosa demais para admitir que precisava de ajuda. Então, resolveu agir antes que você percebesse.

    Nix riu baixinho, mas a risada veio misturada com um soluço. Ela colocou os óculos com cuidado, piscando algumas vezes enquanto a visão se ajustava. O mundo ao seu redor parecia mais nítido, como se as bordas antes embaçadas finalmente tivessem ganhado definição.

    — Está perfeito. — Ela murmurou, a voz quase sumindo.

    Andréa sorriu, mas havia uma melancolia em seu olhar.

    — Ele queria que você visse o mundo como ele realmente é. — Ela fez uma pausa, inspirando profundamente antes de continuar. — E queria que você soubesse que, não importa onde esteja, sempre será parte da nossa família.

    Nix sentiu as lágrimas escorrerem antes que pudesse contê-las. Sem pensar, ela se aproximou e abraçou Andréa, apertando-a com força. O cheiro de flores e ferro das asas de sua tia trouxe um conforto inesperado, e por um breve momento, o mundo pareceu menos hostil.

    — Obrigada. — Nix sussurrou contra o ombro de Andréa, a voz carregada de sinceridade.

    Andréa não respondeu. Limitou-se a acariciar os cabelos longos e bagunçados de Nix, como fazia quando ela era pequena, num gesto que parecia dizer tudo o que as palavras não conseguiam. Por um instante, o peso da despedida ficou mais leve, como se o amor de sua família fosse suficiente para mantê-la firme.


    Pouco tempo depois, Morfeus a chamou para um dos salões vazios da mansão. O ambiente estava silencioso, exceto pelo eco dos passos de ambos no chão de mármore. Ele fechou as portas com cuidado e voltou-se para a filha, o olhar firme, mas carregado de ternura.

    — Antes de você partir, há algo que preciso te ensinar. — Sua voz era grave, mas havia um calor reconfortante nela. — Algo que pode te ajudar a começar de novo.

    Nix franziu o cenho, a curiosidade misturada com incerteza, mas assentiu e seguiu Morfeus até o centro do salão. O espaço parecia maior naquele momento, quase como se as paredes houvessem recuado para acomodar o peso do que estava por vir. — A habilidade de mudar de forma está no nosso sangue. Diferente da magia interna que não pode mudar a estrutura óssea do usuário, a nossa pode. — Ele começou, os braços cruzados, enquanto seu olhar dourado parecia penetrar até o fundo de sua alma. — É uma herança que você carrega. Agora, está na hora de aprender a controlá-la.

    Antes que ela pudesse perguntar qualquer coisa, Morfeus fechou os olhos. Nix prendeu a respiração enquanto o corpo do pai mudava diante dela. As orelhas felinas desapareceram, assim como a cauda, e a postura dele tornou-se completamente humana. Seus olhos, no entanto, permaneceram os mesmos, brilhando com aquela intensidade inconfundível.

    — Agora é a sua vez. — Ele disse, a voz mais suave, retornando ao seu eu normal. — Feche os olhos e se concentre. Pense em quem você quer ser.

    Nix hesitou. A ideia de mudar parecia ao mesmo tempo libertadora e assustadora. Mas respirou fundo, fechando os olhos e deixando que as palavras do pai a guiassem. Aos poucos, sentiu algo se mover dentro de si, como um rio subterrâneo alterando seu curso. Era estranho, mas não desconfortável, como se seu corpo estivesse apenas descobrindo um caminho que sempre existira.

    Quando abriu os olhos, percebeu que as orelhas e a cauda haviam desaparecido. Seu reflexo em um espelho próximo mostrava uma versão dela que parecia mais… humana.

    — Eu consegui? — Ela perguntou, a voz carregada de descrença.

    Morfeus sorriu, orgulhoso.

    — Conseguiu.

    Por um momento, Nix ficou em silêncio, observando a nova versão de si mesma. Então, sem aviso, pegou uma tesoura que estava sobre uma das mesas próximas e começou a cortar o cabelo, os fios longos caindo ao chão em cascatas escuras.

    — O que você está fazendo? — Morfeus perguntou, surpreso.

    — Quero deixar para trás quem eu era. — Ela respondeu, sem parar. — É hora de mudar.

    Ele observou em silêncio, o rosto indecifrável enquanto ela trabalhava. Quando terminou, seus cabelos estavam curtos e desalinhados, revelando mais do rosto dela, como se aquela fosse a verdadeira Nix finalmente emergindo. Ela se virou para ele, esperando alguma reação.

    Morfeus sorriu, um sorriso cheio de orgulho e ternura.

    — Você ainda parece minha filha. — Ele disse, aproximando-se. — Acho que vou fazer o mesmo.

    Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, ele fechou os olhos novamente e deixou sua forma felina para trás, assumindo uma aparência completamente humana. Era a primeira vez que ela o via assim, e a mudança parecia tanto simbólica quanto real.

    — Agora somos iguais. — Ele disse, a voz carregada de significado.

    Nix o encarou por um momento, antes de um pequeno sorriso hesitante surgir em seus lábios. Pela primeira vez em dias, sentiu algo que se parecia com esperança, uma centelha tímida, mas suficiente para aquecer o peito.


    Mais tarde, quando o grupo se reuniu no pátio da mansão, o clima de despedida pairava pesado no ar. O céu nublado ameaçava chuva, refletindo o humor melancólico do momento. Panacéia se aproximou de Nix, suas asas de borboleta reluzindo sob a luz pálida do dia.

    — Está pronta? — Perguntou, pousando uma mão firme e reconfortante no ombro da sobrinha.

    Nix assentiu, mas seu olhar estava distante, fixo no horizonte como se buscasse algo que não sabia definir.

    — Eu sei que você está com medo, e eu também estou. — Panacéia começou, sua voz firme, mas carregada de ternura. — Mas conversei com Andréa e Morfeus…

    — E se eles me encontrarem lá? — Nix murmurou, a preocupação evidente em cada palavra.

    Panacéia inclinou-se ligeiramente, até que seus olhos estivessem no mesmo nível dos da sobrinha.

    — Então terão que passar por mim primeiro. — Um sorriso determinado curvou seus lábios, e suas asas se abriram levemente, brilhando como um escudo. — Além disso, Vênus estará conosco. Não somos fáceis de derrubar, Nix.

    Por um momento, o silêncio se instalou entre elas, pesado, mas não desconfortável. Nix finalmente assentiu, um lampejo de aceitação cruzando seu rosto.

    — Tudo bem. Eu vou tentar.

    Sem dizer mais nada, Panacéia a puxou para um abraço apertado. Suas asas se dobraram em torno de Nix, leves como um casulo, como se quisessem protegê-la de todo o mal do mundo.

    — É só disso que precisamos: que você tente.

    Nix não respondeu, apenas fechou os olhos e permitiu que o calor daquele momento a confortasse. Quando o abraço se desfez, ela percebeu que todos já estavam prontos para partir.

    Pouco depois, o som das rodas da carruagem ecoou pelo pátio de pedra, acompanhando o murmúrio distante do vento que anunciava a chuva. Nix observou a mansão dos Fae se afastar pela janela, cada detalhe gravado em sua memória. As torres elegantes, as janelas de vidro colorido, os jardins que ela tanto amava… tudo parecia diferente agora, tingido pela despedida.

    As memórias apertavam seu peito, mas, ao ajustar os óculos que Zander havia feito para ela, algo mudou. O mundo do lado de fora, agora mais nítido, fazia parecer que ele estava ali com ela, sorrindo do jeito tranquilo que ela tanto admirava. Ela tocou a runa de gravação, queria guardar uma última vez aquela visita.

    A primeira gota de chuva escorreu pela janela, seguida por outras, como se o céu também se despedisse. Nix recostou-se no assento, sentindo o balanço da carruagem enquanto o som das rodas no cascalho dava lugar ao ritmo mais suave da estrada.

    — Vai ficar tudo bem. — Panacéia disse, do outro lado, sua voz um lembrete constante de que ela não estava sozinha.

    Nix respirou fundo e olhou para frente, onde o horizonte cinzento desaparecia na neblina da chuva. O futuro era incerto, mas, pela primeira vez, ela sentiu que poderia encará-lo. Um passo de cada vez.

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