Prólogo
— Por que ninguém pode adentrar aquele lugar, senhor? — indagou Shayax Skaara, esfregando as mãos para afastar o frio que permeava a floresta dos homens lagartos.
— Ora, o que você acha? Os anciãos proibiram a entrada, e nós obedecemos — retrucou Vorsashi Kirdel, carrancudo, com o descanso interrompido por aquela questão.
A atitude de Shayax trouxe um gosto amargo para Vorsashi. Após horas de treino intenso, ele finalmente vislumbrava uma chance de descansar na floresta fria, mas Shayax o interrompeu.
Shayax poderia ter consultado um ancião para obter respostas, e não havia necessidade de permanecer ali. O treinamento havia acabado, e ele estava livre para voltar para casa, mas insistiu em ficar para a noite.
A desculpa “Quero me acostumar mais com o frio” soou frágil diante da realidade.
— Você entende que eu preciso descansar, não é? — perguntou Vorsashi, deitado na grama, onde a ausência de pedras oferecia algum conforto.
— Sim, senhor… — respondeu Shayax, meio constrangido ao perceber a irritação do mentor.
Nas semanas de treinamento sob Vorsashi, Shayax aprimorou suas habilidades de combate. Mais do que isso, passou a observar melhor o homem que o instruía.
Agora, Shayax reconhecia nuances no rosto de Vorsashi e mudanças sutis em sua voz. Vorsashi raramente perdia a paciência, mas tinha limites e não hesitava em repreender o aprendiz quando necessário.
— Já que perguntou… — murmurou Vorsashi. Os olhos de Shayax brilharam, mas logo o entusiasmo se apagou ao ouvir a resposta seca:
— Não sabemos.
A desilusão tomou conta do jovem.
— Mas, senhor, você é um guerreiro incrível. Por que os anciãos não compartilham o motivo? — insistiu Shayax, acreditando que a posição de Vorsashi garantisse acesso à informação.
Vorsashi bufou, denotando cansaço.
— Ah… Desculpe, senhor. Não quero atrapalhar seu sono.
— Responderei apenas a isso. Depois, durma — ordenou Vorsashi.
Shayax, recostado em uma árvore, sentiu um arrepio antes de se deitar rápido, usando as mãos como travesseiro improvisado.
Enquanto aguardava a resposta, Shayax observava as costas largas do mentor, marcadas por cicatrizes.
— Os anciãos guardam segredos por um motivo. Nossa obrigação é obedecer, pois eles acumulam sabedoria ao longo dos anos. — explicou Vorsashi. — Agora, durma. Teremos um longo dia de treino amanhã.
— Sim, senhor! — respondeu Shayax sem demora.
A noite fria deu lugar ao sol da manhã. Mesmo sem a resposta que queria, Shayax se sentiu aliviado por ter expressado sua inquietação.
Conversas sobre o buraco eram proibidas na tribo. Shayax hesitou antes de perguntar. Seus pais, quando indagados, apenas o proibiram de tocar no assunto, ameaçando puni-lo se insistisse. Por que o desejo de conhecer era tratado com tanto desdém?
O elogio de seu mentor pela melhora com a espada trouxe alegria. O esforço no treinamento começava a render frutos. Homens lagartos eram, por natureza, guerreiros que treinavam sem cessar para enfrentar os perigos da floresta e além.
Ursos, lobos, javalis selvagens eram apenas alguns dos desafios fora do território seguro. A vida de guerreiro homem lagarto exigia busca constante por excelência. Tornar-se um herói para o povo, mesmo após a morte, era o objetivo.
Shayax aspirava à mesma glória que seus pais perseguiam na grande tribo. Pedir treinamento a um guerreiro mais experiente era comum entre os homens lagartos, e a conexão de seu pai com Vorsashi facilitou o contato.
As visitas de Vorsashi à casa de Shayax não eram apenas sociais; eram a apresentação de um possível aprendiz. Lembranças de seus pais o encorajando nos treinos e os sorrisos orgulhosos ecoaram em sua mente antes de adormecer. O calor dessas memórias afastou o frio da noite.
⧫⧫⧫
O sol ergueu-se pela manhã, inundando a floresta com sua luz vital e dissipando a escuridão que, durante a noite, trazia a sensação de morte iminente. A casa ficava diante da floresta densa, mas mesmo as imponentes árvores não barravam os raios solares que atravessavam a janela.
A luz alcançou o quarto, iluminando metade do rosto de Tiko. Ele levantou a mão em um gesto involuntário para bloquear o brilho incômodo. O jovem elfo negro murmurou baixo e virou-se na cama, afastando-se do ponto iluminado.
Ao abrir os olhos, ainda sentia-se desnorteado e demorou alguns instantes para despertar por completo. Sentou-se na cama e bocejou, alongando os músculos adormecidos. Levantou-se e caminhou até um caixote próximo à porta, onde guardava suas roupas limpas.
Sem dificuldades, abriu o caixote e pegou uma muda simples. Vestiu o calção branco de linho, um hábito matinal, antes de sair do quarto.
Para afastar o resto do sono, jogou um pouco de água parada de uma pequena bacia sobre o rosto. Esfregou as mãos molhadas na pele e secou-se com os antebraços. Depois, agachou-se, colocou as mãos afastadas no chão e alinhou os pés, mantendo a coluna esticada.
Iniciou uma série de flexões para despertar o corpo. Os exercícios revitalizaram seus músculos e completaram o despertar após o toque refrescante da água.
Tiko era um jovem cuja presença impunha respeito e desconfiança em igual medida. Havia algo em sua postura rígida e olhar penetrante que fazia os outros desviarem o caminho ou manterem distância.
Parecia carregar um peso invisível nos ombros, algo que se refletia em sua expressão sempre séria e na frieza cortante com que respondia a qualquer palavra dirigida a ele.
Sua personalidade agressiva e distante não deixava margem para aproximações, criando ao seu redor um ar de ameaça silenciosa, como a lâmina de uma adaga oculta sob um manto.
Seus olhos pequenos e afiados eram como fendas de obsidiana, escuros e insondáveis, mas ainda assim pareciam conter uma chama oculta, um desafio inabalável contra tudo e todos.
O contorno de sua boca era firme, quase rígido, como se esculpido em pedra, raramente exibindo qualquer sinal de suavidade ou emoção. Para muitos, seu rosto não era apenas sério — era o retrato da impassividade de alguém que já enfrentara a escuridão e emergira mais endurecido.
Seus cabelos, longos e prateados como fios de luz fria, caíam em cascatas ao redor de seus ombros, criando um contraste impressionante com sua pele de um tom marrom-escuro profundo, uma herança distinta de seu sangue élfico.
Cada fio parecia capturar a luz de forma espectral, destacando-se ainda mais contra a sombra de sua pele, como prata líquida derramada sobre bronze envelhecido.
Os olhos, completamente negros, eram como poços sem fundo, intimidantes em sua ausência de cor e refletiam a herança dos elfos negros — uma raça conhecida por sua conexão com o mistério e o perigo. Havia algo quase hipnótico em seu olhar, como se desafiasse quem ousasse encará-lo a descobrir o que se escondia por trás daquela máscara fria e calculista.
Tiko carregava consigo o ar de um caçador — alerta, perigoso e letal. Não era alguém a ser subestimado, e sua mera presença parecia um aviso silencioso para quem ousasse cruzar seu caminho.
— Acordou cedo de novo, Tiko? Vai caçar? — perguntou Goubzedh Ulra, o verdadeiro dono da casa, um elfo idoso que havia acolhido Tiko meses antes.
GolbZedh era um elfo idoso de aparência frágil, com o corpo curvado como um galho retorcido pelo peso dos anos.
Sua pele fina e enrugada lembrava pergaminhos antigos, marcados pelo tempo, e seu rosto era uma tapeçaria de linhas profundas, principalmente ao redor dos olhos redondos e claros, que pareciam guardar séculos de histórias não contadas.
Esses olhos, apesar do desgaste evidente da idade, brilhavam com uma luz gentil e acolhedora, transmitindo a sensação de sabedoria e serenidade.
Seu nariz, longo e encurvado como o bico de uma ave de rapina, dominava o centro do rosto, enquanto a boca pequena e fina, quase sempre retraída em um sorriso discreto, suavizava a imponência do nariz.
Suas orelhas, pontudas e finamente esculpidas, destacavam sua ancestralidade élfica, mesmo que estivessem levemente inclinadas para baixo, denunciando o peso dos anos.
Vestia-se de maneira humilde, com roupas gastas e desalinhadas, que pareciam pertencer a alguém duas vezes maior que ele. Sua camisa, feita de linho simples e desbotado, estendia-se até os joelhos, os punhos largos dobrados sobre os pulsos finos.
A calça, costurada à mão e repleta de remendos, era sustentada por um cinto de couro rachado, apertado ao ponto de parecer um laço. Os tecidos, embora limpos, exalavam um ar de modéstia e sobrevivência, como se cada fio contasse a história de um longo caminho percorrido.
Mesmo em sua aparência modesta e envelhecida, havia algo em GolbZedh que inspirava respeito – talvez a dignidade tranquila de quem já viu o nascer e o pôr do sol incontáveis vezes, mas ainda carrega a esperança de mais um amanhecer.
Nos pés, carregava sapatos velhos e gastos, com solas tão finas que pareciam ter enfrentado mil jornadas por trilhas de pedra e lama.
O jovem ignorou a pergunta e continuou os exercícios. O ancião, parado na porta, caminhou pela sala vestindo apenas roupas de baixo. Pegou um copo de madeira, encheu-o de água e bebeu de um gole só.
— Nada supera um bom copo de água pela manhã — murmurou, satisfeito.
Tiko concluiu os exercícios, levantou-se e esticou o corpo. Sentiu o olhar do elfo idoso sobre ele.
— Por que me encara? — perguntou Tiko. — Não sou uma bela dama para atrair esse tipo de atenção.
O velho sorriu, encontrando graça nas palavras do jovem.
— Esperei você terminar. Agora pode responder minha pergunta? —
insistiu Golbzedh, encostando-se na parede de madeira.
Tiko afastou os cabelos lisos do rosto e encarou o ancião com um olhar semicerrado. Os elfos negros destacavam-se pelos cabelos prateados e pele escura, mas os olhos negros de Tiko o tornavam ainda mais singular.
Virando o rosto para Golbzedh, anunciou:
— Vou caçar. Deixe tudo pronto para quando eu voltar.
O elfo mais velho começou a organizar a cozinha para preparar o alimento que Tiko traria. Pegou uma lâmina para cortar carne.
— Veja se traz algo de qualidade, mas não se arrisque demais — disse Golbzedh, agachado enquanto buscava mais utensílios.
Tiko não respondeu.
Voltou ao quarto, vestiu uma camisa de lã preta e pegou sua espada de caça.
Embora caçar com espadas não fosse comum, ele preferia confiar em suas habilidades no combate corpo a corpo. Em seguida, saiu pela porta com a expressão fechada de sempre, uma carranca capaz de intimidar qualquer criança que cruzasse seu caminho.
⧫⧫⧫
As sombras dominavam o cenário, projetando-se como um véu opressor sobre o bairro. As árvores altas ao redor das casas e a arquitetura desordenada, com lares empilhados uns sobre os outros, contribuíam para a penumbra quase constante.
O sol, ainda que presente no céu, era incapaz de penetrar profundamente naquele lugar, deixando-o sufocado por uma escuridão que parecia refletir o estado das almas que ali viviam.
No meio daquele ambiente miserável, um homem caminhava em linha reta, ignorando tudo ao seu redor. Sua postura rígida e passos firmes demonstravam foco, um contraste gritante com o cenário que desfilava à sua volta.
Era uma visão que facilmente atordoaria a maioria das pessoas: corpos de elfos negros largados ao chão, outros encostados em paredes em poses de desamparo absoluto.
Seus rostos variavam em feições, seus trajes mostravam a diversidade de estilos e seus cabelos, cortes distintos. Mas havia algo que os unia, uma marca cruel que não poupava ninguém ali. Fome.
Essa parte do Reino dos Elfos era um reflexo grotesco de decadência. A pobreza impregnava tudo — a comida insalubre, a água turva, as roupas em farrapos.
As casas, construídas sem ordem, eram cubículos amontoados em um labirinto de paredes inclinadas e pisos instáveis. Ali, a luz do dia era uma raridade, e a escuridão se tornava uma companheira constante. Os olhos das pessoas contavam histórias de resignação e sofrimento.
Não havia esperança, apenas a aceitação de que aquilo era o que lhes restava.
No entanto, o homem que seguia em frente destoava. Jack, um jovem elfo de 23 anos, não pertencia àquele lugar.
Seu semblante carregava uma expressão de desconforto, como se cada passo em solo tão degradado fosse uma afronta aos seus sentidos. Ele nunca experimentara a fome, a miséria ou o desespero que moldavam as vidas ao seu redor.
Mas alguém que ele conhecia, alguém importante, havia saído desse inferno. Essa pessoa estivera ali, e se tivesse permanecido, talvez Jack jamais precisasse encarar aquele cenário tão grotesco.
Por um instante, sua expressão traiu seus pensamentos. Uma raiva súbita passou por seu rosto, mas ele balançou a cabeça, dispersando emoções que considerava inúteis.
Não havia tempo para distrações. Puxando o capuz do manto marrom que usava, Jack manteve os cabelos loiros ocultos, assim como seus olhos de pupilas azuladas envoltas por um branco opaco.
Suas características o denunciariam imediatamente como alguém de fora, e isso significaria problemas. Ser identificado naquele território poderia custar sua vida.
Aquela parte do reino não era assim por acaso. A miséria que sufocava os elfos negros era resultado direto de como o restante dos elfos os tratava. Há muito, durante uma guerra contra os humanos, os elfos negros haviam se tornado alvo de desprezo e desconfiança.
Nesse reino, o talento mágico era a régua que media o valor de um indivíduo. Aqueles sem aptidão para manipular a magia — mesmo que dotados de outras habilidades notáveis — eram descartados.
Os elfos negros, em sua maioria, carregavam o fardo de uma conexão mágica menor, e isso os condenara a essa existência amarga.
Jack continuou andando, puxando o manto ao redor do corpo, tentando afastar o frio que parecia emanar dos olhares à sua volta. O desprezo ali era tão palpável quanto o ar pesado que enchia aquele lugar.
Biologicamente, os elfos eram conhecidos por sua habilidade nata na manipulação da magia. Para eles, a magia era um reflexo da própria existência, um dom que carregavam no sangue.
Mas para os elfos negros, a história era diferente. Seu talento mágico era comparável ao dos humanos — funcional, mas sem brilho. E, ironicamente, eram os humanos, a raça menos dotada na arte arcana, que dominavam a maior parte do continente.
A força dos humanos vinha de seus números, e entrar em guerra com um grupo deles era como desafiar um enxame: derrotar um significava chamar milhares de outros.
Por isso, durante a guerra, os elfos recuaram. Temendo uma retaliação esmagadora, aceitaram o acordo proposto pelos humanos.
Hoje, essa decisão os confinava às fronteiras do Reino dos Elfos, uma prisão disfarçada de soberania. Sair das terras élficas sem autorização era um ato punível, uma violação que trazia consequências graves.
Dentro dessas fronteiras, o espaço era escasso. Grande parte do território era ocupado pela floresta sagrada de Abelium, lar de um guardião enigmático que proibia qualquer incursão profunda.
O guardião era uma figura quase mítica, cuja proteção à floresta era implacável e mortal. Ninguém sabia ao certo por que ele defendia Abelium com tanto fervor, mas a regra era clara: invadir o coração da floresta era uma sentença de morte.
Com Abelium inacessível, os elfos haviam reivindicado a maior parte do restante do território para si, alegando superioridade e um papel mais relevante durante a guerra.
O que sobrava era destinado aos elfos negros, que foram empurrados para uma área reduzida chamada Infra, a cidade que se tornara seu refúgio — ou melhor, sua prisão.
Infra era pequena, mas a baixa taxa de natalidade dos elfos e elfos negros impedia a superpopulação.
O verdadeiro problema era a falta de recursos. O espaço restrito criava um ambiente de constante escassez. Com o tempo, a sobrevivência tornou-se uma batalha diária, e o crime passou a definir a vida em Infra. Roubo, violência e desespero transformaram a cidade em um verdadeiro inferno.
Jack nunca tivera motivos para ir a Infra antes. Sempre estivera distante daquela realidade, protegido por privilégios que ele sabia que muitos ali jamais conheceriam.
Mas agora as coisas eram diferentes. Ele estava em busca de alguém, e, mesmo com sua rede de contatos dentro do reino, não havia chegado a lugar algum. Precisava tentar outra abordagem.
Depois de dias de investigação, encontrou um lugar que chamava atenção: uma casa no fundo da cidade.
Era diferente de qualquer outra em Infra, com três andares e um portão de grade na entrada. Além do portão, um corredor estreito levava a uma porta reforçada, algo raro em uma cidade onde a segurança era frequentemente uma ilusão.
Aquele tipo de reforço não era comum por ali — parecia dizer que quem estivesse lá dentro sabia exatamente o valor da proteção.
Para Jack, alguém vindo de um lugar onde até o conceito de segurança era elevado a um nível quase paranoico, aquela barreira parecia uma piada.
Portões frágeis, paredes rachadas, uma porta reforçada que, no fundo, não reforçava nada. Ainda assim, ele sabia onde estava. Não era seu território, e estar sozinho em um lugar hostil significava que qualquer erro poderia ser o último. Ele precisava ser cauteloso.
Na frente do portão, um homem alto e corpulento bloqueia a entrada. Os braços dele eram tão largos que poderiam envolver Jack por completo, o que não era difícil, considerando o físico esguio do jovem elfo.
O guarda, um elfo negro, era careca e tinha olhos completamente escuros — um traço característico de sua raça. Ele encarava Jack, tentando decifrá-lo por baixo do capuz que ocultava seu rosto.
— O que você quer? — perguntou, arqueando uma sobrancelha. A pergunta veio com uma dose de desconfiança. Não era comum alguém aparecer sem aviso prévio.
— Preciso falar com Salazar.
A reação do guarda foi instantânea: primeiro uma risada seca, depois um olhar duro e ameaçador que parecia pesar uma tonelada.
— Como é? — Sua voz engrossou, carregada de incredulidade. — Eu não fui avisado de visita nenhuma.
Jack ergueu um pouco a cabeça, deixando que o brilho determinado de seus olhos brancos com pupilas azuis fosse visível por um breve momento. Ele manteve a voz firme, mas com um tom de apelo calculado.
— É de última hora. Acredito que você possa me ajudar nisso. Garanto que seu chefe não vai se arrepender.
— Você é…
— Um elfo, sim. E, como disse, tenho certeza de que seu chefe não vai se arrepender.
Jack possuía um corpo esguio, quase delicado, mas sem transparecer fragilidade ou privação. Sua estrutura magra, esculpida mais pela elegância de sua linhagem nobre do que pelo esforço físico, dava-lhe a aparência de alguém acostumado ao conforto e à boa alimentação.
Ainda assim, sua postura ereta e os movimentos graciosos sugeriam um refinamento natural, como o de um gato selvagem à espreita. Pequeno para os padrões masculinos, seu porte tornava-se ainda mais intrigante devido aos traços andróginos que adornavam seu rosto.
Seus olhos, de uma coloração difícil de definir, eram ao mesmo tempo delicados e penetrantes, como lâminas ocultas sob o véu da suavidade.
A luz os fazia brilhar com um brilho quase etéreo, ressaltando o formato ligeiramente inclinado que lhes dava um ar astuto e observador.
O queixo fino e pontudo, somado à boca de contornos sutis e tonalidade rosada incomum para um homem, parecia contradizer qualquer tentativa de encaixá-lo em padrões tradicionais de masculinidade.
O destaque, porém, estava em seus cabelos – curtos e impecavelmente sedosos. A cor loira, que começava escura na raiz, desbotava em tons mais claros em direção às pontas, imitando o degradê do céu ao entardecer.
Cada fio parecia refletir a luz de maneira diferente, tornando-os quase cintilantes quando tocados pelo sol.
Sob o manto que envolvia seu corpo como uma sombra protetora, Jack exibia um estilo que misturava bom gosto e funcionalidade. Usava uma camisa bordada de verde-escuro, feita com tecido fino e detalhado, claramente obra de um alfaiate habilidoso.
Por baixo, a discreta presença de uma cota de malha reforçada denunciava sua prudência – ou talvez o reconhecimento silencioso dos perigos que o cercavam.
Suas calças, de corte ajustado, eram seguradas por um cinto fino, quase ornamental, que sobrava ligeiramente em sua cintura estreita, dando a impressão de que haviam sido confeccionadas para alguém um pouco mais robusto.
Esse detalhe, no entanto, não diminuía sua presença. Pelo contrário, somava-se à aura exótica e enigmática que o cercava, como se sua própria aparência fosse parte de um enigma difícil de decifrar.
O homem à porta hesitou. Era raro, quase impensável, que um elfo viesse a Infra.
Para um elfo negro, era algo completamente fora do normal. A cidade, esquecida pelo resto do Reino, já não atraía ninguém de prestígio. Mas aqui estava Jack, olhos claros como gelo e um manto que escondia mais do que revelava.
Fisco, o guarda parrudo, coçou a cabeça, indeciso. Quebrar as regras e abrir exceções não era algo que ele fazia facilmente, mas havia algo na presença de Jack que o incomodava — e talvez o intrigasse.
“Isso pode render algo bom,” pensou. “Ou pelo menos eu posso jogar a culpa em alguém depois.”
Com um suspiro, Fisco se virou, puxando um molho de chaves que balançava em seu cinto.
A cacofonia metálica ecoava no silêncio da rua enquanto ele procurava a certa. Encontrando-a, inseriu-a na fechadura e girou, fazendo o portão ranger ao ser aberto. Ele gesticulou para Jack entrar.
— Primeiro você.
A postura do guarda era firme, desconfiada. Ninguém em Infra dava as costas a um estranho — um instinto cultivado em uma cidade onde cada esquina poderia esconder uma lâmina.
Jack deu de ombros, ergueu uma sobrancelha como quem dizia “sério?” e passou sem hesitar.
Ele odiava qualquer sinal de fraqueza, qualquer impressão de que poderia ser subestimado. Fisco trancou a porta atrás deles e começou a andar, um passo atrás de Jack, suas chaves balançando a cada movimento.
O corredor à frente era surpreendentemente limpo, pelo menos em comparação com o resto da cidade.
Jack notou o contraste imediatamente. Este lugar pertencia a alguém importante, alguém que não aceitava o caos e a sujeira que definiam Infra.
E esse alguém era Salazar.
Salazar não era apenas um elfo negro; ele era o elfo negro. Crescera nas ruas de Infra, conhecendo suas armadilhas e oportunidades melhor do que qualquer um.
Começara pequeno, liderando um grupo que tomava o que queria de quem não podia se defender. Depois, evoluíra para extorquir “proteção” de comerciantes desesperados, cobrando para protegerem suas lojas — de si mesmo.
Com o tempo, Salazar construiu uma organização criminosa tão forte que Infra agora era praticamente dele.
A cidade abandonada pelo Reino era seu reino particular, e ele a governava com mãos habilidosas e impiedosas.
Ao final do corredor, Jack parou em frente a uma porta reforçada. Fisco, atrás dele, ergueu o punho e bateu três vezes, os golpes firmes ecoando pelo espaço.
— Abre aqui.
Do outro lado, passos rápidos ecoaram, seguidos pelo som de chaves destrancando fechaduras. A porta se abriu com um rangido, revelando um homem magro e alto, com olheiras tão profundas que pareciam cavadas na pele. Seus olhos se moveram rapidamente, primeiro para Fisco, depois para Jack. A expressão do homem endureceu, hostil.
— Que merda é essa, Fisco? — ele rosnou. — Quem é esse idiota? O chefe disse que não teria visitas hoje. Tá querendo arrumar problema?
Fisco cruzou os braços, impassível.
— Ele quer falar com o chefe.
— Foda-se? — o homem magro cuspiu as palavras, o tom ácido. — O chefe não marcou nada. Tira esse merda daqui antes que você bote todo mundo em encrenca!
Jack ficou em silêncio, mas sua postura rígida dizia tudo. Ele não precisava falar para fazer sua presença ser sentida. Fisco inclinou levemente a cabeça, apontando para o manto de Jack.
— Presta atenção, babaca.
O homem magro hesitou, franzindo a testa. Relutante, olhou para Jack com mais cuidado. Seus olhos se estreitaram e, por um breve momento, ele congelou, os olhos arregalando-se de leve.
— Um e-elfo? Mas que diabos…
Jack suspirou, irritado, e levantou um pouco mais o capuz, deixando o brilho gélido de seus olhos claros ser visto.
— Sim, sou um elfo. E então? Vai continuar me encarando ou vai me deixar passar?
O homem magro engoliu seco. Havia algo mais em Jack que o deixava desconfortável, algo além do fato de ele ser um elfo. Ele desviou o olhar, incomodado.
— Tá, tá. Pode entrar — resmungou, apontando para Fisco com um olhar severo. — Mas, se o chefe se irritar, essa culpa é sua.
Fisco riu, uma risada curta e debochada.
— Caralho, Sick, você é bom nisso.
Sick balançou a cabeça, claramente contrariado, mas abriu espaço para que Jack passasse. Antes de fechar a porta, ele lançou mais um olhar para Fisco, estalou os dentes com irritação e a trancou com um giro firme.
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