Mia acordou com o zumbido de vozes vindas de algum ponto da sala, uma melodia irritante que se infiltrou entre o sono e a consciência. O descanso que ela tanto desejava se desvanecia, substituído por uma frustração crescente. 

    Com um suspiro impaciente, abriu os olhos e desviou o olhar sonolento para a fonte do barulho. Um grupo de meninas, com os rostos corados e os olhos brilhando de excitação, encarava a janela como se vissem uma visão sagrada.

    — Kyaaaa! É ele!  

    — S-sim! É ele mesmo!  

    — Nossa, ele é tão gatinho!  

    — Quem é aquele cara do lado dele?  

    — O de cabelo longo e preto? Deve ser só um otário.  

    As vozes agudas se misturavam em uma empolgação que Mia achava irritante, um zumbido que a fazia revirar os olhos e sentir um incomodo insuportável. 

    Ela não queria saber do que estava acontecendo. As aulas, com seus ritmos monótonos e manobras entediantes, não passavam de um suplício para ela, um passatempo inútil. O que ela já sabia sobre espadas, já tinha aprendido com Richard, seu irmão mais velho. 

    E as crianças da academia? Eram um estorvo, um emaranhado de vozes e sorrisos que preferia evitar.

    Ela nunca se sentira triste por ser evitada, por ser a irmã de Richard. Para ela, aquilo não era um fardo, mas uma benção. Ter Richard ao seu lado, um irmão que era um deus para o reino, era uma recompensa suficiente.

    Mia sabia que, se alguma vez precisasse, ele estaria lá para ela, forte e inabalável, para defendê-la com todo o amor e cuidado que só ele podia oferecer. 

    Para ela, nada mais importava além de Richard. Ele era tudo, a razão e a certeza de que, enquanto ele estivesse ao seu lado, nada mais poderia tocá-la.

    — Kyaaaa, o Richard olhou pra mim! Ele olhou para mim!  

    — Que?! Que mentira! Foi para mim que ele olhou!  

    — Não! Foi para mim!  

    As vozes altas das meninas se entrelaçavam em uma disputa tão barulhenta que Mia sentia a cabeça zunir. Ela queria gritar, mandar todas aquelas garotas calarem a boca e deixar de ser tão idiotas, mas o frio da carteira, que lhe dava um alívio inesperado, a fez desistir de agir. 

    Ficou deitada, o rosto voltado para o teto, esperando que aquele momento passasse.

    Porém, algo na conversa a fez se endireitar, os olhos arregalados e a expressão de medo se espalhando por seu rosto. Ela ouviu um nome, uma única palavra, que foi o suficiente para fazer seu coração disparar. Sem pensar, ela se levantou e foi em direção à janela, empurrando uma menina que falava algo sem importância. 

    Maninho?!

    Ali estava Richard, em pé no terreno da escola, conversando com uma professora. Ao lado dele, um homem de aparência estranha, mas que Mia nem fez questão de analisar. 

    Ele devia ser apenas mais um dos admiradores, alguém que se deixava impressionar pela figura divina de seu irmão. Mas o que a fez tremer de raiva foi a professora, com seu rosto vermelho e os cabelos enrolados nos dedos, se jogando para cima dele como se fosse a última oportunidade de sua vida. 

    Uma mordidinha no lábio?! Essa vadia!

    O sangue de Mia ferveu. As regras sobre correr pelos corredores da academia não significavam nada para ela naquele momento. Ela disparou, empurrando os alunos e ignorando os gritos de protesto. 

    Richard era só dela, e ninguém, absolutamente ninguém, podia se aproximar dele como se tivesse direito. Sempre que o pai apresentava alguma mulher para tentar arranjar um casamento para Richard, Mia fazia questão de fazer a maior cena, de dar birras tão intensas que até as mulheres mais insistentes desistiram de tentar corromper o irmão puro e doce.

    Richard era a personificação da inocência para Mia. Algo que não poderia ser manchado pelo mal, nem por uma mulher-cobra, como ela chamava aquelas que se atiravam aos pés do seu irmão. E, até que ele chegasse em casa, ela faria de tudo para manter a pureza dele intacta.

    Quando Mia chegou ao pátio da academia, sua corrida a levou direto até Richard, interrompendo a conversa entre ele e a professora. A mulher ficou paralisada, a expressão nervosa estampada em seu rosto enquanto o suor deslizava por sua testa. O ódio que Mia exalava era palpável, como se pudesse ser sentido no ar.

    Sai fora, sua vadia!

    — Mia? — a voz de Richard soou surpresa e preocupada.

    Mia virou-se para ele, um sorriso doce e inocente nos lábios, como se não tivesse acabado de lançar uma aura mortal para a professora à sua frente. 

    — Maninho! Estou tão feliz de te ver — disse, com uma voz angelical, enquanto o abraçava com força. Atrás de Richard, um homem de cabelos longos e aparência desleixada a observava com uma expressão de desdém, como se ela fosse um mistério irritante. 

    — Que foi, cretino? — Mia murmurou, movendo os lábios de maneira discreta, mas a mensagem foi clara. O homem arqueou as sobrancelhas, surpreso com a atitude da menina.

    Richard a abraçou de volta e, depois, a afastou ligeiramente para olhar em seus olhos. A preocupação estava estampada em seu rosto, evidente e sincera.

    — Por que você não está na aula, Mia? — perguntou, a voz carregada de inquietação.

    Mia fez uma careta e sorriu de forma ainda mais fofa, fingindo uma inocência imaculada.

    — Ah, sabe… é que eu estou no intervalo… — ela murmurou, com uma doçura que quase fazia a mentira parecer verídica.

    — Intervalo…? Você é da turma A4, né? O intervalo não é agora…

    A professora, que antes parecia disposta a intervir, ficou em silêncio quando viu a expressão ameaçadora de Mia. Um arrepio percorreu sua espinha, e o suor se intensificou, como se sua vida dependesse de permanecer quieta e não chamar mais a atenção da menina.

    — Maninho… o que veio fazer aqui? — Mia voltou sua atenção para Richard, falando com um tom doce e carinhoso.

    — Bem… eu vim ver como você está. Você não voltou para casa nos últimos dias, sabe? Fiquei preocupado. 

    Um sorriso malicioso se formou nos lábios de Mia enquanto ela pensava: Hehehe… Então o plano funcionou melhor do que eu imaginei…!

    A academia possuía quartos destinados aos alunos que preferiam não fazer o trajeto de volta para casa todos os dias, um luxo também usado por quem vinha de cidades distantes. Para esses alunos, era mais prático e financeiramente viável ficar hospedado na própria academia do que enfrentar o tempo de viagem. 

    Mia, no entanto, não precisava desse tipo de acomodação. Mas, nos últimos dias, ela havia explorado essa opção com um propósito específico. Sua ausência intencional, longe do lar, faria Richard sentir falta dela, criar saudades que a impulsionariam a voltar como uma visitante adorada. E, quando isso acontecesse, ele ia querer passar cada momento ao seu lado. Um plano perfeito.

    O sorriso de Mia se alargou com a satisfação de ver que seu plano tinha dado mais certo do que esperava. Afinal, o irmão que ela via como uma divindade havia atravessado a academia, aquele lugar patético e insignificante, só para vê-la. 

    Ela então se aproximou dele com um brilho travesso nos olhos e, com uma voz ainda mais doce, começou a falar enquanto gesticulava de maneira encantadora.

    — Então, irmãozão, já que a gente ficou tanto tempo sem se ver… — ela deu um leve chute no chão, fingindo timidez. — Que tal a gente passar o fim de semana juntos, se divertindo?

    Por fora, sua atuação era impecável, mas por dentro, o coração de Mia transbordava de felicidade, um sorriso radiante iluminando seu rosto. Ela estava armando a armadilha perfeita.

    O homem atrás de Richard, que antes estava com uma expressão de desdém, agora parecia desconcertado, como se tivesse percebido algo que ela não conseguia entender.

    — Ah, tudo bem. Eu já estava pensando em te levar para passear mesmo no seu aniversário. — Richard respondeu com um sorriso cativante e colocou a mão na cabeça de sua irmã fazendo um cafuné. Ela amou aquilo e sorriu ruborizada.

    Mia percebeu os suspiros e exclamações vindo das meninas no jardim da academia, que estavam hipnotizadas pela beleza de seu irmão.

    — Que bom! Vai ser tão legal! — Ela respondeu, os olhos brilhando com a empolgação da resposta.

    — Hey, tampinha… — a voz de um homem interrompeu a troca de olhares entre eles.

    Mia franziu o cenho, o calor da irritação subindo ao ver um qualquer interromper seu tempo com Richard. Ela olhou para ele com ódio puro, os olhos lançando faíscas.

    — O que você quer, feioso? — Ela falou com um tom seco e cortante.

    — Mia! — Richard exclamou, o rosto surpreso e ligeiramente repreensivo. — Não fale assim com o senhor Breck. Ele é o capitão da décima primeira divisão da ordem dos cavaleiros sagrados do reino dos elfos.

    A expressão de Richard mudou para algo mais sério, e ver seu irmão assim, incomodado, fez um sorriso pequeno, quase imperceptível, surgir no rosto de Mia. Normalmente, Richard não se irritava; era uma novidade que ela não sabia que queria, mas que agora a fazia se sentir estranhamente satisfeita.

    — Peça desculpas para o senhor Breck agora mesmo, Mia. 

    — O-O que?! — Mia gaguejou, a surpresa estampada em seu rosto enquanto Richard a olhava com uma expressão dura, como se um raio tivesse caído ao seu lado. Aquela expressão a deixou desconcertada, um nó de culpa se formando em seu estômago. A ideia de ter deixado Richard desapontado com ela era dolorosa, e a culpa recaiu sobre aquele idiota de cabelo longo, que se intrometera em sua relação perfeita com o irmão.

    Ela não pôde evitar, e uma nota mental foi criada: aquele homem, com seu olhar desdenhoso e arrogante, era seu inimigo agora.

    — N-Não precisa disso, Richard. Não quero nada vindo de você ou da sua família. — Breck disse, os olhos estreitados enquanto encarava Mia. A tensão no ar era palpável, como se faíscas estivessem prestes a saltar dos olhares que trocavam.

    Hm, ele não gosta do maninho?

    Uma ideia sombria se formou na mente de Mia, e um sorriso sarcástico desenhou-se em seus lábios, traço de um jogo que só ela parecia entender.

    — E então? Está atrás do meu irmão? É fã dele, por acaso? — A voz carregava um desdém frio, como se cada palavra fosse uma flecha mirando o coração da vergonha.  

    — O quê?! Hahaha! Fã? Eu? — Breck soltou uma risada artificial, forçada como um truque mal ensaiado. O som ecoou estranho pelo pátio, enquanto ele apontava para Richard, o dedo acusador mais teatral do que sincero. — Dele? Por favor…  

    Pousou a mão sobre o ombro de Richard, como se tentasse reivindicar algum tipo de domínio, Breck parecia acreditar que o teatro barato bastaria. Mas antes que pudesse prolongar a encenação, uma voz feminina irrompeu, gelada como o aço de uma lâmina.  

    — Tire as mãos do senhor Richard!  

    O comando foi como um trovão abafado que varreu o pátio. Um murmúrio começou a se espalhar entre os presentes, uma onda crescente de indignação e fervor. 

    De trás das colunas e sombras, jovens elfas começaram a surgir. Seus rostos estavam corados de uma mistura de raiva e devoção, mas seus olhos queimavam com a intensidade de quem acabara de declarar guerra.  

    — T-tire as mãos do senhor Richard! — uma delas repetiu, a voz trêmula, mas determinada.  

    — Quem você pensa que é?!  

    — Ridículo!  

    — Esse cabelo… Parece uma garota!  

    — Um fracassado completo.  

    — Ele bem que podia morrer, né?

    — Meu marido não merece isso!  

    — Richard, eu te amo!  

    As palavras se entrelaçavam em um coro feroz, uma mistura de insultos e declarações de amor. O olhar fulminante das jovens parecia incinerar Breck onde ele estava, cada comentário como uma pedra atirada em sua fachada de confiança. 

    Ele permaneceu ali, estático, as gotas de suor começando a brotar em sua testa, enquanto o calor das vozes crescia ao seu redor.  

    O pátio, que antes parecia um espaço aberto e seguro, agora se fechava em torno dele como uma armadilha. A terra parecia rejeitar sua presença, e os olhares que o cercavam o transformavam em um invasor sem saída.  

    Por um momento, ele ousou olhar para Richard, mas o sorriso tranquilo do jovem — como se tudo estivesse sob controle — só tornava a situação mais insuportável. Breck, que tantas vezes confiara em sua presença intimidadora, viu-se reduzido ao papel de espectador de sua própria derrota.  

    E as elfas… Ah, tão delicadas e belas, com palavras tão afiadas quanto espadas.

    Breck sentia as pernas tremerem. A fúria e o desprezo ao seu redor eram um peso esmagador, uma força invisível que o deixava à beira do colapso. 

    Ele levou as mãos ao rosto, tentando esconder o calor das lágrimas que ameaçavam escorrer. Uma traição silenciosa em meio à tormenta, como se até seu corpo se recusasse a obedecer.  

    Mas então, algo aconteceu.  

    Uma mão repousou em seu ombro, e o tumulto cessou. Não gradualmente, mas de forma abrupta, como se o próprio mundo tivesse decidido segurar a respiração. 

    O silêncio era tão denso que Breck quase podia ouvi-lo, como um eco fantasmagórico pairando no ar.  

    Ele ergueu o olhar, hesitante, e encontrou os olhos de Richard. Aqueles olhos calmos, brilhando com um entendimento insondável, como se vissem algo além do caos ao redor. 

    Havia um sorriso em seu rosto, amigável, quase cúmplice. Um sorriso que dizia mais do que palavras poderiam explicar.  

    Richard se virou lentamente, encarando o grupo de garotas que agora o olhava com um fervor quase religioso. O silêncio que antes era tenso transformou-se em reverência, e seus rostos, antes contorcidos pela indignação, agora pareciam iluminados pela expectativa.  

    Ele falou, sua voz firme, mas carregada de uma ternura que fazia até o vento parecer se inclinar para escutá-lo.  

    — Meninas, por favor, não tratem o senhor Breck dessa maneira. — As palavras foram medidas, mas poderosas. — Ele é um grande amigo, um homem de valor e honra, respeitado em todo o reino. Um soldado leal, um companheiro confiável, e alguém destinado a grandes feitos no futuro.  

    A declaração de Richard pairou no ar como uma proclamação divina. Era impossível ignorar, impossível não ser tocado. O pátio, que há pouco era um campo de batalha de vozes e olhares, transformou-se em um oceano de adoração.  

    — Kyaaaaa! Richard é tão humilde!  

    — Um verdadeiro cavaleiro!  

    — Ele até tem compaixão por esse ridículo com cabelo de menina.  

    — Richard é a própria benevolência encarnada!  

    — Se o Richard confia nele, então ele deve ser confiável!  

    — Richard, eu quero ter seus filhos!  

    As vozes se entrelaçaram em um coro de exaltação. Algumas garotas choravam, lágrimas escorrendo enquanto murmuravam o nome de Richard como se fosse um mantra sagrado. Outras apenas olhavam, estáticas, absorvendo cada palavra como se fossem pérolas caindo de um cofre celestial.  

    Breck, no centro do turbilhão, sentiu a humilhação cravar raízes profundas em sua mente. O sorriso de Richard permanecia ali, como uma lâmina gentil, cortando sem pressa. Era o sorriso de um estrategista que vencera mais uma batalha sem erguer uma arma.  

    Era um sorriso que dizia: “Missão cumprida.”

    O quê? Ele está sorrindo pra mim?! Esse maldito…!

    Breck percebeu, naquele momento, que o dia já estava perdido. Quantas vezes já tinha enfrentado Richard Ravens, o eterno rival que sempre surgia para transformar suas derrotas em um espetáculo de humilhação? 

    Ele sabia, como sempre soubera, que não importava quantas vezes caísse; Richard estaria lá para garantir que sua queda fosse uma comédia a ser relembrada.

    Breck deu um passo para trás, afastando-se enquanto o caos ao seu redor só aumentava. Ele virou as costas para Richard, que o observava com um olhar de dúvida, como se ainda não entendesse o que acabava de acontecer. 

    — Breck? — Richard chamou em um tom baixo, quase cético. 

    Breck, com os olhos fixos no chão, soltou um grito de raiva e frustração, seu corpo tremendo de emoção.

    — Eu juro… juro que vou te derrotar! 

    Com essas palavras, ele virou-se abruptamente e disparou em direção à saída, correndo como se quisesse deixar para trás toda a humilhação de sua derrota. 

    Mia observava, divertida, o homem patético fugir, e não conseguiu conter uma risada silenciosa, um sorriso de puro desdém curvando seus lábios. 

    — Patético. — Murmurou ela, como se estivesse se referindo a um inseto insignificante, mais uma vitória em seu império de controle.

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