Quem diria que eu voltaria aqui…  

    Tiko caminhava pelas calçadas de Perestória, sua cidade natal, com passos pesados e o coração carregado. As ruas pareciam intocadas pelo tempo, ao menos aquelas que ele conhecia bem. 

    O ar, porém, continuava o mesmo: frio, indiferente. Cada esquina sussurrava memórias que ele preferia enterrar. Foi aqui que seus pais foram assassinados.  

    Perdido em reflexões, quase não percebeu os olhares curiosos dos elfos que passavam por ele. Não era exatamente uma novidade ser observado, mas desta vez havia uma diferença. Antes, os olhares eram cheios de desprezo, até medo. 

    Agora, eram apenas curiosos. Uma figura encoberta por roupas pesadas, capuz e máscara chamava atenção, claro, mas não da mesma forma como chamava quando ele era apenas um elfo negro sem disfarces.  

    Perestória nunca foi gentil com elfos negros. Não existiam leis contra sua presença, mas as atitudes das pessoas falavam por si. Sorrisos falsos, portas fechadas, murmúrios abafados. 

    Ele sentiu tudo isso ao caminhar por essas ruas anos atrás. Agora, protegido pelo anonimato, a curiosidade parecia um alívio perto do nojo que costumava enfrentar.  

    Seus pensamentos vagaram até Jake, seu irmão. Talvez ele ainda estivesse na cidade. Este era o lar onde ambos cresceram, onde brincavam sob o olhar atento dos pais. Mas o destino os afastou, e desde aquela noite — a noite em que tudo desmoronou — Tiko não sabia onde ele estava.  

    As lembranças vieram como um vendaval. A última vez que viu Jake foi quando os corpos de seus pais sujaram o chão de sua casa. Foi também quando Jake tentou matá-lo.  

    Naquele tempo, os dois frequentavam a mesma academia. Jake, com sua beleza quase etérea e um charme que fazia tanto garotas quanto garotos suspirarem, era uma estrela. 

    Convites e confissões de amor o cercavam como uma nuvem, e ele sempre ficava um pouco mais após as aulas, negando educadamente ou sorrindo sem compromisso.  

    Tiko, por outro lado, era conhecido por razões bem diferentes. Enquanto Jake era amado, Tiko era temido. Seu olhar firme e presença sombria afastavam as pessoas, que o viam com desconfiança e, muitas vezes, repulsa. Ele não se importava. 

    Preferia voltar para casa o mais rápido possível, onde seus pais eram sua única âncora, sua única fonte de calor.  

    Naquele dia, como de costume, ele chegou primeiro. A casa estava silenciosa, vazia de empregados. Seus pais haviam dispensado os mordomos mais cedo, um hábito que tinham para evitar que Tiko enfrentasse olhares de desaprovação até dentro de sua própria casa.  

    Mas o silêncio era errado. Frio.  

    Quando entrou na sala, viu sua mãe caída no chão, sem vida. Seu pai ainda respirava, mas a morte já o segurava pelos ombros.  

    Não havia ninguém na casa. Apenas os corpos de seus pais, largados no chão como marionetes quebradas, cobertos de sangue e cortes profundos.  

    A visão era grotesca. Sua mãe, empalada de forma brutal, tinha um ferimento enorme no abdômen. Um buraco grotesco revelava os órgãos internos, o que restava de sua dignidade espalhado pelo chão. Seu pai, Kalarik, parecia ter resistido ao ataque. 

    Faltavam dedos em uma de suas mãos, e seu corpo estava coberto por feridas profundas e violentas. Era um milagre que ele ainda respirasse. Um milagre cruel.  

    Quando Tiko o encontrou, o pai ainda estava consciente. Seu peito arfava, cada respiração um esforço que mais parecia uma punição. Tremendo, Tiko se ajoelhou ao lado dele, puxando-o para seus braços. O sangue quente do pai manchava suas roupas e sua pele, mas ele não se importava. Kalarik tentou falar, cada palavra um sussurro que cortava o silêncio da sala.  

    As últimas palavras de seu pai vieram cheias de dor e resignação, um adeus pesado demais para os ombros de Tiko carregarem. E então, com os olhos ainda abertos, Kalarik deu seu último suspiro. A vida foi arrancada dele, abrupta, como se algo invisível tivesse puxado sua alma antes mesmo que seus olhos se fechassem para o descanso final.  

    Por dois longos e dolorosos momentos que pareciam horas, Tiko permaneceu ajoelhado no chão frio. O corpo sem vida de Kalarik estava em seus braços, o peso real e simbólico esmagando-o lentamente. Ele queria que aquilo fosse um pesadelo. Mas era real. Tudo estava errado, mas era real.  

    Então, algo dentro dele quebrou. Com os dedos trêmulos, Tiko pegou a faca ensanguentada que jazia ao lado dos corpos. Ele sabia, instintivamente, que era a arma do crime. Agora, seria sua libertação.  

    Seus olhos estavam vazios, sem lágrimas, sem esperança. Apenas dor. Ele segurou a faca com força, a lâmina tremendo levemente enquanto a apontava para sua própria garganta. Um único movimento seria o suficiente. Um corte e o sofrimento terminaria.  

    Mas, antes que pudesse completar o ato, o silêncio foi interrompido. Um som no corredor.  

    Tiko congelou, sua respiração entrecortada. Virando a cabeça lentamente, viu Jake. Seu irmão.  

    E então, como um raio, ele foi puxado de volta ao presente.  

    — Vai ser essa aqui… — murmurou Tiko, agora de pé diante de uma loja de penhores. O colar que ele venderia estava apertado em sua mão. A visão das ruas movimentadas de Perestória trouxe-o de volta, mas não o libertou das correntes do passado. 

    Tiko empurrou a porta da loja devagar, fazendo o sino pendurado acima dela soar com um leve tilintar. Um dispositivo simples, mas eficaz, para alertar o dono ou qualquer funcionário de que um cliente havia chegado. 

    O interior era exatamente como ele imaginara: uma loja comum da cidade central, repleta de itens de valor. Abajures elegantes, pequenas estátuas detalhadas e até algumas armas — espadas, lanças e martelos — dispostos com cuidado. 

    Apesar do ambiente requintado, o espaço era pequeno, com apenas dois corredores estreitos e uma longa mesa no centro exibindo alguns dos itens mencionados.  

    No fundo da loja, um elfo estava debruçado sobre o balcão. Sua expressão alternava entre cansaço e tédio, os olhos semicerrados observando Tiko assim que ele entrou.  

    Tiko hesitou. Era apenas a segunda pessoa com quem falaria desde… tudo. Sua garganta estava seca, as palavras presas no nervosismo.  

    — Er… hm… bom dia. — Sua voz saiu hesitante, quase um sussurro.  

    O elfo ergueu o olhar, mas não se deu ao trabalho de disfarçar o desinteresse.  

    — Bom dia. Quer algo específico? Tudo o que temos está no estoque, como pode ver.  

    O tom do homem era automático, como se repetisse a mesma frase dezenas de vezes por dia para clientes inconvenientes.  

    — Ah, não… na verdade, eu… — Tiko parou no meio da frase. 

    A demora fez o elfo franzir a testa, sua paciência claramente se esgotando. Tiko sentiu o peito apertar. Se aquele colar tivesse passado por ali antes e o homem se lembrasse, ele estaria encrencado. Muito encrencado.  

    Engolindo em seco, ele colocou o colar sobre o balcão.  

    — Gostaria de penhorar este item… é da minha coleção.  

    A princípio, o elfo não pareceu impressionado. Seu olhar entediado seguiu para o colar de forma automática. Mas quando Tiko afastou a mão, revelando a joia, algo mudou. O desinteresse deu lugar a uma atenção súbita. Ele inclinou-se para frente, seus olhos examinando o objeto com cuidado renovado.  

    Tiko sentiu o estômago revirar. O silêncio do homem era insuportável. Cada segundo que passava aumentava seu medo.  

    Finalmente, o lojista pegou o colar, segurando-o delicadamente pela parte onde brilhava a pedra preciosa. Ele o ergueu até a altura dos olhos, analisando cada detalhe antes de olhar para Tiko.  

    — Posso dar uma olhada mais detalhada? — Sua voz, agora mais séria, carregava um tom profissional.  

    — C-claro. Fique à vontade. — Tiko gesticulou com uma das mãos, tentando soar casual.  

    O elfo deu alguns passos para o lado e pegou uma lupa de precisão. Colocando-a diante de um dos olhos, ele fechou o outro, analisando a joia sob a luz. Tiko observava em silêncio, cada músculo tenso.  

    A expressão do elfo mudou lentamente. O que começou com um interesse moderado logo transformou-se em algo mais — um brilho de satisfação. Ele estava feliz. Muito feliz.  

    Tiko, por outro lado, sentia o oposto. Cada detalhe da análise parecia uma sentença à espera de ser anunciada.

    — Ah, mas que beleza… isso aqui é um verdadeiro achado! Uma joia praticamente pura! — O lojista mal disfarçava o entusiasmo. — Disse que pretende penhorar, correto?

    — Isso mesmo.

    — Excelente. Veio ao lugar certo.

    O homem abriu um sorriso largo, virando-se para alcançar uma caixa pequena no alto do armário. Quando a abriu, um brilho colorido escapou, revelando uma coleção de joias cuidadosamente organizadas.

    — Eis aqui minha aposentadoria. — Ele soltou uma risada despretensiosa. — Sua peça vai se juntar a esta coleção que um dia pretendo vender por uma fortuna, quando for velho demais para continuar com isso.

    Tiko assentiu educadamente, mantendo uma expressão neutra enquanto observava o comportamento do lojista. O homem parecia mais contido agora, cauteloso na escolha das palavras. Talvez estivesse incerto sobre a origem ou posição social de Tiko, considerando a qualidade da peça apresentada. 

    Melhor tratar o cliente com respeito e evitar atrair problemas, especialmente se o cliente fosse alguém importante disfarçado.

    — Entendo. Isso é admirável. — comentou Tiko, sem se comprometer muito.

    O lojista colocou a lupa e o cordão de volta sobre o balcão, fechando a caixa de joias e prendendo-a sob o braço.

    — Que tal 5 moedas de ouro? Acha justo?

    — Que tal dez? Parece um valor mais condizente, não acha?

    O homem deixou escapar um sorriso satisfeito, balançando a cabeça.

    — Ora, muito bem! Para ser honesto, já planejava oferecer dez. Só quis testar sua perspicácia. Pelo modo como fala e se porta, diria que é um morador de Perestória, estou certo?

    Tiko hesitou por um instante, mas não negou. Ele realmente vinha de Perestória. A educação refinada que recebera lá ainda lhe servia bem em momentos como esse, ajudando-o a negociar com firmeza.

    — Negócio fechado, então. — disse o lojista, parecendo satisfeito. — Vou buscar o dinheiro. Espere aqui um minuto, sim?

    Com um breve aceno, Tiko concordou. O homem desapareceu por uma porta lateral, deixando Tiko sozinho na loja.

    Finalmente, um momento para respirar.

    O corpo dele relaxou enquanto a tensão deixava seus músculos. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu algo próximo de respeito vindo de um elfo. Ele soltou um suspiro longo, absorvendo a momentânea calmaria.

    Mas a tranquilidade durou pouco.

    O som de passos e o ranger da porta sendo aberta fizeram Tiko se virar. Dois elfos acabavam de entrar na loja. Suas botas firmes e passos sincronizados ecoavam pelo chão. Não eram clientes comuns.

    Tiko sentiu o coração disparar. Uniformes brancos com detalhes dourados reluziam à luz. A Ordem dos Cavaleiros Sagrados. Ele ficou imóvel, tentando parecer despreocupado, mas seus sentidos estavam em alerta total.

    Um dos elfos usava o uniforme padrão, mas a joia dourada em seu peito indicava que não era qualquer cavaleiro. Um capitão.

    O outro, no entanto, era ainda mais desconcertante. Sua vestimenta era única, ornamentada com símbolos que não pertenciam ao traje comum da Ordem. Não era apenas especial; era inconfundível. Tiko quase prendeu a respiração quando percebeu quem era. Não… não podia ser.

    O homem de uniforme especial percebeu o olhar fixo de Tiko e respondeu com um sorriso calculado, que parecia carregado de significado.

    — Ora, ora… — disse ele com uma voz carismática e afiada. — O senhor Gaza Shir está por aqui? 

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