Richard estava radiante, ainda que sua postura rígida de guerreiro ocultasse bem isso. Ele tinha todos os motivos para se sentir assim. O fim de semana ao lado de sua irmã havia sido fantástico. 

    Pela primeira vez, sentiu o que era compartilhar momentos leves e divertidos, algo que jamais tivera com o pai. Não só brincaram juntos, mas treinaram. E, para sua surpresa, ela estava evoluindo em um ritmo que beirava o sobrenatural na esgrima. 

    Richard não conseguia conter o orgulho. Cada golpe dela parecia refletir o cuidado e a dedicação que ele investira nos treinos – diferentes, claro, do tratamento opressivo que ele mesmo recebera durante a infância.  

    Era quase uma prova viva de que a força não precisava nascer do sofrimento.  

    Durante um dos treinos, ela fez um pedido que soava como um desafio:  

    “Se eu vencer a competição de esgrima da academia, você terá que me fazer um favor!”  

    Ele tentou arrancar a resposta ali mesmo, mas a irmã foi irredutível, apenas sussurrando algo enigmático depois. Algo como: “Agora aquelas piranhas não têm chance… hehehe…”  

    Richard fingiu não ouvir, supondo que fosse algum devaneio juvenil, e deu de ombros.  

    Mas havia um detalhe que o incomodava.  

    Ele havia planejado um presente especial para a irmã – algo que simbolizasse seu apoio irrestrito. E, ainda assim, não tinha certeza de ter acertado na escolha. O presente em questão era nada menos que uma arma lendária: a katana de sua falecida mãe.  

    Girassol Cortante.  

    Até os bardos hesitavam em cantar sobre ela, tamanha era a mística ao seu redor. Não era apenas uma arma, mas um artefato singular em toda a extensão conhecida do continente. Enquanto a maioria dos encantadores modernos mal conseguia aplicar um único feitiço em objetos, essa katana ostentava três encantamentos. Três.  

    Era algo que desafiava as normas.  

    Segundo os historiadores, a Girassol Cortante fora descoberta em ruínas esquecidas no coração do território élfico – um eco de uma era onde a magia era tratada como ciência exata e sua prática, sem limites. Richard nunca viu outra como ela. 

    Claro, havia lendas sobre armas ainda mais excepcionais, como as Sete Armas Sagradas. Essas relíquias forjadas por um ferreiro mítico, com sete encantamentos cada, já haviam moldado o destino do continente em tempos de guerra.  

    Mas, de todas elas, apenas a Sibelium – a Espada Sagrada – permanecia conhecida. E mesmo assim, guardada a sete chaves na floresta de Abelium.  

    Richard sentia o peso dessa herança cada vez que segurava a Girassol. Confiá-la à irmã não era apenas um gesto de afeto, mas uma aposta de que ela era digna de um poder que transcendia eras.  

    Ele só esperava estar certo.

    Nenhuma outra arma, exceto as lendárias Sete Armas Sagradas, possuía o mesmo número insano de encantamentos. No entanto, a Katana Girassol Cortante era uma exceção. Com três encantamentos imbuídos, ela era praticamente um tesouro nacional no País dos Elfos. Porém, essa espada lendária estava nas mãos da família Ravens. 

    Na época, Kayla Ravens, mãe de Richard, era uma cavaleira sagrada. Quando ela engravidou, adoeceu e, eventualmente, faleceu, o governo dos elfos não conseguiu reivindicar a posse de maneira justa. A espada ficou com os Ravens, intacta e cercada de mistério.

    Richard nunca a usou. Mesmo quando seu pai insistiu que ele empunhasse a arma, ele recusou. Para ele, a Girassol Cortante era mais do que uma ferramenta de combate; era um legado. E talvez, apenas talvez, sua irmã fosse digna daquele item. Afinal, diferente dele, ela não carregava o peso de ser uma mentirosa infeliz.

    Decidido, Richard retirou a katana da vidraça protegida por um selo que impedia sua localização. Com a espada em mãos, ele foi até um artesão dono de uma loja de joias e armas para fazer pequenas modificações. 

    A lâmina ainda trazia o entalhe original: “Kayla Ravens”. Richard queria que a espada passasse a carregar o nome de sua irmã, tornando-a uma extensão de sua identidade.

    Porém, havia um problema.

    A Girassol Cortante era protegida por um encantamento que aumentava sua resistência. Ferramentas comuns não conseguiam sequer riscar a lâmina. 

    O artesão precisou buscar um equipamento especial, o que atrasou a entrega mais do que Richard previra. O presente de aniversário da irmã chegou atrasado. 

    Apesar disso, ele não deixou que isso abalasse seu humor. A semana ao lado da irmã tinha sido incrível, e a expectativa pelo sorriso dela ao receber a espada superava qualquer contratempo.

    Naquela manhã, Richard recebeu uma carta informando que a katana estava pronta. Ele acordou cedo, conversou com seus dois empregados-chefe – algo que fazia diariamente para manter uma boa relação com eles – e se preparou para buscar a espada. Ao passar pelo grande portão de grades, aberto por duas empregadas impecavelmente uniformizadas, avistou uma figura familiar.

    — Breck! — saudou Richard com entusiasmo, levantando a mão em um gesto amigável.

    Do outro lado, Breck se virou lentamente, com uma expressão carrancuda e as mãos enterradas nos bolsos de um jaleco desgastado. Parecia mais um delinquente do que um cavaleiro.

    — Qual foi? — disse Breck, o tom seco e desinteressado.

    Richard sentiu o peso de dois olhares afiados vindo das empregadas. Elas não esconderam o desgosto pela forma como Breck tratava o mestre da casa.

    Mesmo assim, Richard manteve o sorriso. Aproximou-se de Breck, tentando puxar conversa:

    — Está ocupado hoje, Breck?

    — Não.

    — Ah, ótimo! Quer me fazer companhia?

    — Não.

    — Hã…? Por quê não?

    — Porque não.

    A resposta seca de Breck atingiu Richard como um balde de água fria. Por um instante, ele sentiu o peso da decepção. Mas decidiu não insistir. Talvez Breck tivesse algo importante em mente, mesmo negando. De qualquer forma, Richard deixou o assunto para lá. 

    Ele ainda tinha um objetivo: buscar a Girassol Cortante e finalizar seu presente para a pessoa que mais importava naquele momento – sua irmã.

    — Que pena. Queria sua opinião sobre uma coisa… — murmurou Richard, olhando para o céu e pousando a mão no queixo. — Talvez eu chame o Elber.

    Breck, que até então parecia alheio, arqueou a sobrancelha. A opinião dele? Sobre o quê? E por quê diabos Richard pediria isso a ele? Rival ou não, ele não ia deixar isso passar.

    — Mas o que você quer, hein? — resmungou Breck, girando o dedo no ouvido com desdém. O tom desleixado não ajudava, e ele percebeu as empregadas de Richard fuzilá-lo com olhares tão frios que poderiam congelar o inferno.

    Richard, como sempre, respondeu com um sorriso.

    — Levei a Katana Girassol Cortante para fazer uma pequena modificação. Nada muito grandioso. Pedi para entalharem o nome da minha irmã nela. Queria saber sua opinião, ver se é um bom presente para ela.

    Breck piscou duas vezes, incrédulo.

    — Espera aí. A Katana Girassol Cortante? Você vai dar é para aquela pirralha?! — exclamou, a voz subindo involuntariamente.

    Richard confirmou com um aceno calmo, o mesmo sorriso no rosto. Breck soltou um suspiro misturado com frustração e desgosto.

    Ele conhecia a irmã de Richard, e se o rival já era estranho e assustador com aquele jeito amável e calculista, a garota conseguia ser ainda pior. Um diabinho em forma de gente.

    Quando a conheceu, Breck foi confrontado por olhares afiados e manipulações veladas. Tudo nela gritava estratagemas para monopolizar o irmão, como se Richard fosse um brinquedo favorito que ela não queria dividir. Ele desistiu de pedir um duelo com a menina; não seria algo honroso nem remotamente justo.

    — Hm… tá, tá. Beleza. Vou com você — respondeu Breck, cruzando os braços. — Quero dar uma olhada nessa Katana Girassol Cortante. Todo mundo que veio depois de Kayla Ravens quer, não é? Arma lendária e tudo mais.

    Era a verdade. Kayla Ravens, a mãe de Richard, era quase uma lenda viva. Histórias sobre suas batalhas solitárias contra feras mágicas poderosas eram contadas em todos os cantos. Diziam que, em combate, ela era como um feixe de luz dourada atravessando o campo.

    Richard bateu no ombro de Breck com um sorriso ainda maior.

    — Que bom! Eu gosto muito da sua companhia, amigo.

    Breck fez uma careta. Aquele sorriso puro… incomodava. Esse cara…

    Antes que pudessem sair, uma voz feminina ecoou pelos jardins da mansão.

    — Senhor Richard!

    Uma jovem de cabelos castanhos, vestida com o uniforme impecável de empregada, corria em direção ao portão. Em uma das mãos segurava algo que reluzia ao sol. Atrás dela, outra empregada de longos cabelos loiros tentava acompanhá-la, correndo com graciosidade.

    Richard virou-se, inclinando a cabeça de leve.

    — Sim, Simeria? Aconteceu alguma coisa?

    As bochechas da jovem ficaram vermelhas ao ouvir Richard chamá-la pelo nome. Breck observava a cena com o rosto impassível, embora seus olhos estreitados denunciassem uma certa irritação.

    Esse cara só pode estar brincando comigo. Ele realmente não percebe o que está acontecendo aqui? Breck pensava, incrédulo, enquanto cruzava os braços e observava o desenrolar da cena.

    A garota fez um gesto para as empregadas no portão, e com um simples aceno de cabeça de Richard, as duas abriram o portão de ferro. Ela atravessou o pátio com passos tímidos, a postura quase encolhida, enquanto sua amiga a seguia logo atrás, gesticulando pequenos punhos erguidos, como quem diz: “Força, você consegue!”

    — S-Senhor… eu… — balbuciou a menina, corando violentamente.

    Richard permaneceu em silêncio, um sorriso tranquilo nos lábios. Sua expressão era de paciência, como se cada segundo fosse dedicado exclusivamente a ela, sem nenhuma pressa ou pressão. Ele esperava.

    — P-Por favor…! Aceite isso! — Ela fez uma reverência tão profunda que parecia querer desaparecer dentro de si mesma. Com as mãos trêmulas, ofereceu-lhe uma caixa. — Eu sei que é muita presunção da minha parte, me aproveitando da honra de trabalhar em sua casa… mas, por favor! Aceite! Esses são os meus sentimentos! Eu gosto de você, senhor Richard.

    A caixa de chocolate brilhava sob o sol, mas a garota parecia presa à sombra de sua própria insegurança. Sua respiração entrecortada traía o nervosismo que transbordava em cada palavra.

    Richard, ainda com aquele sorriso plácido, aceitou a caixa com cuidado, como se fosse feita de vidro frágil. Ele segurou o presente com ambas as mãos e inclinou levemente a cabeça.

    — Entendo… — murmurou, pensativo.

    A garota ergueu os olhos com surpresa. Era a primeira vez que o olhava diretamente desde que começara a falar. Breck, do outro lado, franziu o cenho. Algo estava diferente. O sorriso constante de Richard havia desaparecido, substituído por uma expressão neutra — um vazio tão profundo que até Breck sentiu um frio na espinha.

    — Posso te fazer uma pergunta? — Richard perguntou com a voz baixa e tranquila, mas carregada de uma intensidade incomum.

    — A-Ah, claro! — respondeu a garota, nervosa, as mãos apertando a barra da saia.

    Richard hesitou por um instante, escolhendo cuidadosamente as palavras. Ele sabia que desrespeitar os sentimentos dela seria algo que jamais perdoaria em si mesmo.

    — Por que você sente… esses sentimentos por mim? — perguntou, desviando de chamar aquilo de “isso”. Ele não queria que parecesse frio ou depreciativo.

    A menina arregalou os olhos, as bochechas queimando como brasas. Mesmo assim, inspirou fundo e tentou se explicar, sua voz trêmula mas sincera:

    — O senhor é… gentil. Um homem que eu admiro muito. Respeitoso com todos, mesmo sendo quem é. O senhor sempre ajuda as pessoas… sempre sorri para elas. É como se esse sorriso trouxesse calma e segurança. As pessoas se sentem protegidas, sabem? E eu… eu me sinto protegida. — Ela parou, respirando com dificuldade. Seus dedos brincavam nervosamente entre si, enquanto seus olhos desviavam do rosto de Richard. — O senhor é como um herói. Meu herói.

    Richard não respondeu imediatamente, e a garota aproveitou o silêncio para completar, agora quase enterrando o rosto nas mãos:

    — E… e também porque o senhor é muito bonito…

    Breck prendeu a respiração e olhou para Richard, esperando alguma reação. Mas, para sua surpresa, Richard apenas sorriu — aquele mesmo sorriso tranquilo que fazia tudo parecer mais leve. Como ele conseguia ser assim, tão desconcertantemente calmo? Breck não fazia ideia, mas isso apenas o irritava ainda mais.

    As duas empregadas e a amiga loira da garota estavam coradas, incapazes de disfarçar o embaraço que também as atingia. Em suas mentes, cada uma se viu no lugar daquela menina, reunindo coragem para confessar algo tão profundo a Richard. 

    Ainda que sentissem uma pontada de inveja, o discurso foi emocionante o bastante para silenciar qualquer outro sentimento.

    A garota, por sua vez, tapava o rosto com as mãos e balançava a cabeça de um lado para o outro, murmurando “Kyaa…” tão baixo que parecia mais uma brisa do que uma palavra.

    Do lado, Breck fixou seu olhar em Richard novamente.

    Richard?

    Breck engoliu seco. Não era o momento para ele intervir, mas uma parte dele queria dizer algo. Queria entender o que estava passando na cabeça de Richard.

    — Entendo… — murmurou Richard, quebrando o silêncio.

    A menina abaixou as mãos e ergueu o olhar para ele, hesitante. Um sorriso se formou no rosto dele enquanto ele fazia uma longa reverência, quase como uma reverência de agradecimento.

    — Muito obrigado! Obrigado pelos seus sentimentos, pelo seu amor, e por responder à minha pergunta idiota.

    — Ahh! S-Senhor Richard, por favor…

    Ela gesticulou com as mãos, sem saber como reagir. Por um instante, parecia que ia tocá-lo, mas logo se deteve. Richard, para ela, era inalcançável — algo próximo de uma divindade, intocável por pessoas como ela.

    Mas ele prosseguiu.

    — Porém… — Ele pausou, escolhendo as palavras com cuidado. — Eu não posso aceitar os seus sentimentos. Me desculpe.

    O sorriso frágil no rosto da menina desapareceu, substituído por uma expressão tão neutra que até Breck ficou confuso. Tristeza? Decepção? Raiva? Era impossível dizer.

    E então, como se algo dentro dela tivesse quebrado, um sorriso fraco voltou ao seu rosto. Um sorriso que Breck reconheceu imediatamente: o sorriso de alguém derrotado.

    — Eu já imaginava… Muito obrigada por me ouvir, senhor Richard. Eu… — Ela hesitou, engolindo a dor que lutava para escapar. — Eu não sou boa o suficiente para você.

    Richard se retraiu. Não fisicamente, mas Breck viu o reflexo em seus olhos. Um lampejo de dor cruzou seu rosto por um instante antes de desaparecer.

    — Não precisa se preocupar, está tudo bem. — A menina forçou um sorriso. — Eu vou continuar trabalhando fielmente para o senhor! Vou me esforçar para que o senhor fique orgulhoso de mim.

    Sua voz falhou, quebrando em pequenas ondas enquanto ela tentava, com todas as forças, segurar as lágrimas.

    — Eu me contento em apenas estar perto do senhor…

    Richard inspirou fundo. A cena, o peso das palavras, o esforço visível para segurar o choro… tudo isso o esmagava. Ele odiava isso. Odiava aquele ritual de partir corações, odiava o que via nos olhos delas depois. As palavras que vinham a seguir, quase como se fossem um padrão, eram ainda piores.

    “Eu não sou boa o suficiente.”

    Ele ouviu aquilo tantas vezes que parecia gravado em sua mente. E o que mais o corroía era saber que ele pensava o oposto. Ele era quem não era bom o suficiente.

    — Pode ficar com os chocolates, tudo bem? — A voz dela cortou seus pensamentos.

    Richard ergueu o olhar lentamente.

    — Eu ouvi a senhorita Amena e o senhor Elber comentando que o senhor gostava desses chocolates… Então, por favor, aproveite-os.

    Ela fez uma reverência mais uma vez, mas sua voz vacilou no final. Antes que ele pudesse responder, ela se virou e caminhou de volta pelo jardim. Sua amiga, com uma expressão carregada de tristeza, foi logo atrás.

    Enquanto ela se afastava, Richard ouviu um sussurro vindo da loira:

    — Calma, ainda não. Espera a gente entrar.

    Ele ficou em silêncio, assistindo à menina limpar o rosto com as mãos enquanto soluçava baixinho.

    Por alguns segundos, permaneceu curvado em reverência, escondendo seu próprio rosto. Quando finalmente se ergueu, viu as costas dela desaparecerem, os ombros sacudindo em pequenos espasmos.

    Merda…

    O pensamento veio quase como um reflexo.

    Richard olhou para os chocolates em suas mãos, mas eles pesavam como se fossem feitos de chumbo.

    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.

    Nota