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    Ele se sentiu pequeno diante da brutalidade daquelas criaturas.

    Pequeno e… algo mais. Algo começou a arder dentro dele, uma faísca de raiva que crescia a cada segundo. 

    A raiva queimou em seu peito como brasas vivas, nascida da humilhação por sentir-se menor do que aquelas bestas irracionais, criaturas que nem sequer compreendiam o que ele era. Mas Tiko não deixou que ela o consumisse. Apertou o cabo de sua espada, forçando sua concentração de volta para os movimentos imprevisíveis dos javalis.  

    Ele ainda tinha uma carta na manga. 

    Um único golpe especial, um ataque em linha reta que havia passado anos desenvolvendo, aprimorando em meio a treinamentos solitários e estudos limitados. Não era perfeito, nem confiável, e ele sabia que só teria uma chance. Uma única oportunidade de acertar.  

    — Tudo bem… — murmurou para si mesmo, sua respiração pesada escapando como vapor no ar frio. Seu peito se expandiu enquanto enchia os pulmões, e sua postura mudou.  

    A tensão desapareceu de seu rosto como neve derretendo ao sol. O olhar que dirigia aos javalis era afiado, gélido e inabalável. A raiva que antes fervia em seu coração foi reprimida, empurrada para as profundezas de sua mente, como uma fera acorrentada. 

    Agora, apenas o seu eu usual permanecia: um homem acostumado a não ceder às distrações do coração, a bloquear emoções e focar apenas no necessário para sobreviver. 

    Ele não era assim porque queria. Na verdade, odiava aquela parte de si. As emoções ainda estavam lá, enterradas, vivas e pulsantes. Mas reprimi-las era uma necessidade. Permitir que elas o dominassem significaria fraqueza, e fraqueza o levaria à queda.  

    Tiko sabia bem o que significava fracassar. Sabia que, se cedesse, se deixasse aquele vulcão interno explodir, nunca mais conseguiria se reerguer. Então, ele as enterrava. Escondia-as sob a máscara de um homem frio e calculista, porque era isso ou nada.  

    Os javalis avançavam, seus olhos brilhando com pura ferocidade. Tiko aguardava, imóvel, como uma pedra prestes a despencar de um penhasco. Apenas um movimento. Apenas uma chance. E ele faria valer.

    O rosto de Jack veio à tona como uma sombra inevitável. 

    A lembrança daquele dia, daquele momento que despedaçou o que ele era, fez o olhar de Tiko se tornar ainda mais frio, quase congelante. Ele endureceu por dentro. Não havia espaço para distrações, para fraquezas.  

    “Esvazie-se.”

    A ideia martelava em sua mente, uma ordem que ele mesmo forçava a obedecer. De agora em diante, ele teria que ser um casulo vazio, sem espaço para emoções ou memórias. Isso era necessário.  

    Os javalis atacaram, investindo ao mesmo tempo. O mundo pareceu desacelerar ao redor.  

    Então—  

    “Você não precisa esquecer o que é amar.” 

    A voz de um velho ecoou em sua mente. Aquele homem, que mesmo conhecendo Tiko e seus problemas, havia apostado sua própria segurança para ajudá-lo. Um homem que deveria ter se afastado, mas escolheu estender a mão.  

    Se esvaziar significaria apagar a gratidão que sentia por ele? A dúvida relampejou, e o mundo voltou à velocidade normal. Os javalis estavam próximos demais.  

    Tiko saltou.  

    Apoiando-se contra o tronco de uma árvore, ele usou o impulso para uma investida aérea. Os javalis vinham como projéteis, e ele sabia que aquela velocidade, que era a arma mais mortal das criaturas, também era sua ruína.  

    No ar, ele ergueu a lâmina e esperou.  

    Eles não poderiam mudar de direção. A trajetória já estava traçada, e Tiko apenas se posicionou. Quando o primeiro javali passou, sua espada desceu com precisão.  

    O impacto foi devastador. A velocidade da criatura se tornou a força que Tiko precisava. A lâmina cortou através da pele e do músculo como se fosse papel, o movimento se prolongando até rasgar o corpo inteiro.  

    Ele aterrissou no chão com firmeza enquanto o javali desabava atrás dele. Sangue e vísceras se espalharam, o som pesado de algo que jamais voltaria a se erguer.  

    Ainda faltava um.

    Chegar perto demais seria um erro. Ele sabia disso. Não precisava correr riscos desnecessários quando ainda tinha uma carta na manga. Era o momento de usar aquilo — sua única chance, sua técnica especial.  

    O primeiro javali já havia tombado, morto em meio ao sangue e às vísceras. O segundo, que havia interrompido sua investida, começava a se virar, mas o fazia com uma lentidão quase cômica. 

    Essa era a fraqueza deles. Uma vez que a explosão inicial de velocidade cessava, todo o poder que possuíam se desvanecia, e seus corpos pesados se tornavam um fardo, movendo-se a metade do ritmo normal.  

    Tiko observou a criatura com olhos gelados. Agora. 

    Ele abaixou o corpo, dobrando os joelhos e firmando os pés no chão. Com a mão direita, estendeu os dedos indicador e médio, dobrando os outros na palma. Era um movimento calculado, um ritual que conhecia bem. Num arco preciso, ele cortou o ar de um lado ao outro, como se estivesse desenhando uma linha invisível.  

    O mundo pareceu segurar o fôlego.  

    Houve uma distorção. O ar ao redor de seus dedos se curvou, formando uma linha tênue, quase física, que tremulava como o reflexo em água. O vento reagiu, comprimido e moldado por sua força de vontade, e então disparou com uma precisão mortal em direção ao javali.  

    — Corte de Vento! — A voz de Tiko rasgou o silêncio enquanto ele permanecia agachado, a lâmina invisível do vento cruzando a distância entre eles num sussurro afiado.  

    O javali completou o movimento, virando-se para ele… ou pelo menos tentou. A linha cortante o atravessou antes que pudesse reagir. Por um instante, nada aconteceu. Então, com um som surdo, a parte superior do corpo do animal escorregou e caiu, separada de suas patas traseiras.  

    Sangue jorrou como uma fonte, e os órgãos internos se espalharam pelo chão. O cheiro metálico invadiu o ar, misturado com o som abafado da carne caindo no chão.  

    Tiko levantou lentamente, observando os restos do segundo javali enquanto limpava o suor da testa.  

    Dois ataques, duas mortes. 

    Tiko tinha algo que muitos consideravam uma bênção: uma afinidade natural com o elemento do ar. Porém, para ele, essa “bênção” era tão útil quanto um arco sem corda. Diferente de outros elfos que transformavam sua aptidão elemental em maravilhas de utilidade e destruição, ele era um caso à parte — um diletante, alguém que se arrastava nas bases da manipulação mágica.  

    Era quase uma regra entre os elfos: cerca de 90% nasciam com afinidade para algum elemento — água, terra, fogo, ou vento. 

    Essa ligação elemental, combinada com a manipulação da Gama — a energia vital que fluía em todo ser vivo — permitia-lhes moldar os elementos ao próprio capricho. Alguns criavam muralhas de terra para proteger aldeias. Outros invocavam tempestades para purificar rios. A versatilidade era infinita, e o talento definia até onde alguém poderia chegar.  

    Para Tiko, esse “até onde” era pouco mais do que um ponto de partida.  

    Sua habilidade com o vento era… rudimentar. Enquanto outros moldavam rajadas que varriam terrenos ou manipulavam brisas para mover máquinas, Tiko mal conseguia executar uma técnica. 

    Chamá-lo de limitado era generoso — sua única habilidade digna de nota era o Corte de Vento, uma técnica tão simples que beirava o cômico. Ele sabia disso, claro. Havia testemunhado o que pessoas talentosas podiam fazer, e não tinha ilusões sobre onde ele estava nessa escala.  

    Mas o que Tiko não possuía em talento bruto, ele compensava com treino.  

    Aceitando suas limitações, decidiu focar no que podia fazer, não no que queria. Se não podia ser um mestre do vento, ele transformaria o pouco que dominava em uma arma. 

    Como alguém que lutava corpo a corpo, precisava de algo que lhe desse alcance. O Corte de Vento se tornou sua resposta — um golpe direto, confiável e adaptado às suas necessidades.  

    Simples, sim. Limitado, sem dúvida. Mas era funcional. E para Tiko, funcional era tudo o que ele precisava para sobreviver.

    Com o almoço do dia garantido, Tiko sabia que não precisava mais continuar caçando. Contudo, o Corte de Vento tinha consumido uma boa parte de sua Gama, e ele sentia o peso do cansaço. Precisava descansar para recuperar suas forças. 

    Aproximou-se dos dois javalis abatidos, avaliando qual deles seria menos problemático para transportar. Eram grandes, pesados, e levar os dois de uma vez seria impossível. Optou pelo menos mutilado, apoiando-o nos ombros com um gemido de esforço. 

    O outro ficaria para os predadores da floresta — nada se perdia naquele ciclo.  

    Caminhou para fora da mata, o corpo reclamando a cada passo, mas sua determinação o impulsionava. Após alguns minutos, alcançou a borda tranquila da floresta e avistou o destino: a pequena cabana do velho elfo, onde vinha se abrigando nos últimos dias. 

    A construção rústica era cercada por uma simplicidade que contrastava com a densidade opressiva da floresta.  

    Tiko empurrou a porta com um golpe de ombro, carregando o peso do javali e sua exaustão para dentro. Seguiu direto para a cozinha, onde encontrou o velho de pé, calmamente afiando um conjunto de facas sobre uma mesa de madeira já marcada pelo uso.  

    — Não me diga que tá pensando em cortar isso aqui dentro — resmungou o velho, levantando os olhos para o jovem e arqueando uma sobrancelha com desaprovação evidente.  

    Tiko jogou o javali sobre a mesa com um som surdo, o impacto fazendo sangue escorrer pelas laterais, gotejando no chão de madeira desgastada.  

    — Sei lá, você decide — respondeu, secando a testa com o antebraço. — Já fiz minha parte trazendo ele até aqui.  

    O velho soltou um suspiro pesado, observando a bagunça enquanto balançava a cabeça.  

    — Você é um convite ambulante para infecções, garoto.

    Tiko apenas deu de ombros, afundando numa cadeira próxima. Ele estava cansado demais para se importar.

    O corpo de Tiko estava exausto. A luta já havia drenado sua energia, e carregar o pesado cadáver do javali de volta só agravou o desgaste. Ainda assim, ele não conseguia conter um pequeno orgulho que brotava em seu peito. Tudo aquilo — o esforço, a dor, o treinamento — estava valendo a pena. Aos poucos, sentia sua resistência crescer, suas habilidades refinarem, seu conhecimento expandir. 

    Era exatamente o que buscava com tanta determinação.  

    Mas, ao olhar para o velho elfo ainda ocupado com os utensílios de cozinha, o pensamento que tivera na floresta voltou a atormentá-lo. Para provar sua inocência, para desfazer a acusação que o assombrava, até onde precisaria enterrar seus sentimentos? A ideia o irritava, como se algo dentro dele se revoltasse com a necessidade de sufocar o que o fazia ser ele.

    Ainda assim, ele sabia. Era necessário. Precisava ser frio, fechar o coração para o mundo. Qualquer outra coisa seria fraqueza, e fraqueza era algo que não podia se permitir. Mas no fundo…  

    — Vai me ajudar? — a voz do velho interrompeu sua linha de raciocínio.  

    GolbZedh caminhava até o javali sobre a mesa, gesticulando casualmente.  

    — Vou levar isso pro quintal. Não dá pra comer tudo de uma vez, então pensei em vender o resto da carne.  

    Os pensamentos de Tiko se despedaçaram, sua mente puxada de volta à realidade. Ele desviou os olhos para o teto, tentando afastar o incômodo.  

    — Tanto faz… — resmungou, fechando os olhos.  

    GolbZedh, percebendo o desdém, coçou a cabeça e deixou escapar um sorriso de canto. Ele conhecia bem o jovem. Tiko podia se portar como alguém desinteressado, mas o velho sabia como mexer com ele.  

    — Ok, ok. Mas depois não reclama quando a comida estiver salgada ou queimada. Sabe como sou com isso…  

    Tiko abriu os olhos de repente, sentando-se mais ereto. O olhar sério que lançou ao velho foi afiado como uma lâmina.  

    — Nem fodendo. Deu trabalho pra trazer esse javali. Não vou deixar você estragar a carne desse animal com sua comida merda.  

    GolbZedh soltou uma risada que parecia feita para irritar ainda mais. Girou a faca que segurava no ar, pegando-a pelo cabo antes de estendê-la na direção de Tiko.  

    — Então, dá uma mãozinha? — disse com um sorriso que não era nem um pouco inocente.  

    Tiko estreitou os olhos, desconfiado. GolbZedh queria que ele ajudasse na preparação, mas o velho era esperto demais para pedir diretamente. Sabia que Tiko odiava ser mandado ou ouvir conselhos. Se dissesse “Você precisa aprender a cozinhar”, o jovem com certeza soltaria um “Nem fodendo” ou um “Vai se foder” e se recusaria na hora.  

    Mas GolbZedh tinha suas estratégias.  

    — Se foder… — resmungou Tiko, pegando a faca com uma expressão de contragosto. Ele se levantou com relutância, apontando com o queixo para fora. — Vamos logo pro quintal.  

    — Isso mesmo! Pro quintal. — O sorriso no rosto do velho era mais largo agora. 

    GolbZedh sabia que havia ganhado aquela rodada.

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