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    O elfo sentou-se em uma cadeira simples de madeira, na casa modesta onde estava hospedado. Pela janela, observava o movimento da feira logo à frente, barracas coloridas repletas de mercadorias, o burburinho da multidão misturando-se ao farfalhar de folhas no vento. 

    Ele respirou fundo, desviando os olhos para a mesa à sua frente. Sobre ela, um livro aberto — uma lista de objetos comprados, quantidades anotadas em uma caligrafia apressada. Ao lado, um lápis que ele girava distraidamente entre os dedos.  

    Com um gesto rápido, puxou de dentro do casaco um artefato peculiar: um relógio estranho, que parecia quebrado. Os ponteiros estavam congelados, parados no meio-dia, o número marcado em vermelho como se fosse uma advertência silenciosa. Ele prendeu o dispositivo ao pulso e, com a outra mão, girou o pequeno botão na lateral.  

    O relógio emitiu um leve zumbido, e por um momento nada aconteceu. O elfo continuou batendo o lápis contra a mesa, o som seco ecoando pelo espaço. Ele sabia que a conexão demoraria. Sempre demorava. Era uma relíquia antiga, temperamental, mas ainda assim eficiente.  

    Finalmente, o zumbido cessou, substituído por uma voz do outro lado.    

    O elfo endireitou-se na cadeira, apertando o relógio com os dedos enquanto olhava fixamente para o vazio, como se pudesse enxergar a figura distante por trás daquela voz fria. O jogo começava agora.

    — Número Sete, algo a relatar? — A voz grave reverberou diretamente na mente de Sete, carregada de autoridade e sem espaço para hesitação.  

    — Senhor, identificamos uma anomalia. Pequena, mas talvez digna de atenção. Deseja que aprofundemos a investigação? — Sete respondeu, sem mexer os lábios. O dispositivo no pulso traduzia seus pensamentos em palavras, mantendo o diálogo eficiente e silencioso.  

    O mostrador do relógio continuava a girar lentamente. Cinco minutos. Esse era o tempo que tinham antes que a conexão se desfizesse automaticamente.  

    — Defina “pequena anomalia” — exigiu a voz, ríspida.  

    — Durante nossa permanência em Bion, notamos um padrão: doze famílias ou indivíduos, que compravam regularmente na feira, começaram a adquirir uma quantidade significativamente maior de suprimentos.  

    — Doze? — A voz ponderou, carregada de ceticismo. — Um número considerável. Número Cinco já requisitou os históricos dessas pessoas?  

    — Sim, senhor, o pedido foi enviado. — Sete respondeu sem hesitar, atento ao girar constante dos ponteiros.  

    — E os resultados?  

    — Recebemos apenas parte dos dados. Cinco relatórios. Três são de famílias constituídas, dois de indivíduos vivendo sozinhos. Ainda faltam sete registros, senhor.  

    — Entendido. — A resposta veio curta, mas carregada de significado.  

    Sete esperou, imóvel, sabendo que qualquer decisão naquele momento definiria o curso da missão. O relógio continuava seu ciclo, marcando o tempo que restava.

    A missão designada à Numerous, a elite secreta do reino, não era apenas delicada; era vital. Encontrar Tiko, o elfo negro desaparecido e procurado em todo o território élfico, era um trabalho de precisão e paciência.  

    Tiko havia sumido meses atrás. Nenhum rastro nas grandes cidades élficas. Nem mesmo em Infra, o submundo dos elfos negros, onde moedas podiam soltar línguas e revelar segredos. Mas, por mais ouro que tivessem oferecido, nenhum sussurro apontava para sua sombra.  

    Restava uma possibilidade: vilarejos periféricos. Talvez Tiko estivesse escondido em algum canto rural, protegido pela simplicidade e anonimato. Numerous enviou duplas de cavaleiros sagrados para inspecionar os vilarejos durante as movimentadas feiras, mas nenhum sinal do foragido apareceu.  

    Foi aí que surgiu a pergunta que ninguém ousava fazer: como uma única pessoa conseguia enganar toda a força militar do reino?  

    Durante uma reunião, um membro da equipe levantou a questão que mudaria o rumo das investigações.  

    “E se ele estiver recebendo ajuda?”  

    A ideia trouxe clareza. Talvez Tiko não estivesse sozinho. Um cúmplice poderia estar garantindo sua sobrevivência, comprando suprimentos e mantendo o esconderijo seguro. Se fosse verdade, então o próximo passo seria observar os padrões de consumo nos vilarejos.  

    Numerous começou um levantamento detalhado, cruzando dados de mantimentos adquiridos por moradores locais. A lógica era simples: vilarejos eram comunidades pequenas e de recursos limitados. Comprar mais do que o necessário era incomum. Especialmente porque as feiras mensais forneciam uma regularidade que não exigia grandes estoques.  

    Foi então que surgiu um padrão. Doze anomalias. Doze famílias ou indivíduos comprando mais do que precisavam para o mês.  

    A descoberta levantava suspeitas, mas não conclusões. O time precisava ter certeza. Cada membro permaneceu em sua posição, atento aos detalhes. Afinal, a possibilidade de estarem errados ainda pairava sobre eles. Se Tiko, por outro lado, tivesse optado por aparecer nos vilarejos em horários inusitados, roubando ou comprando pequenos mantimentos para se manter, essa linha de investigação perderia o sentido.  

    Mas, se o raciocínio estivesse correto, os cúmplices estariam entre as doze anomalias. Numerous decidiu investigar mais a fundo, agora com foco nos históricos dessas famílias e indivíduos. Havia alguma conexão entre eles e Tiko? Ou talvez com os parentes de Tiko? Qualquer vínculo, por menor que fosse, poderia ser a peça que faltava no quebra-cabeça.  

    Era um jogo de paciência, mas também de precisão. Encontrar Tiko não era apenas uma questão de seguir rastros; era de decifrar padrões e desmascarar aqueles que o protegiam.

    — Essas comunidades mais afastadas… — começou Sete, esfregando o rosto, o cansaço evidente na voz. — A distância das cidades grandes atrapalha. Não temos informações suficientes sobre as famílias deles, os parentes próximos, ou qualquer contato que possam ter tido com a família de Tiko.

    Do outro lado da conexão, a resposta veio em um tom ponderado, quase casual.

    — Vou tentar acelerar o processo de obtenção. Mas, se apressarmos demais, podemos perder algo importante.

    Sete sabia que ele estava certo. Qualquer deslize poderia custar detalhes cruciais. Operações desse tipo eram sempre uma faca de dois gumes: pressionar demais colocava tudo em risco, mas hesitar demais também. O equilíbrio era tênue.

    — Continue — disse a voz, agora mais firme. — Foque nesses cinco indivíduos que já têm históricos registrados. Se aproxime com cuidado, mas não abaixe a guarda. Qualquer um que esteja ajudando um criminoso de nível 3 sabe que está brincando com fogo. Não vão se entregar sem lutar. Tome cuidado com armadilhas. — Ele respirou fundo, uma pausa pesada que deixou o ar carregado mesmo pela linha. — Repasse isso para os outros.

    Sete assentiu, embora soubesse que ninguém podia vê-lo. A tensão era palpável, cada movimento da operação uma nova jogada em um tabuleiro que parecia inclinado a favor do adversário.

    — Certo, senhor — respondeu Sete, com a voz firme. 

    A conexão foi encerrada, e o dispositivo em seu pulso começou a girar de volta à posição de descanso. Uma pequena luz indicava que o tempo de recarga seria de uma hora. Ele suspirou, deixando o olhar vagar pela paisagem além da janela. 

    — O senhor está bem? — Uma voz feminina soou atrás dele, interrompendo seus pensamentos.  

    Sete virou o rosto, encontrando os olhos atentos de Número Cinco. Ela tinha o talento de aparecer sem avisar, uma sombra com presença controlada. Seu jeito furtivo era lendário; os outros da Numerous diziam que ela podia atravessar um campo de folhas secas sem fazer barulho. Mas Sete sabia que, se a ouvia, era porque ela queria ser ouvida.  

    — Ele está… bem, acho. Parecia cansado — disse Sete, voltando o olhar para a paisagem.  

    Cinco se aproximou, passos silenciosos e calculados, como se dançasse no ritmo de um segredo. Com a mesma fluidez, ela se colocou atrás dele, e num gesto que mesclava intimidade e provocação, envolveu-o em um abraço leve, seu corpo quente contra as costas dele.  

    — Os nobres devem estar pressionando como sempre, não é? Primeiro os cavaleiros não conseguem encontrar esse desgraçado, agora jogam tudo em cima de nós. Aposto que estão lá bufando, prontos para explodir, como chaleiras no fogo — murmurou com um sorriso travesso, perto do ouvido dele.  

    Sete não se moveu, mas uma pequena curva em seus lábios denunciava um quase sorriso. Cinco era como um vento inesperado, capaz de aliviar ou tumultuar o momento dependendo de seu humor.  

    — Talvez. Aqueles porcos só sabem pressionar. Têm sorte de termos aceitado essa missão idiota. E, para ser honesto, talvez esse Tiko já esteja morto. Quem sabe não tenha decidido fazer o trabalho por nós e desaparecido de vez? — respondeu Sete, a voz tranquila, como se as investidas de Cinco fossem nada além de um som de fundo.  

    Ela se afastou o suficiente para observar o rosto dele, o sorriso ainda ali, um misto de malícia e curiosidade.  

    — O nosso senhor é bom demais, Sete. Nós servimos ao senhor porque queremos. Ele nos deu mais do que qualquer nobre jamais daria: propósito, liberdade… E agora tudo o que eles sabem fazer é sugar isso dele até não sobrar nada. Eu odeio vê-lo tão exausto.  

    Sete não respondeu de imediato. As palavras dela carregavam uma verdade incômoda, uma que ele preferia não confrontar com frequência.  

    Os Numerous eram um recurso secreto, apenas conhecidos por nobres de alto escalão e pelo próprio rei elfo. Quando a ordem dos cavaleiros fracassava — e o fracasso deles precisava ser mascarado para manter a fé do povo —, missões como essa caíam nos ombros deles. Dez membros, operando nas sombras, usando métodos que ninguém aprovaria publicamente.  

    — Nós fazemos o que precisa ser feito — disse ele por fim, sua voz soando mais para si mesmo do que para Cinco.  

    Ela sorriu, mas não disse mais nada, deixando o silêncio entre eles falar por ela.

    Sete apoiou os cotovelos no parapeito da janela, a voz saindo baixa e calculada, como quem testa a profundidade de um lago antes de entrar.

    — Foi algo por cima — murmurou, o tom despreocupado. — Mas ouvi do Número Dois que aquele elfo negro que comanda Infra… sabe de quem estou falando?

    Cinco inclinou a cabeça, os olhos semicerrados como se caçasse algo na memória.

    — Salazar? — perguntou, com um sorriso que era mais uma adaga do que um gesto amigável.

    — Isso mesmo. Parece que ele anda com problemas para manter o controle daquele buraco.

    Cinco soltou um riso curto, quase debochado, como se a ideia de qualquer um comandar Infra fosse uma piada privada que apenas ela entendia.

    — Não é surpresa — disse, balançando a cabeça devagar. — Aquele lugar não vale a pena ser conquistado. Infra é uma panela de problemas borbulhando ao mesmo tempo, e Salazar… ele está apenas segurando a tampa. Não importa o quão firme seja o aperto, uma hora vai explodir.

    Ela fez uma pausa, os olhos escurecendo por um momento, mas o sorriso permaneceu, afiado e frio.

    — Infra é um monstro desgovernado.

    Sete concordou com um aceno quase imperceptível, como se reconhecesse que as palavras dela eram apenas uma confirmação do que ele já sabia. O silêncio entre os dois era pesado, carregado pela realidade que ambos conheciam. 

    Infra, aquela cidade que parecia cuspida pelas profundezas, continuava a existir apenas porque os nobres do reino elfo decidiam virar o rosto, deixando o caos servir aos seus próprios propósitos.

    Infra tinha sido abandonada há décadas, um lugar onde os elfos negros tentavam sobreviver em uma espécie de distopia autossuficiente. O caos não incomodava os elfos do reino, contanto que houvesse algo para ganhar com isso. E havia. O tráfico de elfos negros para terras humanas era um negócio lucrativo — sujo, vergonhoso, mas lucrativo.

    Os nobres não apenas sabiam; eles lucravam com isso. Propinas discretas atravessavam fronteiras junto com os próprios elfos, alimentando cofres que já estavam cheios, enquanto Infra se contorcia em sua própria degradação. Para os elfos do reino, era uma questão simples: eles não eram afetados. E quando você não é afetado, não é problema seu.

    Um movimento do lado de fora chamou a atenção de Cinco. Um jovem casal de elfos caminhava de mãos dadas, o tipo de cena que parecia deslocada em meio à conversa. Seus olhos brilharam por um instante, algo terno e inesperado cruzando sua expressão antes de ela se virar para Sete, ainda abraçada a ele como parte do disfarce. 

    Sua cabeça inclinou-se levemente, e sua voz saiu em um tom quase sonhador.

    — Ah, que fofos… — murmurou. — Você acha que algum dia eu vou ter algo assim?

    Sete franziu a testa, desconfortável com a direção da conversa. Ele respondeu com um murmúrio quase inaudível.

    — Hm? Er… não sei…

    Então ele suspirou, sua voz ganhando um tom prático e ligeiramente irritado.

    — Por falar nisso, você pode se afastar um pouco? Sei que nosso disfarce é de casal e tal, mas não tem ninguém vendo agora. Não precisa exagerar.

    Cinco estreitou os olhos, e por um instante algo passou por sua expressão — irritação, talvez? Antes que ele pudesse interpretar, ela agarrou a cabeça dele e virou seu rosto, obrigando-o a encarar seus olhos faiscantes.

    — Você realmente não sabe como entrar no personagem, né? — disse ela, com um sorriso que misturava provocação e desafio.

    Antes que Sete pudesse responder, ela inclinou-se e o beijou. Foi breve, intenso e calculado. Quando se afastou, o sorriso dela era o mesmo, mas seus olhos brilhavam com um toque de triunfo.

    — Mesmo que ninguém esteja olhando, eu levo meu trabalho muito a sério, sabia? — disse, com um tom leve, quase brincalhão.

    Sete bufou, desviando o olhar novamente para a janela.

    — Tanto faz.

    Mas ele sentia a presença dela como um peso, algo que não conseguia afastar mesmo que tentasse. E Cinco o observava, os olhos calculistas, brilhando com uma luz traiçoeira. Ela sabia o que estava fazendo, mas, no fundo, odiava isso — odiava ainda mais o fato de não conseguir controlar aquilo.

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