Capítulo 31 - Por Enquanto Aliados
Todas as informações que a Numerous tinha sobre Tiko foram entregues a Jack. Agora, ele possuía o mesmo nível de conhecimento que uma organização inteira dedicada à caça de seu irmão. Esse pensamento deveria deixá-lo satisfeito, mas, de alguma forma, a sensação de realização era incompleta.
Apesar da quantidade de dados em suas mãos, Jack sabia que as informações estavam longe de serem suficientes para garantir sucesso. Muitos registros eram vagos ou incompletos, como os históricos das pessoas que compravam suprimentos a mais. A falta de cobertura abrangente deixava brechas que dificultavam um plano concreto.
Jack suspirou pesadamente, jogando os papéis na mesa improvisada à sua frente. Ele estava chateado, mas sua determinação impedia que deixasse qualquer pista passar despercebida.
— Jack. — A voz de Denzel o tirou de seus pensamentos. O homem entrou no aposento carregando seu equipamento, que havia recuperado na recepção da hospedagem. A política do local proibia armas para não-cavaleiros sagrados, e Denzel, por obrigação, tivera que deixá-las guardadas até então.
— O que foi? Não vê que estou ocupado? — Jack respondeu secamente, sem levantar os olhos do documento em mãos. Sua concentração estava fixada nas informações, embora nenhuma delas estivesse se mostrando útil até o momento.
— Só queria avisar que vou me encontrar com aqueles dois agora.
Jack parou de ler e ergueu os olhos para encarar Denzel. Seu olhar era penetrante, mas não carregava hostilidade.
— Certo. — Jack cruzou os braços, inclinando-se para trás na cadeira. — Não vou perguntar sobre o que vocês esconderam de mim sobre essa tal criatura. Mas, se eles estão implorando por sua ajuda, é porque a situação deve ser perigosa. Não me importa nem um pouco se você vai morrer no processo, mas você me ajudou. Então, pelo menos, tente voltar inteiro pra terminar seu trabalho principal.
O tom despreocupado de Jack não combinava com suas palavras. Era difícil dizer se ele estava sendo sincero ou apenas sarcástico.
Denzel manteve a expressão impassível, como se já esperasse algo assim.
— Certo. Espero que encontre alguma coisa.
Jack deu de ombros e voltou aos documentos.
— Duvido muito. Eles não encontraram nada, então as chances de eu achar algo são mínimas. Mas… vou olhar assim mesmo.
— Nunca se sabe. — Denzel disse, virando-se para sair. — Vai que o universo resolve dar uma ajudinha.
Jack observou a silhueta de Denzel desaparecendo pela porta antes de retornar ao seu trabalho.
Ele já havia analisado três históricos, mas cada página lida apenas aumentava seu cansaço mental. O conteúdo era absurdamente maçante – registros familiares, listas de suprimentos, rotinas irrelevantes. Nenhum detalhe parecia apontar para algo útil.
Jack deixou escapar um suspiro longo e exasperado.
Se pelo menos eu pudesse dormir…
Por mais tentadora que fosse a ideia, ele sabia que não tinha tempo a perder. Com um movimento brusco, pegou o próximo arquivo e começou a ler novamente, determinado a não desperdiçar nenhuma oportunidade, por menor que fosse.
Enquanto isso, a sala permanecia em silêncio, quebrado apenas pelo farfalhar das folhas de papel e a respiração pesada de Jack.
Jack recobrou o ânimo, agarrando o quarto documento sobre a mesa como se fosse uma chave para um segredo esquecido.
— Hm? — Seus olhos se estreitaram, fixando-se em um nome que o fez parar. — GolbZedh…?
O nome reverberou em sua mente como um eco perdido em um vasto salão vazio. Ele sentia que já o havia ouvido antes, mas a origem lhe escapava.
De onde eu o conheço…?
Forçando sua memória, Jack começou a juntar pedaços dispersos de lembranças enterradas sob anos de negligência. Aos poucos, a imagem de uma antiga viagem veio à tona.
Meus pais…
Ele se lembrou de estar em uma carruagem, balançando suavemente enquanto atravessavam uma estrada que serpenteava por entre colinas e bosques. Durante o percurso, um encontro inesperado aconteceu.
GolbZedh era um elfo. Ele cruzara o caminho da família Mingardi em circunstâncias que, à primeira vista, pareciam casuais. Contudo, Jack não conseguia afastar a sensação de que havia mais naquela reunião.
— Foi uma visita? Não… um acaso…? — murmurou, franzindo a testa enquanto forçava a memória.
Aos poucos, a cena clareava. GolbZedh havia surgido durante uma das viagens de seus pais, um conhecido antigo que parecia ter grande intimidade com eles. O encontro foi caloroso, cheio de risos e conversas animadas.
E Tiko… ele estava lá também.
Jack se lembrou de estar deitado na carruagem, lutando contra o sono enquanto as vozes de seus pais e do elfo ecoavam ao redor. Entre as palavras soltas, ele recordou de GolbZedh sendo especialmente gentil com Tiko, interagindo com ele de forma que parecia quase paternal.
— Ele conhecia os meus pais… e Tiko. — A voz de Jack soava quase como um sussurro enquanto as peças do quebra-cabeça começavam a se encaixar.
As palavras de um membro da Numerous voltaram a ecoar em sua mente:
“Nossa teoria é que alguém que conheceu tanto seus pais quanto Tiko esteja ajudando-o a se esconder. Se não for isso, ou ele está morto, ou já deixou o território do reino dos elfos.”
O raciocínio fazia sentido. Tiko nunca seria capaz de escapar sozinho de um cerco de tamanha magnitude. Alguém o estava ajudando, protegendo-o.
— Será que é você, GolbZedh…? — murmurou Jack, encarando o nome no documento.
Um frio correu por sua espinha. Se GolbZedh realmente era o aliado de Tiko, então a situação era ainda mais complicada do que ele imaginava. Jack sabia que precisaria explorar cada fragmento de informação disponível para confirmar essa possibilidade.
Seus dedos apertaram o papel com mais força enquanto a determinação crescia em seu olhar.
— Você não vai escapar para sempre, irmãozinho… — Ele murmurou, a sombra de um sorriso frio surgindo em seus lábios. — Não enquanto eu ainda estiver vivo.
⧫⧫⧫
A noite havia envolvido a floresta em um manto de escuridão, transformando o que antes era um campo sereno e iluminado em um lugar opressivo, hostil. As árvores, altas e retorcidas, agora projetavam sombras grotescas que se moviam com o vento, como se a própria floresta tivesse vida. Era um local onde pessoas comuns jamais ousariam entrar. Mas as três figuras que caminhavam por entre as árvores não eram pessoas comuns.
Número Sete, um dos membros mais habilidosos da organização secreta do reino dos elfos, Numerous, liderava o grupo. Ele empunhava uma espada longa, aparentemente simples, que estivera escondida até então em sua base no vilarejo. No entanto, a simplicidade da lâmina era ilusória, pois a espada carregava em si o encantamento “Flamejante”, tornando-a uma arma de extremo poder.
— Flamejante — sussurrou Número Sete, sua voz ecoando com firmeza pela floresta.
Assim que ele pronunciou o comando, uma pequena labareda irrompeu na lâmina, espalhando faíscas de luz em meio à escuridão. A chama dançou por um momento, sua forma oscilando como ondas que percorrem a superfície de um lago, até crescer e envolver toda a espada. Agora, a lâmina brilhava com um intenso manto de fogo, sua luz pulsando como um coração vivo.
O fogo iluminou o caminho à frente, lançando sombras vibrantes contra os troncos das árvores. A densa escuridão da floresta cedeu parcialmente à presença daquela chama.
— Bem, agora temos a nossa própria lanterninha — disse uma voz feminina, carregada de sarcasmo.
A dona da voz era Número Cinco, outra membro da Numerous, caminhando ao lado de Número Sete. Seu rosto estava marcado por uma expressão severa, mas havia algo quase cômico em seu comentário. Suas mãos seguravam dois estiletes gêmeos, armas feitas sob medida para o seu estilo de luta furtivo e letal. Chamava-os de Irmãos Estocada, e cada um deles possuía um propósito mortalmente único.
O primeiro estilete, batizado de Michele, carregava o encantamento “Perfurar”. Contra inimigos trajando armaduras, essa lâmina era devastadora. O poder do encantamento permitia que ela atravessasse as defesas mais resistentes, transformando proteções outrora confiáveis em pedaços de metal perfurados e inúteis. Número Cinco gostava de relembrar as vezes que guerreiros orgulhosos sucumbiram aos seus golpes, suas armaduras destroçadas como se fossem de papel.
O segundo estilete, Neon, era igualmente temido. Sua habilidade vinha do encantamento “Injetar”, que eliminava a necessidade de revestir a lâmina com veneno toda vez que fosse usada. Ao entrar em contato com a carne de um inimigo, o estilete liberava automaticamente um veneno paralisante. Criaturas menores sucumbiam rapidamente, enquanto as maiores, embora não fossem mortas de imediato, tinham seus movimentos drasticamente desacelerados. Isso dava à Número Cinco a chance de finalizar o trabalho com Michele, sem que o oponente tivesse a menor chance de reação.
Ela girou os estiletes entre os dedos por um momento, observando a luz do fogo refletir nas lâminas.
— Não pense que dependo só de furtividade, Sete. Se as coisas ficarem feias, posso lidar com uma luta cara a cara também — comentou, com um meio sorriso.
Número Sete a ignorou por um instante, sua atenção focada no ambiente ao redor.
Sete virou-se para o terceiro membro do grupo, um homem que permanecia em silêncio, seus passos leves como os de um predador. Ele era Denzel, o Assassino das Sombras, uma figura temida por toda Infra, a cidade dos elfos negros. Sua fama não vinha de magia grandiosa ou equipamentos encantados, mas de uma habilidade que desafiava a lógica e o instinto. Denzel se movia como um sussurro no vento, desaparecendo à vista de todos e abatendo seus inimigos antes mesmo que pudessem perceber o perigo.
Diferente de seus companheiros, Denzel não portava armas imbuídas de encantamentos elaborados. Não era porque ele não valorizava tais ferramentas, mas porque simplesmente não precisava delas. Ele havia aperfeiçoado sua própria magia, uma técnica do estilo vento que o tornava um oponente quase impossível de se enfrentar diretamente. Seu feitiço, batizado de Redemoinho Auxiliar, era uma extensão de sua vontade e de sua perícia mortal.
O feitiço envolvia o corpo de Denzel em um turbilhão constante, uma corrente de ar que parecia viva. Pequenos redemoinhos giravam ao seu redor, confundindo os olhos de qualquer observador e desviando levemente os golpes dos adversários. Para ele, o vento era mais do que uma defesa; era uma arma. Cada empurrão sutil desequilibrava os inimigos, enquanto seus próprios ataques ganhavam precisão e velocidade incomparáveis. Era como se o próprio ar o carregasse para onde ele quisesse ir, reduzindo a distância entre ele e seu alvo em um instante.
Denzel raramente precisava usar o Redemoinho Auxiliar. Sua força física, combinada com reflexos aguçados e uma habilidade impecável com lâminas curvas de aço negro, normalmente bastava para lidar com qualquer ameaça. Ele considerava o feitiço um trunfo, reservado para situações de desvantagem extrema. Afinal, manter aquele turbilhão ativo drenava sua mana rapidamente, e ele preferia lutar com eficiência do que desperdiçar energia.

Mas naquela noite, a situação exigia um nível de preparação diferente. Número Sete havia alertado o grupo de antemão: a criatura que estavam caçando não era apenas perigosa; era calculista. Ela havia emboscado Sete sem aviso, demonstrando um nível de inteligência e paciência que poucos monstros possuíam. Sabendo disso, Denzel ativara o Redemoinho Auxiliar assim que entraram na floresta. O vento ao redor de seu corpo soprava baixo, quase inaudível, mas a força daquela magia estava sempre presente, como uma fera esperando para ser liberada.
Mesmo em meio à escuridão, com a luz do fogo de Número Sete projetando sombras dançantes pelas árvores, Denzel parecia estar em seu elemento. Ele era uma extensão da floresta sombria, movendo-se com graça e precisão, seus olhos analisando cada detalhe, cada movimento.
Esses três não eram aliados no sentido convencional. Não havia camaradagem ou confiança entre eles. O que os unia era algo mais frio e direto: um propósito.
E aquele propósito era matar.
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