Capítulo 38 - Encontro
— Prometo…? — Richard balbuciou.
O teto sobre sua cabeça era diferente do que ele lembrava, pois havia dormido em um lugar que não era sua casa. Enquanto repousava em sua própria residência, quase nunca conseguia se lembrar dela, tampouco de seu rosto. Isso porque a lembrança lhe trazia um pesar indescritível. Contudo, estranhamente, ao se afastar de casa, sentiu-se mais sereno e, pela primeira vez em muito tempo, teve a oportunidade de sonhar com ela novamente. Foi um bom sonho, distinto dos pesadelos que costumavam atormentá-lo.
— Será que minha vontade de ajudar Tiko pode ser considerada uma forma de egoísmo? — murmurou para si mesmo, sorrindo fracamente enquanto ainda permanecia deitado.
Foi então que um som de vidro se estilhaçando seguido por um baque surdo sobre o piso de madeira atraiu sua atenção. Richard sentou-se rapidamente, voltando o olhar para fora do quarto. A porta estava entreaberta, e ele pôde avistar Tiko, parado, com os olhos arregalados diante de algo que Richard não conseguia discernir de seu ângulo.
— Velho! — gritou Tiko, correndo na direção do que observava com desespero.
Richard reagiu de imediato, levantando-se e seguindo apressado.
A cena que se desenrolou diante dele foi um borrão de instantes intensos — GolbZedh jazia no chão, sangrando com uma flecha cravada no peito, enquanto Tiko se ajoelhava ao seu lado, chamando-o freneticamente. Não foi o choque que ofuscou os acontecimentos, mas sim a súbita entrada de outra flecha pela janela, quebrando o vidro e rumando na direção de Tiko.
Richard moveu-se com uma agilidade impressionante, interceptando a flecha no ar com uma das mãos.
— Velho! Velho! Acorde! — Tiko clamava, tomado pelo desespero.
Richard dirigiu o olhar para fora da casa.
Duas figuras, duas presenças distintas. Ele não precisou utilizar sua bênção para percebê-las. Os dois indivíduos discutiam acaloradamente do lado de fora, e pela janela, Richard pôde identificar um elfo de pele escura debatendo-se de forma exaltada com outro de cabelos dourados.
Richard sabia que precisava agir rápido.
Ele se ajoelhou ao lado de Tiko, pousando a mão sobre seu ombro.
— Tiko, vou curar GolbZedh. Assim que eu der o sinal, arranque a flecha com firmeza.
— Eu… eu…
— Tiko, preciso de você! Concentre-se! — ordenou Richard, elevando a voz para arrancá-lo da névoa de pânico.
As palavras firmes de Richard trouxeram Tiko de volta à realidade, ainda que sua ansiedade fosse evidente.
— Não temos muito tempo. Prepare-se para retirar a flecha. Assim que eu sinalizar, começarei a cura. — instruiu Richard, posicionando as mãos próximas ao ferimento em um gesto de concentração, com as palmas formando uma concha.
Tiko segurou a flecha com determinação, e assim que Richard assentiu com a cabeça, ele a arrancou com força. O sangue jorrou, espalhando-se rapidamente.
Utilizando sua Gama, Richard iniciou um procedimento minucioso que poucos ousariam tentar. A técnica era conhecida como Injeção de Gana.
Com precisão, ele canalizou sua energia mágica diretamente no corpo de GolbZedh, onde a mana atuava como uma aura restauradora. Essa energia se transformava em nutrientes que aceleravam o processo de regeneração celular, fazendo tanto o ferimento externo quanto os danos internos se fecharem em uma velocidade incomum.
Era, essencialmente, o mesmo princípio utilizado na criação de poções por meio mágico, com a diferença de que o método tradicional envolvia converter mana em um conteúdo líquido, o que levava semanas para ser finalizado. Nenhum outro indivíduo no mundo seria capaz de reproduzir aquele efeito com tamanha eficiência.
— Ele vai estabilizar. A flecha possuía veneno? — questionou Richard, sem desviar os olhos de GolbZedh.
— N-Não… por sorte, não. — respondeu Tiko, aliviado.
— Ainda bem. Não carrego antídotos comigo e não possuo habilidades para lidar com venenos.
Pouco a pouco, tanto o ferimento interno quanto o externo foram completamente tratados, e o homem já não corria risco de vida, embora permanecesse inconsciente.
— Pronto. Ele ficará bem. — declarou Richard.
— Obrigado, Richard!
— Não precisa me agradecer. — Richard direcionou seu olhar para a porta da casa. — Temos problemas maiores agora.
Tiko seguiu o olhar de Richard até a porta, que foi subitamente escancarada com um estrondo ensurdecedor. A porta bateu contra a parede com tal violência que a maçaneta voou pela sala, pousando em um canto distante.
Um elfo de cabelos dourados entrou na casa, empunhando um arco.
— Parece que está bem… Tiko. — disse Jack, com uma voz que oscilava entre sarcasmo e ameaça.
— Jack…? — murmurou Tiko, completamente desnorteado.
Alguns passos atrás de Jack, um elfo negro empunhando duas katar observava atentamente a cena. Assim que seus olhos se fixaram em Richard, arregalaram-se como se tivessem acabado de avistar uma criatura lendária.
— É ele mesmo… — murmurou Denzel, o semblante tomado por uma surpresa visível. — O que Richard Ravens está fazendo aqui?
Richard, ao ouvir seu nome ser mencionado pelo homem à sua frente, ergueu-se do chão, fixando ambos os intrusos com um olhar cortante e carregado de intensidade.
— Você é o irmão de Tiko, certo? — indagou Richard, a voz firme como aço temperado.
— Richard Ravens? O dito homem mais forte do reino? Hahaha! Que absurdo um cavaleiro sagrado renomado como você estar aqui ao lado de um criminoso procurado em todo o país, a menos que esteja prestes a prendê-lo! — zombou Jack, a expressão repleta de sarcasmo e um sorriso cínico curvando seus lábios enquanto cada palavra era dita com escárnio.
Enquanto os dois homens trocavam farpas, Tiko analisava lentamente a situação, e um sentimento de revolta começava a fervilhar dentro de si. GolbZedh ainda estava estirado no chão por conta daquela flecha. Jack, por outro lado, segurava um arco em mãos. A dedução era inevitável.
— Jack… — Tiko rompeu o silêncio, sua voz oscilando entre uma raiva contida e uma melancolia sufocante. Ele se levantou, o semblante marcado por uma mescla de dor e indignação. — Foi você quem atirou?
Jack abriu um sorriso presunçoso, quase desdenhoso.
— Não está óbvio? — respondeu com desdém.
Tiko cerrou os dentes, a frustração crescendo dentro de si como um incêndio descontrolado.
— Por mais que já tenhamos conversado antes, e por mais que você continue acreditando no contrário, eu não matei nossos pais. Contudo, isso é irrelevante agora. Se acredita ou não, pouco me importa. O que realmente quero saber é… — Tiko fixou Jack com um olhar furioso, sua presença quase sufocante. — Enquanto estava escondido, você poderia simplesmente ter atirado em mim. Um único disparo na cabeça e eu não teria como reagir. Então por que, Jack? — sua voz transbordava uma fúria contida, mas os olhos brilhavam com uma inquietação genuína. — Por que atirou nele?
— Por que eu atirei nele? — Jack repetiu, o tom impregnado de sarcasmo, como se a resposta fosse óbvia demais para ser perguntada. — Claramente, para te atingir. Você estava tão radiante ao lado daquele velho desgraçado que não pude resistir à vontade de matá-lo na sua frente. Haha!
Os risos insolentes e o tom cruel com que Jack proferiu essas palavras fizeram a raiva de Tiko transbordar. Incapaz de se conter, ele deu um passo à frente, pronto para avançar sobre Jack, mas foi imediatamente interrompido por Richard, que ergueu o braço, barrando seu ímpeto.
— Devo alertá-lo que suas ações configuram tentativa de homicídio, Jack. Como cavaleiro sagrado, não posso ignorar isso. — declarou Richard, encarando Jack com um olhar severo e cheio de propósito.
Denzel deu um passo para trás, a apreensão clara em seu semblante.
Não havia uma única alma no reino que desconhecesse o homem à sua frente, e Denzel não desejava, sob nenhuma circunstância, tornar-se inimigo dele. Um dos princípios mais essenciais para a sobrevivência era compreender seu lugar no mundo. Enquanto lidasse com pessoas mais fracas que ele, havia uma boa chance de sobreviver, possivelmente até envelhecer em paz. Porém, cada fibra de seu corpo, moldada pelo instinto de preservação, gritava para que fugisse imediatamente.
Richard Ravens não era um adversário que ele pudesse enfrentar, nem mesmo em milênios.
— Jack… acho melhor nós… — começou Denzel, a preocupação marcando seu tom de voz e expressão.
— Cale-se! Agora que encontrei esse sujeito, não vou embora de jeito nenhum! — Jack vociferou, sem sequer lançar um olhar para Denzel. Seu foco permaneceu em Richard, a quem encarava com um sorriso cínico e vazio. — Que tipo de joguete patético é esse, Richard Ravens?
— Joguete? Do que exatamente está falando? Estou apenas cumprindo meu dever como cavaleiro, não… — Richard respondeu, mas foi abruptamente interrompido por Jack.
— Então você pretende me prender por tentar matar um homem que estava conspirando com um criminoso? Ajudando-o a se esconder em sua própria casa?
Jack riu, satisfeito ao notar a expressão de surpresa e inquietação que cruzou o rosto de Richard.
Durante toda a conversa, Jack analisava meticulosamente a situação. Richard Ravens era um cavaleiro sagrado, e, se realmente fosse aliado de Tiko há muito tempo, era improvável que Tiko ainda enfrentasse dificuldades relacionadas ao reino. Afinal, considerando a influência de Richard, ele teria poder suficiente para interceder, apaziguar conflitos e até mesmo auxiliar na absolvição de Tiko, dependendo das circunstâncias.
No entanto, nada disso havia ocorrido. Esse fato indicava que devia haver um motivo subjacente para tal omissão.
Jack concluiu que havia uma razão pela qual Richard não havia inocentado Tiko, mesmo sendo aliados. No entanto, descobrir o motivo exato era uma tarefa impossível. Bastava saber que ele existia para que a situação pendesse a favor de Jack.
O simples fato de Richard Ravens estar presente ao lado de Tiko naquele lugar o colocava como cúmplice de um criminoso. E quais seriam as repercussões disso para a reputação de Richard? Até onde essa revelação poderia destruir não apenas seu prestígio, mas também o legado de sua família?
É claro, sem provas contundentes, Richard poderia simplesmente negar tudo, e sua palavra teria muito mais peso do que a de Jack. Mesmo que Denzel corroborasse sua acusação, os nobres apenas veriam um elfo negro que supostamente teria sido subornado para apoiar uma denúncia duvidosa. Assim, usar Denzel para esse propósito seria um erro estratégico de Jack.
Pela postura de Richard, que oscilava entre a passividade e a agressividade, Jack deduziu que ele talvez não tivesse interesse em um confronto direto. Isso era vantajoso, pois Richard não era o alvo que Jack procurava.
Se fosse para definir a maior qualidade de Jack em um aspecto específico, seria justo dizer que ele era um exímio arqueiro. Sua precisão era excepcional, quase inigualável. No entanto, o que verdadeiramente fazia Jack se destacar era algo mais profundo e estratégico.
Não foi por mero acaso que Jack descobriu tantas informações sobre os nobres corruptos do reino. Não foi sorte que o levou a manipular as circunstâncias com precisão cirúrgica, garantindo o auxílio e os recursos necessários para chegar a esse momento.
Embora certos eventos tenham ocorrido de forma imprevista, como o encontro prematuro com Tiko graças ao apoio de Minggu e à eficiência inesperada de Denzel, boa parte do cenário atual seguia de acordo com os planos de Jack.
Sua arma mais poderosa, neste instante, não era sua habilidade com o arco. Era seu vasto conhecimento político.
— Richard Ravens ajudando um criminoso? Parece que até mesmo o cavaleiro sagrado mais renomado do reino possui raízes na corrupção. — disse Jack, esboçando um sorriso provocador, claramente tentando minar a confiança de Richard.
— Isso não é… — murmurou Richard, seu rosto começando a se contorcer em um misto de frustração e hesitação.
Embora desejasse revelar a Jack, o irmão de Tiko, que Tiko era inocente, Richard sabia que não poderia fazê-lo tão abertamente. As implicações seriam graves. Caso revelasse a verdade, perguntas inevitáveis surgiriam, forçando-o a expor sua bênção divina. E ele não confiava em Jack, muito menos no homem ao seu lado. Informações tão delicadas poderiam ser exploradas de maneira desastrosa, especialmente após testemunhar o que Jack havia feito momentos antes com GolbZedh, um homem de natureza inquestionavelmente gentil.
— O que foi, Richard Ravens? O gato comeu sua língua? Você é ou não é aliado dele? — pressionou Jack, sua voz carregada de sarcasmo enquanto buscava arrancar uma resposta.
Richard sentia-se encurralado. Ele não podia simplesmente dizer “sim”. Admitir isso equivaleria a confessar cumplicidade com um crime contra o reino. Sem provas concretas da inocência de Tiko, ele estaria colocando não apenas sua reputação, mas também seu juramento como cavaleiro em risco. Ainda assim, revelar sua bênção de detectar mentiras era uma jogada que ele não podia se permitir. Era um trunfo valioso demais para ser exposto publicamente.
— Richard… — murmurou Tiko, seus olhos arregalados em descrença enquanto encarava o cavaleiro.
— Eu… — balbuciou Richard, sua voz carregada de angústia.
Jack permanecia com um sorriso ácido estampado no rosto. Aquela era a cena que ele desejava ver.
— Eu, Richard Ravens, não sou aliado deste homem. Vim até aqui para prendê-lo e levá-lo à justiça… — declarou Richard, cuspindo as palavras como se cada uma delas fosse uma lâmina cortando sua alma.
Tiko o encarava, incrédulo, completamente atordoado pelo que acabara de ouvir.
A partir daquele momento, Richard havia se tornado seu inimigo.
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