Capítulo 40 - Liberdade
Tiko havia chegado ao topo do pico, onde a vastidão do mar se estendia diante dele, cercando todo o continente. Ele encarava aquelas águas com um olhar exausto.
Quanto mais ele teria que avançar para conquistar o que desejava? O que deveria deixar para trás para alcançar sua própria justiça? De certa forma, sua esperança havia ressurgido, mas parecia que a cada passo que dava, algo novo surgia para destruí-lo completamente.
Tiko respirou profundamente.
— Não posso desistir — disse para si mesmo.
— Você não é de desistir, não é? — A voz de Richard soou por trás dele, sua expressão impassível. — Não é o tipo de pessoa que se rende, eu sei disso.
— Pois é… parece que não somos mais aliados agora — respondeu Tiko, virando-se para encarar Richard.
— Sim… eu sinto muito por isso. Não posso arriscar o reino por sua causa. Preciso te prender e… você será julgado por crimes que não cometeu. Lamento profundamente — respondeu Richard, a dor evidente em sua voz.
— Dá para ver na sua expressão que você não queria chegar a isso, Richard. Mas não posso negar que me senti traído pela sua decisão…
— Claro, não posso deixar de me odiar ainda mais por isso…
Richard respirou profundamente e começou a caminhar na direção de Tiko.
— Não tente nada.
— Você sabe que é impossível — respondeu Tiko com um sorriso amargo.
Tiko uniu os dedos, o indicador e o do meio. Seu golpe especial, sua única arma capaz de ajudá-lo naquele momento, seu trunfo secreto. O corte de vento cortou o ar, lançando-se na direção de Richard quando ele deslizou os dedos verticalmente no ar.
Logo após disparar o ataque, Tiko saltou de costas para o mar.
Richard observou o ataque mágico de vento de Tiko com surpresa, mas aquele golpe era demasiadamente lento para atingir sua velocidade.
Para uma pessoa comum, seria mais rápido do que o disparo de uma flecha, mas Richard não era uma pessoa comum. O ataque, que normalmente poderia cortar até as criaturas mágicas da floresta, parecia aproximar-se dele em câmera lenta.
Não apenas o golpe, mas Tiko também caía em câmera lenta. Richard possuía força o suficiente para desviar do ataque e capturar Tiko sem a menor dificuldade. Ele deu o primeiro passo. Ele faria isso. Ele precisava fazer isso…
“Prometo.” Richard recordou dessas palavras. Recordou da promessa feita para sua querida e amada mãe. Ele prometera ser mais egoísta, prometera buscar sua liberdade. Mas, na verdade, ele nunca havia realmente perseguido o que tanto desejava. O que ele poderia fazer agora? Desistir de tudo? Abandonar tudo? A maldição de ser Richard Ravens ainda o consumia, roubando-lhe toda a felicidade, e ele não conseguia ver nenhuma forma de mudar isso. Ser egoísta, aqui e agora, seria crucial, seria o único momento de rebeldia contra tudo e todos.
Richard amava sua irmã mais nova.
Amava Breck, um amigo querido, apesar de Breck ter lhe dito em sua cara que o odiava.
Amava sua falecida mãe.
Mas ele se odiava. E, mais importante ainda, odiava estar vivo.
O corte de vento aproximava-se lentamente de Richard, serpenteando pelo ar como uma lâmina reluzente. O brilho peculiar que emanava do ataque parecia pulsar, refletindo uma luz espectral que não vinha de lugar algum, mas que, ainda assim, iluminava as sombras ao redor. Cada centelha daquele resplendor parecia uma sentença, um presságio inevitável do que estava por vir. Richard fitava aquilo com uma ansiedade silenciosa, não de medo, mas de algo mais profundo, mais corrosivo. Um peso se alojava em seu peito, um aperto frio e sufocante, um sussurro de culpa que o perseguia há tempo demais.
A decisão já estava tomada. Ela não surgiu de repente, nem foi uma escolha impensada. Pelo contrário, era uma semente enraizada nas profundezas de sua alma, crescendo entre seus arrependimentos e sua exaustão. Um fardo que ele carregava sozinho, dia após dia, sem nunca demonstrar sua dor. Mas agora… agora ele queria soltar esse peso. Queria ser egoísta. Por uma vez, apenas uma única vez.
— Mãe… será que eu posso ser um pouco egoísta agora? — Sua voz não passou de um sussurro, quase abafado pelo uivo cortante do vento.
Seus olhos se fecharam devagar, como quem se entrega a um sonho, ou talvez a um pesadelo sem fim. Seus dedos, antes firmes e determinados, tremeram levemente ao desativar as defesas mágicas que protegiam seu corpo. Num gesto solene, quase ritualístico, ele abriu mão de tudo o que o tornava forte, de tudo que o mantinha invulnerável. Não havia hesitação em seus movimentos. Apenas aceitação.
O corte de vento, fraco e hesitante, atravessou-o sem resistência. A lâmina etérea encontrou sua carne com uma facilidade cruel, rasgando-o como se ele não passasse de papel. O som foi abafado, quase gentil, mas a destruição que causou foi absoluta. Em um instante, Richard foi dividido em duas metades. O sangue jorrou em um rio escarlate, encharcando o solo, tingindo a grama com um vermelho intenso e vibrante. Seu corpo, sua essência, sua história… tudo se partia.
E, no entanto, em meio à brutalidade daquele fim, Richard sorriu.
Não um sorriso de dor. Não um sorriso de desespero. Mas um sorriso genuíno, tranquilo, repleto de uma paz que ele nunca havia conhecido. Ele caía em pedaços, mas pela primeira vez em anos, sentia-se livre.
Tiko assistia à cena em completo choque, seus olhos arregalados, sua mente recusando-se a aceitar a realidade diante dele. O ar parecia denso, pesado, sufocante. O tempo desacelerou. Nada fazia sentido.
— RICHARD! — O grito veio rasgado, desesperado, enquanto ele caia.
O corpo de Richard, mesmo dilacerado, ainda exalava uma energia intensa. Ele não morria de imediato. Seu poder, aquele que sempre o mantivera de pé, agora o forçava a permanecer consciente por mais alguns segundos, obrigando-o a sentir cada fração de dor, cada batida agonizante de seu coração.
Cada respiração era um suplício. O sangue quente se acumulava em poças ao seu redor. Seu corpo pulsava em um tormento indescritível, como se sua própria existência se recusasse a deixá-lo partir. Mas, por baixo da dor, por baixo do sofrimento insuportável, havia algo diferente. Algo estranho. Um calor acolhedor se espalhava por ele, como se mãos invisíveis o estivessem conduzindo suavemente para o descanso.
— Finalmente… — murmurou, quase inaudível.
Ele sabia que estava sendo egoísta. Sabia que aqueles que se importavam com ele sofreriam. Por um instante, flashes de rostos conhecidos passaram por sua mente: amigos, aliados, aqueles que acreditavam nele. Viu seus sorrisos, suas lágrimas, suas esperanças depositadas nele. Uma pontada de tristeza perfurou seu peito, mas foi passageira. Pequena. Irrelevante.
Porque, pela primeira vez, ele escolheu por si mesmo.
Pela primeira vez, ele não se importava com as consequências. Não se importava com o vazio que deixaria para trás. Pela primeira vez, Richard Ravens abandonou o peso do mundo que sempre carregou nos ombros. E enquanto a escuridão o envolvia, enquanto o silêncio se tornava absoluto, ele encontrou o que sempre buscou, mas nunca teve coragem de alcançar.
Paz.
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