Capítulo 46 - Escravos
— Coloquem todos dentro da carruagem! — bradou uma voz áspera.
O comando veio de um elfo negro de postura rígida e olhar cortante, cuja presença impunha respeito e temor. Seus subordinados, também elfos negros, obedeceram prontamente, movendo-se com eficiência fria.
Do interior de um galpão de madeira, cuja estrutura envelhecida rangia sob o peso do tempo, surgiu uma fileira de figuras sombrias. Subindo lentamente as escadas que conduziam a uma entrada subterrânea, os elfos negros emergiram, acorrentados uns aos outros. Havia entre eles homens, mulheres e até crianças — um retrato desolador de fragilidade e submissão. Suas roupas rasgadas e corpos magros revelavam o sofrimento prolongado a que haviam sido submetidos. A maioria exibia sinais claros de desnutrição e doença, enquanto seus olhares vazios denunciavam um estado de espírito quebrado.
Mesmo assim, eles continuaram avançando, passos arrastados e olhos baixos, movidos por um temor que os mantinha em movimento. O medo de represálias físicas parecia ser o único fio que os impedia de desmoronar.
Os guardas que os vigiavam, armados e impacientes, começaram a empurrá-los sem cerimônia para dentro das carruagens. Eram três veículos robustos, protegidos por grades de ferro enferrujadas, como gaiolas ambulantes. Cada carruagem foi preenchida com seis ou sete prisioneiros, apertados como gado à espera do abate.
— Os compradores devem chegar em menos de um dia — declarou o líder, a voz firme ecoando pelo pátio. — Esperem por eles durante dois dias. Se não aparecerem, retornem imediatamente.
— Sim, senhor! — responderam em uníssono os guardas, reverentes.
Não demorou para que o grupo designado para escoltar os cativos — sete homens armados, vestidos em mantos escuros e carregando lâminas afiadas — iniciasse a marcha. As rodas pesadas das carruagens rangiam contra o solo irregular, partindo da cidade de Infra rumo ao desconhecido.
A viagem prometia ser longa, estimada em pelo menos oito horas ou mais. Infra, situada nas margens do território dos elfos, já se encontrava próxima das fronteiras externas, mas o caminho escolhido tornava o percurso ainda mais complicado. Eles seguiriam pela Floresta de Abelium, uma extensão selvagem e traiçoeira, desviando-se das trilhas principais e evitando a profundidade do bosque. Embora o terreno fosse irregular e desprovido de estradas adequadas, a escolha dessa rota não era acidental.
A floresta, por sua fama de ser perigosa e inexplorada, raramente atraía patrulhas de cavaleiros sagrados. Esse isolamento natural era o que tornava o trajeto ideal para aqueles que buscavam agir longe dos olhos vigilantes da lei. Mesmo com os riscos inerentes — feras selvagens e terrenos traiçoeiros —, a possibilidade de escapar ilesos era preferível ao risco de cruzar com um cavaleiro e ter a operação comprometida.
Com passos firmes e armas prontas, os guardas mantinham a atenção redobrada, enquanto as carruagens seguiam lentamente pela trilha sombria, desaparecendo sob o dossel cerrado das árvores de Abelium.
Após algumas horas de viagem, os primeiros sinais de cansaço começaram a se misturar com a fome e a sede entre os vigias. Por fim, o grupo decidiu interromper a marcha para descansar e se alimentar. A escolha de quem ficaria de guarda recaiu sobre um método rudimentar, mas eficiente — um rápido jogo de pedra, papel e tesoura.
O azar apontou para Sigurd e Miasme, os dois que agora ocupavam seus postos de vigia com visíveis expressões de desagrado. Enquanto os outros cinco sentavam-se em círculo para devorar o almoço, os dois azarados se afastaram, cada um assumindo sua posição designada.
— Que droga… Nunca tenho sorte nessas porcarias. — reclamou Sigurd, cruzando os braços e se encostando contra o tronco áspero de uma árvore.
Seu companheiro, Miasme, parecia igualmente desconfortável, mas havia algo de peculiar em sua postura. Sigurd notou a inquietação, mas o que realmente chamou sua atenção foi o item incomum que o outro usava no rosto.
— E essa máscara aí? Pra que serve? — perguntou, franzindo o cenho.
Durante os dois anos em que trabalharam juntos, Sigurd jamais vira Miasme usando aquela máscara. Embora não fossem amigos íntimos, conheciam-se o suficiente para que esse detalhe não passasse despercebido.
— Hm… descrição, eu acho. — respondeu Miasme, de forma hesitante.
A voz dele soou estranha, como se estivesse sendo filtrada por algum tipo de magia. Era um tom distorcido, metálico, e aquilo fez Sigurd erguer uma sobrancelha.
— Essa máscara é encantada? — questionou com curiosidade crescente.
— Sim. — disse Miasme, curto e direto.
— Oh! Sério? Onde conseguiu? — Sigurd inclinou-se levemente, interessado.
— Hm… foi um presente… de um familiar. — respondeu, sua hesitação tornando-se mais evidente.
Sigurd estreitou os olhos.
— Familiar? Achei que você tivesse perdido toda a sua família no ano passado.
— Hm… ah… er… não exatamente de sangue. — Miasme pigarreou antes de continuar. — Mas eu o considero família.
Algo na resposta parecia forçado, mas Sigurd decidiu não pressioná-lo.
— Entendi. É bom saber que você encontrou alguém assim. Acho admirável quando conseguimos construir laços com as pessoas certas. — Ele lançou um olhar enviesado para o grupo reunido ao redor da refeição, o cheiro de comida chegando até ele como uma provocação. — Ahhhh… estou com fome. — resmungou, passando a mão no estômago vazio e soltando um suspiro frustrado.
Mais algumas horas se passaram. Após a breve pausa para o almoço, o grupo já estava novamente em marcha, avançando pelas trilhas estreitas e escuras da floresta. O ranger das rodas das carruagens sobre o solo irregular ecoava entre as árvores, misturando-se com os sons abafados de soluços e murmúrios vindos das jaulas de ferro. Dentro delas, os prisioneiros — elfos negros capturados em Infra — choravam baixinho, suas vozes quase inaudíveis, como se até mesmo lamentar em voz alta pudesse lhes custar caro.
Os vigias, no entanto, estavam acostumados com aquele tipo de som. Para eles, aquilo não passava de ruído de fundo, fácil de ignorar. Na visão deles, era apenas mais um reflexo brutal da lei da sobrevivência, onde os fracos caíam e os fortes prosperavam. Afinal, aqueles elfos escravizados não haviam tido forças para se proteger. Muitos eram mulheres e crianças arrancadas de suas casas, vendidas por preços exorbitantes aos humanos. Infra, sendo um lugar onde o medo dominava, forçava as famílias a trancafiarem seus filhos dentro de casa na esperança de evitar que sumissem para sempre.
Ainda assim, boatos recentes circulavam entre os elfos negros sobre um “Milagre”. Assim o chamavam aqueles que, de forma inesperada, haviam recuperado membros perdidos de suas famílias.
— Ei, vocês ficaram sabendo? Dante foi morto. — comentou um dos vigias, quebrando o silêncio que havia dominado o grupo.
— O quê? Fala sério! — outro respondeu, levantando os olhos como se aquilo fosse uma piada de mau gosto.
— Ouvi dizer a mesma coisa. Mas será que é verdade?
— Se for, é melhor pra gente. Menos concorrência significa mais clientes.
A afirmação fez os vigias sorrirem. Era uma lógica simples, mas eficaz. Se uma organização rival desmoronava, as que restavam colhiam os frutos. Para eles, mais clientes significava mais trabalho, mais dinheiro e, consequentemente, mais conforto. Dos sete homens ali presentes, quatro tinham famílias — esposas e filhos que dependiam do que ganhavam naquele negócio repulsivo. Nenhum deles desejava ver seus próprios filhos na situação dos prisioneiros que transportavam, e por isso se agarravam à única certeza que conheciam: dinheiro era igual a poder.
Quanto mais ouro acumulassem, mais poderiam investir na segurança de suas famílias. Em Infra, isso era quase literal. Salazar, conhecido como o “Intocável” e considerado o dono não oficial da cidade, oferecia proteção pessoal mediante pagamento. Uma moeda de ouro por criança e duas por adulto garantiam a segurança dos protegidos por um mês inteiro. Sob sua guarda, ninguém ousava tocar nessas pessoas.
— Nenhuma organização de escravos é louca o suficiente pra mexer com alguém sob a proteção de Salazar. — murmurou um dos vigias.
No entanto, essa proteção tinha limites. Organizações criminosas, como a deles, não podiam comprar a própria segurança. Apenas suas famílias podiam ser protegidas. Isso os deixava vulneráveis, e todos sabiam disso.
— Sei não… se Dante foi morto e a organização dele destruída, o que impede de acontecer o mesmo com a gente? — perguntou Sigurd, olhando ao redor como se o próprio Denzel pudesse surgir das sombras a qualquer momento.
— Porra, cala essa boca! — respondeu outro, irritado.
— Mas o baixinho tem razão. Pensem bem. E se alguém pagar o Denzel pra vir atrás de nós também?
— Peraí! — exclamou um terceiro vigia, arregalando os olhos. — Tá me dizendo que foi o Denzel, o Assassino das Sombras, que matou o Dante?
— Foi ele, caralho. Quem mais teria força pra fazer isso sozinho? O cara saiu da base do Dante coberto de sangue, e logo depois um monte de elfos negros que estavam presos lá dentro escaparam.
O grupo ficou em silêncio por alguns instantes. As palavras pairavam pesadas no ar.
Cada elfo negro em Infra conhecia o medo de subir demais na vida. Quem crescia, virava alvo. Quem virava alvo, tornava-se um nome na lista de alguém disposto a pagar pela sua queda. Em Infra, ninguém realmente confiava em ninguém.
— Caralho… então é algo a se pensar mesmo. — murmurou um dos vigias, apertando o cabo de sua espada como se isso pudesse protegê-lo da sombra de Denzel.
E assim, enquanto avançavam pela floresta, o medo começou a se infiltrar entre eles, como uma serpente rastejando pelas raízes. O massacre de Dante não era apenas uma história. Era um aviso. E agora, mesmo aqueles que se achavam intocáveis começavam a se questionar o quão seguros realmente estavam.
A viagem estendeu-se por longas sete horas. Graças à escolha do caminho sinuoso pela floresta de Abelium, o grupo conseguiu economizar cerca de uma hora — uma vantagem que seria impossível caso optassem pela estrada principal. Embora o trajeto pela floresta fosse mais traiçoeiro, também oferecia o benefício de manter a caravana longe de olhares curiosos e indesejados.
— Certo, vamos montar o acampamento. — anunciou um dos vigias, com a voz carregada de autoridade. — Puxem as barracas. Estão na parte de trás das carruagens. Pode ser que a gente tenha que ficar um bom tempo por aqui até os clientes chegarem.
Sem questionar, os homens começaram a descarregar e armar o acampamento. No entanto, um deles permaneceu imóvel, como se algo invisível o tivesse enfeitiçado. Ele estava parado, contemplando fixamente algo à frente. A máscara que cobria seu rosto tornava impossível discernir sua expressão, mas o silêncio e a rigidez de sua postura não passaram despercebidos.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.