Índice de Capítulo

    Os humanos haviam se estabelecido na clareira próxima à aldeia dos homens-lagartos, aguardando que o denso véu de neblina, que tornava as estradas para o Reino Grão-Vermelho intransitáveis, finalmente se dissipasse. Dias se passaram em um compasso lento, até que os batedores enviados por Douglas retornaram trazendo boas notícias: a neblina havia desaparecido.

    Com a partida marcada para o dia seguinte, os preparativos começaram imediatamente. Entre os homens-lagartos, no entanto, os ânimos ainda não haviam se acalmado completamente.

    Bruce, que havia desmaiado após o brutal golpe de Douglas, despertou dois dias antes da viagem. A fratura grave na mandíbula e a perda dos dentes pareciam quase milagrosamente recuperadas – graças ao descanso absoluto e à impressionante capacidade regenerativa de sua raça. Mesmo assim, as consequências do incidente reverberaram.

    Enquanto muitos entre os homens-lagartos ainda carregavam ressentimento contra Douglas, foi a irmã de Bruce, Virmirka, quem abafou o caso.

    — Se Bruce levou uma surra por ser fraco depois de desafiar o humano, a culpa é dele! — declarou, firme.

    As palavras dela ecoaram como um trovão entre os membros do clã. Alguns a encararam incrédulos, balançando a cabeça em desaprovação.

    — Como pode falar isso, Virmirka? Ele é seu irmão! — alguém protestou.

    Ela respondeu com o olhar afiado de quem não aceita ser desafiada.

    — É exatamente porque ele é meu irmão que estou dizendo isso. — Sua voz carregava convicção, e a autoridade que emitiu silenciou até os mais irritados.

    Assim, o assunto foi encerrado, e Bruce teve tempo para se recuperar sem mais interferências.

    Quando finalmente despertou, a dor e o cansaço ainda estavam frescos, mas sua determinação parecia intacta. Após recuperar seus pertences e trocar algumas palavras rápidas com sua irmã e Shayax, ele decidiu procurar Douglas.

    A noite estava silenciosa quando Bruce se aproximou do acampamento humano. Porém, ao chegar, foi barrado por dois sentinelas em armadura.

    — Douglas está dormindo — informou um deles, a voz firme e sem brechas para negociação.

    Bruce hesitou, mas cedeu, retornando à clareira.

    No dia seguinte, os batedores trouxeram a confirmação oficial: as estradas estavam livres da neblina. Era já de tarde quando Douglas recebeu a notícia, mas sua atenção foi rapidamente desviada por vozes alteradas, altas e nervosas, vindas do limite do acampamento.

    Douglas franziu o cenho, movendo-se rapidamente até o local. Quando chegou, encontrou Bruce cercado por dois dos seus homens. Um deles mantinha a mão firme no punho de sua espada, o outro gesticulava energicamente, apontando o dedo diretamente para o rosto do homem-lagarto.

    — Alguém pode me dizer o que está acontecendo aqui? — A voz de Douglas cortou o ar como uma lâmina bem afiada.

    Os dois soldados imediatamente pararam, a tensão nos ombros deles mostrando que haviam sido pegos no ato.

    Bruce ergueu os olhos para Douglas, seu semblante sério, mas sem sinal de agressividade.

    — Eu vim conversar — disse ele, a voz rouca e pesada.

    Douglas o encarou por um instante, medindo o peso da situação. Então, ele olhou para seus homens.

    — Larguem as espadas. Agora.

    Relutantes, ambos obedeceram, mas não sem lançar olhares desconfiados para Bruce.

    — Muito bem, Bruce. Você tem minha atenção. Vamos conversar. 

    Após seguirem para uma área mais reservada da floresta, Bruce cruzou os braços, encarando Douglas com intensidade. Ele foi direto ao ponto:

    — Quero entender… como fez aquilo?

    Douglas arqueou uma sobrancelha, o tom de voz carregado de falsa inocência.

    — Hm… “aquilo?” Do que está falando?

    O rosto de Bruce se contorceu em frustração. Ele não estava ali para jogos.

    — Não seja tolo! Você sabe muito bem do que estou falando. Aqueles seus movimentos… nenhum humano tem tanta velocidade assim!

    Douglas deixou escapar um leve sorriso, quase provocador.

    — Oh? Nenhum humano? Quantos humanos você já viu na vida?

    Bruce piscou, surpreso com a pergunta. Ele não tinha ideia de quantos humanos viviam além das fronteiras da floresta. Porém, sabia o suficiente para ter uma certeza: biologicamente, humanos eram mais fracos que os homens-lagartos.

    Mesmo com experiência em combate, eles não poderiam rivalizar com a força e a velocidade naturais de sua espécie. Mas o que ele viu durante a luta havia desafiado tudo o que conhecia.

    — Foi magia? — perguntou Bruce, hesitante.

    Os homens-lagartos não praticavam essa arte mística que os humanos chamavam de magia. Sabiam apenas que era algo poderoso e mortal em batalha, mas o conceito em si era estranho para eles.

    Douglas cruzou os braços, observando a reação de Bruce.

    — Então, é isso que você acha? Que foi magia?

    Bruce estreitou os olhos, frustrado.

    — Como mais você explicaria aquilo?! Vai me dizer que ficou tão rápido assim apenas com treino físico?

    Douglas deu de ombros, como se estivesse explicando algo trivial.

    — Aquilo se chama Fluxo.

    — F-Fluxo?

    — Fluxo é uma das técnicas básicas que os humanos aprendem ao dominar a arte espiritual do controle da Gama. Já ouviu falar?

    Bruce balançou a cabeça lentamente, sentindo-se desconfortável com sua própria ignorância.

    — Não faço ideia do que seja…

    Douglas riu baixinho, mas sem traço de escárnio.

    — Não é surpresa. Vocês passaram séculos isolados do mundo. É natural que tanto nas artes místicas quanto na tecnologia, estejam… ultrapassados.

    Bruce apertou os punhos. A revelação o incomodava, mas ele precisava saber mais.

    — Você disse que é uma técnica básica. Se é assim, por que só você a usou? Seus homens não sabem usar isso?

    O sorriso de Douglas ficou mais largo, como se estivesse prestes a revelar algo inesperado.

    — Não. Eu proibi meus homens de usarem Fluxo ou qualquer outra técnica de Gama.

    Bruce ficou imóvel por um instante, processando a informação. Quando a compreensão finalmente chegou, sua expressão mudou para uma de indignação.

    — O que?! — rugiu ele, furioso. — Vocês estavam nos subestimando?!

    Douglas ergueu a mão, como se quisesse acalmar Bruce antes que a situação saísse do controle.

    — Não me entenda mal.

    — Como não?! Vocês lutaram sem usar tudo o que podiam! Isso é uma desonra!

    Douglas respirou fundo, o tom de sua voz agora mais sério.

    — Bruce, escute. Você não queria um treinamento à altura? Eu também queria que meus homens aprendessem algo. Eles dependem muito do Fluxo, assim como qualquer humano que domine a Gama. Mas existem formas de bloquear essa habilidade, e há inimigos lá fora que sabem como fazer isso.

    Bruce permaneceu em silêncio, atento.

    — Queria que eles lutassem sem essa “muleta”, para que compreendessem a própria vulnerabilidade. Sem a Gama, o que somos contra adversários mais fortes e mais rápidos? Essa foi a lição que desejei ensinar a eles.

    Bruce encarou Douglas, sua raiva esfriando aos poucos, substituída por uma mistura de respeito e relutância. Ele ainda não sabia se concordava com aquilo, mas as palavras de Douglas carregavam um peso que ele não podia ignorar.

    — Me desculpe, isso foi muito rude da minha parte. — Bruce fez uma reverência a Douglas. — Mas antes de qualquer coisa… eu tenho de perguntar. 

    — O que?

    — Pode me ensinar isso?

    ⧫⧫⧫

    O dia finalmente chegou. No coração da Clareira dos Homens-Lagartos, uma multidão se reunira. Alguns estavam ali para presenciar a partida dos guerreiros que iriam para o reino humano, enquanto outros vinham para se despedir de amigos ou parentes. Entre os escolhidos estava Bruce, e ao seu lado, Shayax.

    Os pais de Shayax se aproximaram. O pai, com firmeza na voz, oferecia palavras de encorajamento, enquanto a mãe, com o tom ríspido que só os que mais amam conseguem empregar, advertia para que ele não desonrasse a família morrendo jovem. Era a forma peculiar deles de demonstrar amor, algo que Shayax compreendia sem precisar de explicações.

    Virmirka estava lá também. Ela se aproximou de Bruce, parando bem à sua frente. Era difícil para ela esconder a dor que sentia. Virmirka não era apenas a irmã mais velha de Bruce, mas também a figura que o criara como se fosse seu próprio filho, desde que os pais deles haviam partido. Ver o irmão mais novo partir agora, para terras distantes e perigosas, fazia seu peito arder de uma mistura de tristeza e frustração. Por um momento, ela sentiu raiva dos humanos e do acordo que levara Bruce para longe. Mas Virmirka era forte; engoliu o sentimento e focou no que realmente importava: sua despedida.

    — Bruce. — Ela chamou com a voz firme, embora um tremor quase imperceptível a traísse.

    — Sim, minha irmã? — Ele respondeu, atento como sempre.

    — Você cresceu tanto… — Virmirka colocou a mão no ombro dele, lembrando-se de quando ele era pequeno, de quando sua mão podia cobrir por completo aquele ombro frágil. Agora, o pequeno que ela cuidara havia se tornado um guerreiro, alto, forte e imponente. — Veja se não leva outra surra daquelas, por favor.

    O comentário foi inesperado, mas não para Bruce, que riu nervosamente ao ouvir as palavras da irmã.

    — Ahhh… Sabia que você não ia deixar isso passar…

    — Como eu poderia? — retrucou Virmirka, arqueando uma sobrancelha, uma expressão que misturava diversão e autoridade. — Você ficou todo arrebentado daquela vez.

    — Não precisa me lembrar disso, minha irmã.

    — Se eu não te lembrasse das suas fraquezas, não seria uma boa irmã. — Um sorriso brincava nos lábios dela, mas os olhos denunciavam algo mais profundo.

    De repente, Bruce foi surpreendido por um abraço apertado. Virmirka o envolveu com força, como se quisesse protegê-lo uma última vez antes de deixá-lo ir.

    — Fique mais forte. Muito mais forte. — A voz dela saiu baixa, quase rouca. — E, da próxima vez, arrebenta a cara daquele maldito.

    Bruce sorriu, sentindo o peso e a sinceridade das palavras.

    — Pode deixar, minha irmã.

    Ele retribuiu o abraço com igual intensidade, deixando-se perder por um momento naquela troca silenciosa de promessas. Por mais que pudesse mencionar o que acontecera entre ele e Douglas na noite anterior, Bruce decidiu guardar isso para si. Ele queria surpreender sua irmã ao retornar, não apenas mais forte, mas capaz de derrotá-la em um combate mano a mano.

    O pensamento lhe dava força. Ele imaginou o olhar de Virmirka, surpreso e orgulhoso, quando finalmente a vencesse. A certeza de que aquele dia chegaria foi o combustível que Bruce precisou para dar o próximo passo. E ele o deu, com a promessa inabalável de voltar — e voltar como um verdadeiro guerreiro.

    Enquanto Bruce se despedia de sua irmã, a figura imponente de Pendragon emergiu das sombras das árvores, caminhando com passos lentos e deliberados. Quando se aproximou o suficiente, ergueu a mão em um gesto simples de despedida e sorriu de forma discreta. Não houve palavras, nem gestos grandiosos; aquela era a maneira de Pendragon dizer adeus. Bruce, por sua vez, apenas retribuiu com um leve aceno de cabeça, assumindo que o gesto encerrava a interação.

    O tempo passou rapidamente, e a hora da partida finalmente chegou. O grupo de cinquenta guerreiros homens-lagartos, escolhidos entre os mais aptos da tribo, se reuniu ao exército de Douglas. Sob as ordens do comandante humano, a marcha para fora da floresta teve início.

    Bruce, sem olhar para trás, caminhava à frente, seus passos firmes ecoando a determinação que sentia. Atrás dele, Shayax, ainda acenando para sua família, apressou-se em acompanhá-lo. O jovem guerreiro parecia dividido entre a emoção da despedida e a inquietação de adentrar o desconhecido.

    — Então, é agora que começa, não é? — Shayax perguntou, tentando mascarar o nervosismo com um sorriso que parecia um tanto hesitante. Seus olhos denunciavam o peso da mudança que estava prestes a encarar.

    Bruce, percebendo o estado do amigo, manteve a mesma postura confiante. Seus lábios se curvaram em um sorriso cheio de entusiasmo.

    — Sim, Shayax. Nossa jornada além da floresta começa agora.

    O tom seguro de Bruce foi como uma tocha que iluminou o espírito de Shayax. O nervosismo do jovem dissipou-se, e ele balançou a cabeça com vigor, como se reforçasse uma determinação recém-descoberta. De repente, ele gritou para si mesmo, com a energia de alguém que precisava acreditar:

    — Vamos nessa!

    A clareira ficou para trás, e os guerreiros avançaram.

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