Capítulo 63 - Escondidos no Vilarejo
Gein era um vilarejo pequeno, modesto e quase insignificante, o tipo de lugar que só se destacava em mapas por obrigação, situado nas bordas do Reino Grão-Vermelho. Gein foi nomeado há séculos por algum viajante que se achou no direito de reclamar as terras e chamar aquilo de lar. Aos poucos, outras pessoas apareceram, e o vilarejo ganhou forma. Trinta casas. Oitenta pessoas. Simples. Funcionava.
A vida ali era previsível: plantio, criação de animais, e a luta diária por comida suficiente para passar para o próximo dia. Para os habitantes, o futuro era apenas uma palavra — uma ideia vaga que não valia a pena pensar muito. E, por anos, isso bastou. Até que deixou de bastar.
Os mercenários chegaram como uma tempestade. Não bateram à porta, não pediram permissão. Invadiram, roubaram, mataram. As ruas do vilarejo, antes tão tranquilas, ficaram marcadas pelo cheiro de carne queimada. Os corpos foram amontoados em uma cova rasa, uma sobreposição de histórias interrompidas: crianças, mulheres, homens, idosos. A fogueira da destruição iluminava o céu de Gein.
— Terminem logo com isso! — gritou um dos mercenários para uma dupla que carregava um corpo.
Os dois pararam por um segundo, trocando olhares de irritação. Claro, o sujeito que deu a ordem não estava ajudando em nada. Mesmo assim, voltaram ao trabalho, jogando o corpo de uma mulher de meia-idade na cova.
— Quanto tempo essa droga de neblina vai durar? — perguntou um deles, limpando o suor da testa com o antebraço.
— Sei lá. Mas tivemos sorte de estar perto desse vilarejo. Se estivéssemos mais longe, aquela neblina nos teria engolido. E sabe o que acontece com quem fica preso nela, né? — respondeu o outro, ajeitando a espada na cintura.
— Sei. Morre. Que cheiro horrível, cara.
A dupla não era a única a odiar a situação. O grupo inteiro, 56 homens ao todo, tinha sido pego desprevenido pela neblina — uma força quase sobrenatural que surgia sem aviso e transformava até os guerreiros mais endurecidos em carcaças congeladas. Antes de perceberem o perigo, estavam prestes a montar acampamento numa floresta próxima. A chegada da neblina os empurrou para Gein.
E, como mercenários, fizeram o que sabiam fazer. Tomaram tudo. Quem resistiu, morreu. Quem não resistiu, também. Agora, o vilarejo era uma base improvisada, mas com recursos limitados. A comida era o problema. Quando ela acabasse, as facas não ficariam apenas apontadas para os moradores — estariam nos pescoços uns dos outros.
— Vocês aí, por que estão parados?! — vociferou o vice-líder, aproximando-se da dupla.
— Estamos tomando fôlego, é só isso. Estamos queimando corpos o dia todo!
— Sem desculpas! Ainda tem casas para revistar. Vão trabalhar!
O homem se afastou, irritado, e os dois o encararam com vontade de jogar o bastardo na fogueira. Mas não fizeram nada. Não eram estúpidos.
Seguindo a ordem, os dois se dirigiram a uma casa ainda intacta. O primeiro empurrou a porta com a mão esquerda, a espada na direita, enquanto o outro entrava logo atrás, arco e flecha preparados.
— Querida, cheguei. — murmurou o primeiro com um sorriso de canto.
— Para com essa porcaria. — o outro retrucou, impaciente. — E se tiver alguém escondido aqui?
— Esses camponeses? Por favor. Se tivessem culhões para isso, já teriam dado as caras.
O arqueiro não respondeu. Apenas avançou, inspecionando o interior da casa.
A casa era uma réplica perfeita das outras. Simples, sem graça, cheia de móveis de madeira maltratados e cobertos por poeira e cheiro de mofo. Um fogão improvisado, com lenha já queimada e cinzas espalhadas, dividia espaço com uma mesa em que um prato de comida repousava, abandonado e frio. Devia estar ali há horas, a julgar pelo estado seco das bordas.
O arqueiro aproximou-se da mesa, pegou a tigela com uma das mãos e levou-a ao nariz. Fez uma careta.
— Típico. Essa comida de vilarejo é sempre uma porcaria.
— Nem me fale. — O guerreiro respondeu, inspecionando o lugar sem muita pressa. — Sinto até saudades da comida quentinha lá do reino.
Ambos sabiam que ele tinha razão. Dentro dos muros do reino, até o pão mais barato parecia uma iguaria comparado àquele ensopado insosso que serviam nesses fins de mundo. A diferença era gritante, no gosto e na vida.
— Se não gosta, não coma. Não era pra você mesmo. — Uma voz feminina cortou o silêncio.
O arqueiro congelou. Seu coração disparou como um tambor de guerra. Ele largou a tigela no chão e puxou uma flecha, disparando-a sem hesitar na direção da voz. A flecha cravou-se com força em uma porta de madeira do outro lado da sala, mas não havia ninguém ali. Nada além do eco do impacto e a respiração acelerada dele.
— Mas que diabos foi isso?! — rugiu o guerreiro, virando-se para encará-lo.
— Você não ouviu? — O arqueiro murmurou, os olhos fixos na porta como se esperasse que ela respondesse.
O guerreiro cruzou os braços, incrédulo.
— Ouvir o quê?
— A voz! — Ele girou a cabeça, as sobrancelhas se unindo em frustração. — A voz de uma mulher!
O guerreiro soltou uma gargalhada seca.
— Ah, qual é, cara. Tá tão na seca assim que começou a alucinar?
— Não é isso! Eu ouvi claramente… — Ele engoliu em seco, olhando novamente para a porta onde a flecha estava presa. Seu rosto endureceu.
Sem esperar resposta, puxou outra flecha da aljava e caminhou a passos silenciosos e firmes em direção à porta. O guerreiro, a essa altura, apenas observava de longe, balançando a cabeça com desdém.
O arqueiro esticou a mão, empurrando a porta devagar. A madeira rangeu como um sussurro amargo. Seus olhos vasculharam o pequeno cômodo à frente, mas tudo que encontrou foi mais vazio. Mais silêncio.
Mas ele sabia. Tinha ouvido uma voz.
No instante em que amaldiçoou o vazio da sala em pensamento, um som abafado fez o arqueiro girar o corpo. Seu companheiro jazia no chão como um boneco sem cordas, o sangue escorrendo de um corte profundo no pescoço. O líquido rubro se espalhava pelo piso de madeira, tingindo-o de morte. Ao lado do corpo, de pé, estava um homem imponente.
Cabelos curtos e grisalhos, barba cerrada cobrindo grande parte do rosto, e olhos afiados como os de um falcão. Ele lançou um último olhar para o guerreiro agonizante no chão, cuja garganta gorgolejava fracamente, antes de erguer o olhar para o arqueiro.
O arqueiro não hesitou. Puxou a corda do arco e apontou a flecha para o estranho.
Mas então ele caiu.
Sem aviso, seu corpo despencou para frente, o rosto atingindo o chão com um baque surdo que fez seu nariz jorrar sangue. A dor explodiu em sua cabeça como uma onda violenta, e antes que pudesse sequer compreender o que havia acontecido, um grito sufocado subiu por sua garganta.
Ele tentou se erguer, mas algo estava errado. Seus pés não respondiam. Ele olhou para trás.
Suas pernas ainda estavam ali… mas não mais conectadas ao corpo.
Um corte limpo as havia separado pelos calcanhares. Era tão perfeito que ele precisou de um instante para registrar o que via. Quando finalmente entendeu, o choque deu lugar a um grito crescente, um som de puro desespero que ecoou pela sala.
Durou apenas até o momento em que a lâmina encontrou sua garganta.
Sua cabeça rolou pelo chão, parando perto da tigela que ele antes reclamava.
A mulher que empunhava a katana se abaixou por um momento, sacudindo a lâmina com um movimento rápido e preciso. O sangue voou em um arco, espalhando-se em linhas curvas no chão. Seus cabelos longos e negros balançaram com o movimento.
— Que perda de tempo. — murmurou, olhando para o corpo decapitado com desdém.
— Sira. — a voz do homem, agora agachado ao lado do outro corpo, veio baixa, mas carregada de autoridade. — Qual é a primeira regra do manual de sobrevivência?
Ela suspirou, quase revirando os olhos.
— Lutar só quando necessário. — respondeu com uma irritação que parecia um hábito. — Vai repetir isso toda vez que eu matar um idiota qualquer, Mark?
Ele parou, erguendo o olhar para ela, afiado como uma lâmina.
— É Markus. Não Mark. Mostre respeito.
Ela cruzou os braços, fazendo um pequeno beicinho de protesto.

— Estamos viajando juntos há o quê? Dez anos? Você ainda pega no meu pé.
Markus ignorou a reclamação, continuando a vasculhar os bolsos do morto.
— Este aqui não tem nada de útil. Veja o outro.
— Certo. — Sira deu de ombros, dirigindo-se ao corpo caído do arqueiro.
⧫⧫⧫
Markus era um homem que chamava atenção. Com seus 1,90 metros de altura e músculos que pareciam moldados em pedra, carregava consigo uma espada grande e pesada, algo que poucos ousariam manusear. Depois de arrastar os corpos dos dois homens que ele e sua companheira acabaram de eliminar, ambos escaparam da casa pelas janelas, movendo-se furtivamente.
A noite os envolvia enquanto eles se misturavam às sombras, ocultando-se entre as estruturas do vilarejo. Evitavam qualquer contato direto com o restante do grupo de mercenários que havia ocupado o local.
“Isso foi um golpe de azar colossal,” Markus pensou enquanto avançavam silenciosamente pelas vielas.
A neblina veio do nada, espessa como leite, durante o caminho para o reino Grão-Vermelho. Sem enxergar mais que poucos passos à frente, eles não tiveram escolha senão procurar abrigo no vilarejo mais próximo. Um pouco de sorte, experiência e a ajuda de conhecidos lhes garantiram um lugar discreto para ficar até que a neblina se dissipasse.
Mas o destino tinha outros planos.
Um grupo de mercenários havia decidido tomar o vilarejo à força. A situação era ruim o suficiente, mas ficou crítica quando Sira, sua jovem companheira, deixou os sentimentos falarem mais alto e matou dois deles.
“Era só ficar quieto e esperar a maldita neblina passar,” Markus pensou com amargura. “Mas não, você tinha que agir. Que saco. Você quebrou a regra número um do manual, Sira. Ganhou um strike.”
— Foi mal, foi mal… — a voz de Sira ecoou em sua mente. Seu rosto carregava uma expressão de chateação enquanto eles se comunicavam pela conexão telepática. — Eu vou ser mais cuidadosa na próxima vez…
“Próxima vez? Se tivermos uma próxima vez, isso vai ser um milagre,” Markus pensou, sem conseguir esconder sua irritação.
— Eu sei, já entendi…
Eles continuaram a atravessar o vilarejo de casa em casa, sempre fora do alcance dos olhos dos mercenários. A noite chegou, e com ela o caos. Do lado de fora, perto de uma das casas saqueadas, quatro mercenários faziam alvoroço.
Markus sabia o que aquilo significava. Tinham encontrado os corpos.
De dentro de uma casa, ele observava tudo pela janela. Quando viu o grupo reunido, sentiu uma raiva silenciosa ao olhar para Sira.
“Dois strikes nesse mês. Quebre mais uma regra, e vamos ter que nos separar.”
— Mas o mês está quase acabando! Não vou resetar os strikes logo? — ela respondeu, tentando soar otimista, mas sua animação não o convenceu.
“Depender disso para justificar suas burradas é falta de responsabilidade, sabia?”
Sira fez uma careta, mas não respondeu. Markus desviou o olhar para fora da janela novamente.
No centro do grupo, um homem careca se destacava, gesticulando com autoridade. Ao seu lado, um subordinado que parecia ser o braço direito, analisava a situação com olhos atentos. Markus notou como o líder fazia gestos calculados, inspecionando o entorno.
Sem pensar duas vezes, Markus afastou-se da janela, encostando a nuca na parede de madeira.
“Esse cara não é qualquer um,” pensou, os olhos semicerrados. “Ele sabe que ninguém vai sair do vilarejo com essa neblina cobrindo as estradas. Se ele for esperto — e parece ser —, vai assumir que estamos por perto, observando. A questão é: ele vai mandar equipes de busca ou ordenar que fiquem juntos para não perder mais homens?”
Markus expirou lentamente, sentindo o peso da situação cair sobre ele. A resposta viria em breve, e ele tinha certeza de que não seria algo fácil de lidar.
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