Índice de Capítulo

    Após doze longos dias de viagem, Markus e Sira finalmente pisaram no solo do vilarejo de Icca, um dos mais famosos de todo o continente. O ar fresco das montanhas os recebeu com uma mistura de vigor e cansaço, enquanto o cenário que se desdobrava diante deles era, como sempre, deslumbrante. 

    Havia outro vilarejo semelhante no continente, e ambos compartilhavam a peculiaridade de estarem praticamente encostados à imponente montanha Piry Up. Agora, tão próximos de sua base, podiam ver com clareza o que antes era apenas uma sombra distante no horizonte. A montanha erguia-se como uma sentinela eterna, testemunha dos que ousavam desafiá-la.

    Icca, contudo, não era apenas uma parada para os aventureiros que enfrentavam o desafio de atravessar a montanha. Era um símbolo de coragem e determinação, sendo o ponto de partida e chegada daqueles que buscavam atravessar suas trilhas traiçoeiras. 

    Muitos vinham para comprar equipamentos de escalada, traçar suas rotas e, com sorte, regressar vitoriosos do outro lado. Ali, tudo respirava ação e memórias de feitos heroicos, mas também de fracassos silenciosos.

    Markus não perdeu tempo ao cruzar os limites do vilarejo. Determinado, dirigiu-se rapidamente à casa de um velho amigo. O lugar estava exatamente como ele se lembrava, como se o tempo tivesse respeitado aquele pequeno recanto de madeira. 

    Apesar de ser uma casa simples, havia nela algo de especial — a madeira bem polida refletia o sol da tarde, enquanto o jardim ao redor exibia flores vivazes, cuidadas com um zelo evidente. Markus sabia que aquele homem vivia confortavelmente e que ali Sira estaria segura.

    Com passos firmes, Markus se aproximou e bateu na porta. O som ecoou pela casa, mas nenhum movimento respondeu. Atrás dele, Sira cruzou os braços, a impaciência claramente estampada em seu rosto.

    — Você vai mesmo me deixar com um qualquer? — perguntou ela, um tom de irritação e uma sombra de tristeza em sua voz.

    Markus se virou, a expressão tão sóbria quanto suas palavras seguintes.

    — Você quebrou minhas regras três vezes, Sira. Três vezes. É impossível viajar com alguém que não as segue. Sei que estou velho, mas ainda pretendo viver mais alguns anos. Suas atitudes… vão me matar mais cedo do que eu gostaria.

    Ele bateu novamente na porta, com mais insistência desta vez. O silêncio ainda reinava, mas a tensão entre eles era palpável.

    — Ahhh… — suspirou Sira, desviando o olhar enquanto franzia a testa, uma expressão emburrada dominando seus traços. — Mas eu nem conheço esse cara… e você é minha única família viva.

    Markus ergueu uma sobrancelha. A tristeza na voz dela parecia genuína, mas ele conhecia bem a jovem para saber que ela também podia ser habilidosa em manipular emoções. Apesar disso, ele também sabia que não podia pegar tão pesado. 

    Por mais que Sira fosse uma mulher adulta agora, ele a havia acolhido ainda jovem e convivido com ela por uma década. Markus suspirou profundamente. Ele era duro, mas não insensível.

    — Ouça, Sira. Eu prometi cuidar de você, e estou cumprindo minha promessa. Mas também deixei claro que havia regras, e você as ignorou. Eu não tenho outra escolha. Se continuar viajando comigo, eu acabarei morto por sua imprudência.

    Sira abaixou a cabeça, murmurando com uma voz quase inaudível:

    — Eu entendo…

    Markus continuou, tentando suavizar as palavras, embora a firmeza permanecesse.

    — Esse homem é meu amigo. Ele me deve um grande favor e é uma boa pessoa. Ele tem recursos, você estará segura aqui. E além disso, eu treinei você. Você tem habilidades que poucos com a sua idade possuem. Pode trabalhar, pode entrar numa academia se quiser. Seu futuro está nas suas mãos agora.

    Ela ergueu os olhos para ele, a expressão vulnerável e ainda com resquícios de esperança.

    — Você promete me visitar? — perguntou Sira, quase suplicante.

    Markus hesitou por um momento antes de responder.

    — Se eu não morrer durante a viagem, sim, eu prometo.

    Ela estreitou os olhos, desconfiada.

    — Isso era pra ser uma piada?

    Um leve sorriso escapou dos lábios de Markus, algo raro.

    — Talvez.

    A leveza momentânea trouxe uma calmaria inesperada. Sira sabia que aquele momento marcava o fim de uma era para ambos, mas também o início de algo novo. Markus, por sua vez, sentia o peso de deixar para trás a única pessoa que ele poderia chamar de família, mas sua determinação em seguir em frente era inabalável.

    O vento soprou suavemente pelas montanhas, como se abençoasse a despedida. E então, pela terceira vez, Markus bateu na porta, esperando que a história deles continuasse — mesmo que em caminhos separados.

    — Ah! Markus?!

    A voz animada chamou a atenção do homem e sua companheira. Markus se virou com a calma de quem já tinha visto muito do mundo, mas seus olhos se acenderam ao reconhecer a figura à sua frente.

    — Ivoguin. Vejo que está vivo e bem.

    — Hahaha! Sempre direto, não é, seu velho mal-humorado?

    Ivoguin era um homem robusto, marcado pelos anos, mas ainda exibia músculos definidos e postura imponente. Seu cabelo curto e arrepiado, já começando a mostrar alguns fios grisalhos, tinha um tom quente que contrastava com sua pele morena. Ele se aproximou com passos largos e confiantes, estendendo a mão para um aperto que Markus prontamente aceitou.

    Os dois eram velhos amigos, daqueles que podiam ficar anos sem se ver, mas retomavam o diálogo como se nunca tivessem se separado. Seu vínculo remontava aos tempos de aventuras compartilhadas. 

    Formaram um grupo que, por um breve período, fez nome nas regiões próximas ao reino Grão-Vermelho. Quando o grupo se desfez, os dois continuaram trabalhando juntos como guarda-costas para uma rica comerciante que hoje comandava a maior loja de relíquias do continente.

    A separação veio quando Ivoguin decidiu investir seus ganhos em um sonho que acalentava há tempos. Ele se dedicou a estudar a arte da tecelagem e, eventualmente, fundou uma empresa de roupas em Icca. O reencontro de hoje marcava o fim de uma década sem se verem.

    — Devo dizer, o tempo não foi gentil com sua aparência, Markus. Ficou ainda mais feio — provocou Ivoguin com um sorriso largo.

    — Já você parece mais arrumado do que o necessário. Está tentando impressionar alguém, ou virou pomposo de vez? — Markus rebateu com uma leve curva nos lábios, algo raro de se ver.

    A interação descontraída entre os dois homens deixou Sira atônita. Nunca tinha visto Markus relaxar tanto ou demonstrar tamanha familiaridade com alguém. Ele, sempre tão reservado, parecia outro homem na presença daquele amigo.

    — E esse anel? Você casou? — perguntou Markus, genuinamente surpreso.

    — Casei, sim. — Ivoguin respondeu com um riso satisfeito.

    — Quantos filhos?

    — Três. O mais novo nasceu há pouco. Eles não estão em casa agora, mas vou apresentá-los a você assim que chegarem!

    Ivoguin então olhou para Sira, que ainda observava a cena em silêncio.

    — E quem é essa? Sua filha?

    A pergunta trouxe uma sombra ao rosto de Markus, mas ele respondeu com a firmeza que sempre o caracterizou:

    — Não, é minha neta. Minha filha… morreu há alguns anos.

    — O quê?! — Ivoguin arregalou os olhos, genuinamente surpreso e consternado. — Cara, eu… meus pêsames.

    — Está tudo bem. — Markus balançou a cabeça, como se afastasse o peso da conversa. — Há muito que preciso te contar, coisas que não cabiam nas cartas.

    Os dois costumavam trocar correspondências, mas as cartas demoravam a chegar, já que Markus, como viajante, raramente estava em um lugar fixo. Muitas vezes, levava um ano ou mais para responder.

    — Parece que temos muitas histórias para pôr em dia. — Ivoguin sorriu, mas seu olhar transmitia compreensão e empatia. — Vamos lá para dentro. Pode me contar tudo enquanto comemos algo decente.

    Markus assentiu e seguiu o amigo em direção à casa. O lugar era espaçoso e bem cuidado, com móveis de madeira trabalhada e tecidos de alta qualidade decorando o ambiente. O cheiro de ervas secas e couro novo impregnava o ar, dando ao lar uma sensação calorosa.

    Sira entrou logo atrás, ainda absorvendo a visão daquele lugar que parecia tão diferente de qualquer outro onde já estivera. No entanto, o que mais a impressionava era a relação entre os dois homens. Por um instante, ela se perguntou se Markus não seria capaz de confiar nela da mesma forma que confiava em Ivoguin.

    Assim que se acomodaram, Ivoguin trouxe vinho e pães frescos. A conversa fluiu naturalmente, com risos ocasionais e algumas pausas reflexivas. 

    ⧫⧫⧫

    Sob o sol que espreitava por entre as nuvens desgastadas de inverno, uma mulher de cabelos castanhos longos, presos em um coque frouxo que deixava algumas mechas escorrerem preguiçosamente por sua nuca, caminhava pelas ruas estreitas do vilarejo. 

    Havia algo no modo como seus passos pareciam hesitantes, um cansaço quase palpável que transbordava de seus movimentos. Em um dos braços, sustentava com cuidado um bebê que não devia ter mais do que alguns meses, enquanto no outro puxava com firmeza, mas sem verdadeira força, um garoto de aproximadamente cinco anos, que resmungava incessantemente.

    Atrás dela, uma menina de talvez oito anos saltitava despreocupadamente, exibindo um sorriso satisfeito. Seus olhos brilhavam como se tivessem vencido alguma grande batalha, mesmo que apenas dentro de sua imaginação.

    — Já não te falei para parar com isso?! — A mulher finalmente explodiu, sua voz ecoando pelas vielas de pedra. — Por que continua arrumando encrenca com o filho do senhor Ruan?

    O menino, que até então encarava o chão com a expressão de quem carregava o peso do mundo, respondeu quase como um rugido de protesto.

    — Eu não fiz nada, mãe! Ele começou me chamando de covarde!

    — Sem mais desculpas! — disparou ela, já sentindo o cansaço pesar ainda mais em suas têmporas. — Um mês de castigo! Nada de sair de casa!

    — O quê? Um mês? Isso não é justo! — O menino protestou, os olhos começando a lacrimejar. Ele lançou um olhar furioso para sua irmã, que agora mal podia conter o riso. A expressão triunfante dela só aumentava sua indignação. Ela o entregara à mãe no momento em que ele resolvera “defender sua honra”, e agora parecia estar se deliciando com sua punição.

    Após atravessar as ruas, finalmente chegaram a uma casa. A mulher abriu a porta com um empurrão decidido, guiando as crianças para dentro. O menino, arrastando os pés, já pressentia as broncas que estavam por vir.

    — Vá direto para o seu quarto, e… — A mulher interrompeu a frase no instante em que seus olhos caíram sobre duas figuras que ela não reconhecia.

    Sentados na sala junto de seu marido estavam um homem robusto, de cabelos grisalhos, com cicatrizes visíveis que cruzavam suas mãos firmes, e uma jovem de aparência delicada, mas com um olhar afiado, talvez entre dezoito e vinte anos. Era uma visão peculiar, como se a presença deles pertencesse a um mundo distante, diferente daquele lar modesto.

    O marido, Ivoguin, estava relaxado, ocupando-se com um pedaço de pão. Ele ergueu os olhos, captando a expressão confusa de sua esposa, e falou com a tranquilidade de quem sabe que será repreendido.

    — Ah, querida. Temos visitas.

    — Visitas? Sem me avisar? — A mulher colocou as mãos nos quadris, claramente irritada. — Quem são eles?

    Ivoguin apontou para o homem ao seu lado com um sorriso sem jeito.

    — Culpe o Markus. Ele chegou sem avisar.

    Markus ergueu uma sobrancelha, a expressão quase cínica.

    — Eu não pedi que me colocasse no meio desse fogo cruzado, Ivoguin.

    Os olhos da mulher se estreitaram ao ouvir o nome. Finalmente, ela ligou os pontos. Seu marido havia mencionado esse homem inúmeras vezes, sempre com uma mistura de reverência e carinho que ela nunca vira em relação a qualquer outra pessoa. 

    Era o amigo mais leal de Ivoguin, o homem que havia salvado sua vida mais vezes do que ele próprio podia contar. Ainda assim, vê-lo em carne e osso, com o ar de um guerreiro que já havia enfrentado mais batalhas do que deveria, era algo que a deixou sem palavras por alguns instantes.

    — Então você é o Markus… — murmurou ela, ajeitando os cabelos enquanto tentava esconder sua surpresa. — Já ouvi muito sobre você.

    Markus inclinou a cabeça educadamente, mas havia algo nos olhos dele, uma sombra que parecia esconder um peso que apenas anos de guerra e perdas poderiam trazer.

    — Espero que apenas coisas boas, senhora.

    Ivoguin riu, aliviando a tensão.

    — Não acredite em tudo que ela diz, Markus. Sabe como as esposas podem ser.

    A mulher lançou um olhar afiado para o marido, mas não conseguiu conter o leve sorriso que se formou em seus lábios. Afinal, aquele era o homem que o mantivera vivo nos dias mais sombrios de sua juventude.

    — Ah! Onde estão meus modos? Prazer! Me chamo Pursena. — Sua voz era doce, embora apressada, como alguém que tinha pouco tempo para cerimônias.

    Markus, com movimentos precisos e formais, devolveu o gesto. A reverência era calculada, mas não fria. Havia um peso em seus olhos, talvez das viagens ou das memórias que carregava.

    — Markus. É um prazer conhecê-la. — Ele fez um gesto breve em direção à jovem que permanecia sentada na poltrona, observando em silêncio. — Esta é minha neta, Sira.

    Sira ergueu os olhos rapidamente, seus lábios formando um sorriso tímido.

    — Prazer. — Sua voz era quase um sussurro, mas havia algo de calor em seu tom, como uma brasa protegida por uma fina camada de cinzas.

    Pursena virou-se para os filhos mais velhos, puxando-os levemente, quase os empurrando para frente. A filha mais velha, Ariane, deu um passo confiante, seus cabelos castanhos brilhando à luz do sol, herança da mãe, enquanto seu sorriso encantador parecia tirado diretamente do pai.

    — Esta é minha filha Ariane. — Pursena declarou com um toque de orgulho maternal antes de mover a mão para o menino ao lado, que cruzava os braços, olhando para Markus com uma mistura de curiosidade e desconfiança. — E este aqui é meu filho do meio, Loki. Ele puxou o cabelo do pai, mas só isso, porque o temperamento é todo meu.

    Por fim, Pursena acariciou o pequeno em seus braços.

    — E este é Igor. O mais novo da família.

    Markus inclinou-se ligeiramente, seus olhos afiados amolecendo ao pousarem no bebê.

    — Prazer, Igor. — Ele disse, sua voz assumindo um tom quase infantil, como se estivesse falando diretamente ao bebê.

    O gesto arrancou risadas de Pursena e Ariane, que cobriu os lábios com a mão enquanto tentava conter o riso. Loki, por outro lado, manteve-se imóvel, ainda estudando o homem.

    — Markus veio me pedir um favor. — Disse Ivoguin, quebrando o momento de leveza com um sorriso astuto. — Vejam só, dez anos sem aparecer, e quando aparece é para pedir algo. Não é cara de pau, é o rei dos caras de pau!

    — Dez anos se passaram rápido demais. — Respondeu Markus, um sorriso melancólico iluminando brevemente seu rosto. — Parece que foi ontem que nos encontramos naquela missão em Grão-Vermelho, lutando contra aquele urso bestial.

    Ivoguin soltou uma risada, cheia de lembranças de dias que pareciam mais gloriosos em retrospectiva.

    — Isso foi uma loucura. Mas sobrevivemos. A propósito, foi o que nos tornou bons.

    — Ou teimosos. — Markus retrucou, com um tom resignado, mas bem-humorado.

    Loki, que ouvia atentamente, não conseguiu conter sua excitação. Ele correu até o pai, os olhos brilhando de admiração.

    — Vocês eram aventureiros? De verdade?!

    — Claro que sim, garoto! — Respondeu Ivoguin, colocando a mão sobre a cabeça do filho. — Fomos ótimos. Mas não ouça só o que ele diz. Markus é melhor com espadas do que com histórias.

    — Ei, não vamos exagerar. — Markus retrucou, erguendo as mãos em falso protesto. — Boa parte de nossas aventuras foi pura sorte… e decisões duvidosas.

    Loki não parecia ouvir as ressalvas. Seus punhos cerraram-se de emoção, e ele puxou a túnica do pai.

    — Me conta mais! Quero ouvir tudo!

    Ivoguin riu, bagunçando o cabelo do filho.

    — Depois. Temos tempo para isso. Markus vai ficar conosco por uma semana.

    O sorriso de Loki se transformou em um brilho de esperança, enquanto Pursena observava o marido com cautela. A menção de um pedido trouxe uma sombra a seus olhos, e ela apertou Igor contra si. Mesmo sem detalhes, ela já se preparava para o pior.

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