Índice de Capítulo

    Assim que as crianças foram mandadas para os quartos, a sala mergulhou em um silêncio quase solene. Pursena, com gestos calculados, sentou-se em uma poltrona de canto, ajustando o bebê em seus braços. Seus olhos encontraram os de Markus. Não havia frieza, mas uma firmeza natural que contrastava com a leveza de seus modos habituais.

    — Só para deixar claro, eu não permito que meu marido se envolva em aventuras malucas, especialmente em lugares que ninguém jamais ousou explorar ou em busca de tesouros lendários — declarou Pursena, firme, sua voz carregada de determinação.

    Ivoguin soltou uma risada leve, erguendo as mãos como quem se rende.

    — Ah, querida, já estou velho demais para essas coisas.

    Markus sorriu, acompanhando o amigo.

    — Estamos — brincou ele, arrancando outra risada de Ivoguin antes de voltar sua atenção à esposa do amigo. — E, para ser honesto, eu jamais chamaria Ivoguin para isso. Minha jornada é algo que devo trilhar sozinho.

    Sira, sentada na poltrona ao lado, se remexeu inquieta. A jovem não escondia a frustração. Tudo que o avô fazia era para restaurar a honra da família, uma missão que ela desejava de todo coração compartilhar.

    Markus prosseguiu, sua expressão agora carregada de seriedade.

    — Mesmo que precisasse de ajuda, jamais chamaria Ivoguin. Não depois de saber que ele tem uma família. Nunca teria a consciência tranquila se colocasse em risco um pai para seus filhos, ou um marido para sua esposa.

    As palavras, carregadas de sinceridade, dissiparam as preocupações de Pursena como névoa ao sol. Até então, imaginava que o pedido tivesse algo a ver com uma nova masmorra, um local perdido e perigoso, ou um tesouro antigo. Saber que Markus respeitava tanto a vida de seu marido aliviou seu coração e a fez sorrir.

    Já ouvira falar bastante sobre o velho amigo de seu marido, mas conhecê-lo pessoalmente era diferente. Até então, ele era apenas uma sombra no passado de Ivoguin, uma figura que ela respeitava, mas ainda olhava com cautela. No entanto, ao ouvir aquelas palavras, percebeu que o homem não era apenas o que o marido dizia — ele era ainda mais.

    — Nesse caso, qual é o favor que deseja? — perguntou, agora com verdadeira curiosidade em sua voz.

    Markus deu um leve suspiro antes de responder, sua postura rígida suavizando-se levemente.

    — Preciso de alguém para cuidar da minha neta.

    Pursena desviou o olhar para a jovem de cabelos escuros sentada perto deles. A menina era encantadora, com traços delicados e um ar sereno. Ela parecia jovem demais para carregar o peso de qualquer tragédia, mas algo em seu olhar indicava que não era estranha às dores da vida.

    — Entendi — disse Pursena, com um sorriso caloroso. — Se é isso, então por mim está tudo bem. Não vejo problema algum em ajudar um amigo querido do meu marido. Além disso, temos espaço de sobra aqui. Não temos empregados, é verdade, mas todos nós ajudamos a manter a casa em ordem.

    Markus ficou surpreso com a menção à ausência de empregados. Até mesmo ele, que vivia em Grão-Vermelho, tinha três em sua propriedade. Era uma questão prática; enquanto estivesse ausente, eles mantinham o lugar limpo e em ordem, com pagamentos garantidos adiantadamente.

    — Sou imensamente grato pela sua generosidade — disse ele, inclinando levemente a cabeça.

    Pursena corou ligeiramente, desviando o olhar por um momento antes de falar novamente.

    — Não há de quê… Mas, se me permite, gostaria de perguntar algo. O senhor mencionou que é o avô da menina. Quanto aos pais dela… — Ela hesitou, percebendo tarde demais a delicadeza do assunto. — Me desculpe, isso foi indelicado.

    Markus ergueu uma das mãos, pedindo que não se preocupasse.

    — Não, de forma alguma. Acho que devo a você a mesma explicação que dei ao Ivoguin.

    Ele ajustou a postura, seus olhos recaindo sobre ela, que o encarava com expectativa. Então, Markus começou a contar a história que o levou a cuidar de sua neta no lugar de seus pais. Sua voz era grave, mas carregava um tom de melancolia que fazia com que cada palavra parecesse pesar mais do que a anterior.

    ⧫⧫⧫

    Fazia aproximadamente dez anos desde aquele dia fatídico. Sira, então uma garota de apenas dez anos, vivia com seus pais em um pequeno vilarejo nas bordas do território de Grão-Vermelho. A vila era modesta, isolada, mas pacífica — até que a doença da mãe de Sira ameaçou quebrar essa frágil tranquilidade.

    Era um mal misterioso, uma febre persistente que roubava as forças da mulher pouco a pouco. Preocupado, o pai de Sira tomou uma decisão desesperada: levar sua família à capital, onde os médicos possuíam mais recursos e experiência. 

    O tempo era uma faca de dois gumes. Enviar um pedido de escolta para aventureiros levaria dias — talvez semanas. A doença da mãe de Sira podia não esperar tanto.

    E assim, sem proteção além de sua coragem, eles partiram. A carroça simples, puxada por um cavalo já envelhecido, levava uma mãe debilitada, um pai resoluto e uma filha assustada. 

    A estrada era traiçoeira. Bandos de ladrões rondavam como lobos, e rumores sobre monstros surgindo das florestas deixavam o ar ainda mais pesado. O pai de Sira sabia disso, mas a vida da esposa estava em jogo. Não havia escolha.

    Nos primeiros dias, enfrentaram pequenos contratempos. Uma roda da carroça cedeu em um terreno rochoso, e eles precisaram improvisar com cordas e madeira. Em outra noite, sons de criaturas vindos da floresta mantiveram Sira acordada, tremendo debaixo do cobertor fino. Apesar disso, o homem guiava a família com determinação, sempre alerta a cada sombra que cruzava o caminho.

    Na manhã do terceiro dia, algo inesperado aconteceu. À distância, o som de metal chocando-se ecoava pela estrada sinuosa. Avançaram com cautela, e logo avistaram o que parecia ser uma carruagem de entregas sob ataque. Um grupo de aventureiros lutava com ferocidade, tentando proteger o veículo e seu conteúdo. As armas faiscavam sob o sol enquanto os atacantes — homens vestidos com mantos roxos e armados com espadas onduladas — cercavam a carroça como hienas famintas.

    O pai de Sira hesitou. Ajudar poderia ser perigoso demais, mas ignorar a cena seria cruel. Ele sabia, no entanto, que algo estava errado. A carruagem não possuía as marcações típicas de transporte oficial, e a ferocidade dos atacantes indicava que não estavam atrás de simples mercadorias. 

    Antes que pudesse decidir o que fazer, os aventureiros sucumbiram, um a um. Os homens de manto roxo começaram a saquear a carroça com eficiência sinistra.

    E então, um deles os viu.

    Os olhos do homem brilhavam com uma excitação doentia enquanto apontava para a pequena família. O pai de Sira sentiu um calafrio subir pela espinha. Ele os reconheceu imediatamente. Eram os Pecadores — um grupo de lunáticos infames em todo o continente. Seus atos não eram movidos por ganância ou estratégia, mas por um prazer sádico em causar dor e destruição. Eram imprevisíveis, como animais selvagens, e tão cruéis quanto.

    Sem hesitar, o homem tomou uma decisão. Ele se virou para Sira, ajoelhando-se rapidamente.

    — Corra, Sira. Corra para o vilarejo o mais rápido que puder. Pegue isso — disse ele, entregando-lhe uma pequena bolsa com algumas moedas. — Peça ajuda, não olhe para trás.

    A garota hesitou, lágrimas começando a escorrer por suas bochechas.

    — Mas e vocês…?

    — Vá! — ele insistiu, sua voz firme mas cheia de dor.

    Com relutância, Sira começou a correr, seus pés descalços batendo contra a terra dura. Ela olhou para trás uma última vez e viu o pai chicotear as rédeas do cavalo, guiando a carroça em direção oposta aos Pecadores. Ele estava criando uma distração.

    O coração de Sira batia como um tambor enquanto corria pela estrada, tentando ignorar os gritos que começaram a ecoar atrás dela. Ela sabia que seu pai estava lutando para salvar sua família, mas a dúvida cruel a atormentava: ele e sua mãe conseguiriam escapar?

    Naquela idade, ela não entendia totalmente o que significava a palavra “sacrifício”, mas naquele dia, ela sentiu o peso dela pela primeira vez.

    Depois de fugir, Sira não soube mais o que aconteceu com seus pais. Durante o caminho até o vilarejo, ela foi encontrada por um grupo de viajantes que a ajudaram a retornar ao vilarejo, mas agora ela não tinha mais ninguém, até os pais retornarem. 

    No vilarejo pacato onde Sira encontrava refúgio após aquela tragédia, os moradores que a conheciam ficaram profundamente abalados ao ouvir sua história. Entre olhares preocupados e sussurros temerosos, todos compartilhavam um mesmo pensamento: os Pecadores não deixavam sobreviventes. Nenhuma prece parecia suficiente para conjurar a esperança de que os pais de Sira ainda estivessem vivos.

    Movidos por empatia e temor, decidiram enviar uma carta para Grão-Vermelho, onde residia Markus, o avô da garota e único parente vivo conhecido. Markus era um homem de meia-idade, já marcado pelo tempo, mas com uma presença que inspirava respeito. Quando o mensageiro chegou ao portão de sua propriedade na capital do reino, o homem estava em sua biblioteca, mergulhado em um dos livros antigos que colecionava.

    A carta foi-lhe entregue com urgência. Ele a abriu, o selo de cera se desfazendo com um estalo quase imperceptível. Ao ler as palavras, seu rosto antes sereno endureceu, e o brilho de seus olhos, normalmente calmo, tornou-se uma chama intensa de determinação. Markus largou o livro que estava lendo, fechando-o com uma força que ecoou pela sala. Em menos de uma hora, havia arrumado seus pertences essenciais e organizado uma viagem até o vilarejo de sua filha desaparecida.

    A jornada não foi rápida. Dois meses se passaram antes que Markus chegasse à vila. Ele era conhecido por sua paciência e sabedoria, mas, naquele momento, seu coração estava tomado por uma inquietação que há muito não sentia. A notícia que recebeu ao chegar ao vilarejo não foi uma surpresa, mas ainda assim esmagou qualquer esperança que ele pudesse ter nutrido.

    Os moradores contaram-lhe tudo: os pais de Sira haviam desaparecido na estrada, e os relatos mencionavam os mantos roxos dos Pecadores. Markus não precisou de mais explicações. Ele sabia o que isso significava. Aqueles lunáticos — verdadeiros demônios disfarçados de homens — não deixavam sobreviventes. Não havia lógica em suas ações, apenas o prazer insano de ver vidas destruídas.

    Markus permaneceu no vilarejo por alguns dias, ouvindo atentamente tudo o que os moradores e a própria Sira tinham a dizer. Era difícil encarar a neta. A menina, agora órfã, parecia tão frágil, mas seus olhos carregavam uma centelha de força, como se mesmo diante de tamanha tragédia ela se recusasse a se quebrar por completo. Markus viu na garota algo que reconhecia em si mesmo: a obstinação de sua família.

    Mas as memórias de sua filha, a mãe de Sira, pesavam-lhe no coração. Eles haviam se distanciado nos últimos anos, e Markus não podia evitar a sensação de culpa. Depois da morte de sua esposa, o relacionamento entre pai e filha tornou-se turbulento. Markus, apesar de bem-intencionado, era rígido em suas opiniões, enquanto sua filha era uma jovem de espírito livre, cheia de vontades próprias. Suas discussões tornaram-se frequentes, até que ela decidiu partir.

    Mesmo com a insistência de Markus para que ficasse na capital — onde estaria mais protegida e teria uma vida melhor —, sua filha escolheu o vilarejo. Um lugar modesto, próximo às bordas do reino, mas também um lugar onde ela podia construir sua própria vida ao lado do marido. Markus nunca concordou com a decisão, mas respeitou-a, mesmo que isso significasse perder contato aos poucos.

    Agora, ao olhar para Sira, ele sentia o peso do passado e a responsabilidade do presente. Sem hesitar, Markus decidiu que a garota não permaneceria naquele lugar perigoso. Ele ofereceu a Sira um lar em sua casa, em Grão-Vermelho, onde ela estaria segura.

    A viagem de volta foi silenciosa. Markus não era um homem de muitas palavras, e Sira ainda estava processando tudo o que havia acontecido. Quando chegaram à capital, Markus fez tudo o que podia para garantir que a neta tivesse um ambiente acolhedor e confortável.

    Os anos passaram. Markus tornou-se mais do que um avô para Sira; tornou-se seu mentor e protetor. Ele a educou, ensinando-a não apenas sobre o mundo, mas também sobre a resiliência necessária para enfrentá-lo. Apesar disso, o peso da tragédia nunca os abandonou por completo.

    Agora, dez anos depois, o vínculo entre eles era sólido, mas ambos sabiam que o passado ainda lançava sua sombra sobre suas vidas. O nome dos Pecadores permanecia como uma ferida aberta, um lembrete de que o mundo era tão cruel quanto imprevisível.

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