Capítulo 75 - O Elfo Negro Escondido em Icca
No pequeno vilarejo, o som de risos e gritos animados ecoava pelas ruas enquanto um grupo de crianças brincava, tentando manter a bola no ar. A cada toque, a esfera de couro subia mais alto, refletindo a luz do sol em seu movimento gracioso.
As crianças corriam de um lado para o outro, concentradas em evitar que ela tocasse o chão, mas o jogo dependia da habilidade de cada um.
Então aconteceu. Uma das crianças, que sempre lutava para acompanhar os outros, errou o controle. Seus pés mal conseguiram amortecer o impacto, e a bola quicou desajeitadamente antes de ser arremessada para longe, aterrissando com um baque seco no chão, a vários metros de distância.
— Ahhh… é sempre você que deixa a bola cair! — reclamou uma das crianças, cruzando os braços.
— Foi mal, foi mal… — respondeu o garoto culpado, mordendo os lábios, sua irritação evidente.
— Agora que mandou a bola pra longe, vai lá buscar! — disse outro, apontando para o local onde a bola havia parado.
— Tá… tudo bem. — O garoto olhou na direção indicada, mas seu rosto mudou ao reconhecer onde a bola estava. Ela repousava em frente à porta de uma casa isolada na rua. Seus olhos se arregalaram por um momento. — Aquela casa…
Os outros dois meninos se aproximaram, ficando lado a lado enquanto observavam a casa com a mesma mistura de curiosidade e receio.
— É a casa do morador novo, não é? — perguntou o mais velho, tentando disfarçar a tensão.
— Morador novo? — O garoto que derrubara a bola estreitou os olhos, confuso. — Quem é ele?
— E como eu vou saber?! — respondeu o mais velho, impaciente. — Vai logo pegar a bola! Ou tá com medo?
Engolindo em seco, o menino abaixou a cabeça, murmurando para si mesmo.
Só porque o pai dele tem dinheiro acha que pode mandar nos outros… idiota.
Sem outra escolha, começou a caminhar em direção à casa, cada passo parecendo mais pesado que o anterior.
O ar ao redor parecia mais frio à medida que ele se aproximava. A casa tinha algo de inquietante; não estava mal cuidada, mas a aura de mistério que a cercava tornava impossível ignorá-la. Quando chegou perto, viu que a bola estava exatamente na frente da porta, como se estivesse pedindo para ser notada. Ele abaixou lentamente, pegando-a com ambas as mãos.
Foi então que aconteceu. A porta rangeu ao se abrir para dentro, fazendo o garoto congelar no lugar. Um homem apareceu, preenchendo o espaço com sua presença imponente.
Era alto e musculoso, sua pele escura reluzindo levemente sob a luz do sol. Porém, seu rosto estava completamente oculto por uma máscara intricada, feita com detalhes que lembravam máscaras de festivais, mas com algo mais sombrio em sua estética.
Um manto escuro cobria sua cabeça, ocultando até mesmo as orelhas. Ele parecia uma sombra viva, alguém arrancado de uma história assustadora contada ao redor de uma fogueira.
O homem encarou o menino. Seus olhos, invisíveis atrás da máscara, ainda assim pareciam perfurá-lo. O garoto sentiu as pernas fraquejarem, a bola quase escorregando de suas mãos trêmulas.
O silêncio entre os dois era cortante, até que o homem desviou o olhar, observando as crianças ao longe. Ele viu as duas outras correndo para se esconder atrás de uma cerca. Com um longo bocejo, que parecia fora de lugar, ele finalmente falou.
— Toma cuidado para não acertar a porta, tudo bem? — A voz do homem era grave e carregava uma seriedade que o garoto não conseguia ignorar, mesmo com o tom aparentemente casual.
— S-Sim, senhor! Me desculpe! — respondeu o menino, mal conseguindo articular as palavras.
O homem inclinou a cabeça levemente, como se estudasse o garoto por um instante.
— Certo. Vá.
O menino não esperou mais nada. Girando sobre os calcanhares, correu o mais rápido que pôde, agarrando a bola como se sua vida dependesse disso.
⧫⧫⧫
Enquanto o menino corria apressado para longe, ele permaneceu imóvel à porta, os olhos ocultos sob a máscara, mas fixos na direção que ele havia seguido. Por um instante, o som de risadas infantis preencheu sua mente, um eco da infância há muito perdida.
Lembrou-se das crianças de sua terra natal, correndo em um campo florido, seus pés ágeis como o vento. Elas brincavam de maneira parecida, chutando pequenas pedras ou improvisando jogos com galhos. Ele, porém, era sempre deixado de lado.
“Você não pertence a nós”, diziam, as palavras cortando como a lâmina que mais tarde aprenderia a empunhar.
Tiko fechou a porta lentamente, como se ela fosse um portão que separasse a realidade presente das memórias sombrias do passado. Dentro de sua casa – ou talvez prisão, como secretamente a considerava – o silêncio reinava absoluto.
Foi impossível evitar que a mente vagasse até os eventos que o haviam levado àquele lugar. Tudo parecia tão rápido, tão brutal, que às vezes ele duvidava se havia realmente acontecido.
Lembrou-se da primeira vez que avistou aquelas figuras de vestes roxas, suas presenças tão sinistras quanto o crepúsculo antes de uma tempestade. Ele estava à beira do território dos elfos, prestes a desaparecer, quando foi cercado.
“Nós somos Pecadores”, dissera um deles.
O embate que se seguiu foi breve, esmagador. Mesmo com toda sua habilidade, Tiko foi subjugado, e quando recobrou os sentidos, encontrou-se preso em uma cela fria e vazia. Kurin, o homem que, em poucas palavras, definiria o rumo de sua vida.
“Você será um de nós”, dissera Kurin, com um tom que misturava determinação e indiferença. “Mas, primeiro, precisa ser batizado.”
Tiko havia resistido. Argumentou, protestou, até mesmo ameaçou. Mas Kurin havia planejado tudo com precisão cirúrgica. “Ou você se junta a nós”, dissera ele, “ou será entregue às autoridades élficas. Sabe o que isso significa para alguém como você.”
Tiko sabia. Seria capturado, julgado e provavelmente executado. A ideia de morrer como um criminoso renegado queimava em sua alma. Relutante, concordou em seguir as instruções de Kurin.
Foi então que lhe deram a Relíquia Antiga – um pequeno artefato que pulsava com uma energia enigmática. “É uma ilusão”, explicara Kurin. “Não perfeita, mas suficiente para ocultar o que você é.”
Kurin o equipou com uma máscara para complementar a ilusão e reforçou a necessidade de discrição.
“Você será enviado para o vilarejo de Icca”, dissera Kurin, enquanto entregava a Tiko uma pequena bolsa de ouro e uma mochila de couro. “Compre uma casa, viva entre os humanos, e aguarde por nossas instruções. O dinheiro será enviado periodicamente. Não cometa erros.”
Tiko não teve chance de responder. Foi desmaiado, e quando despertou, encontrava-se deitado sob as sombras de uma floresta. A pequena aldeia de Icca podia ser vista ao longe, suas casas simples de madeira fumegando com o calor das lareiras. Ele ainda sentia a textura do ouro na bolsa e o peso de sua espada retornada.
Os dias que se seguiram foram um teste de adaptação. Aprender a viver entre os humanos, sem jamais abaixar a guarda, exigiu uma vigilância constante. A máscara, sempre presente, tornou-se uma extensão de si mesmo. Mesmo entre as paredes de sua casa, ele raramente se permitia relaxar.
E assim ele permaneceu, preso entre duas identidades – o elfo negro renegado e o humano mascarado –, cada dia uma luta silenciosa contra o passado e o futuro que o aguardava.
Conforme fora instruído por aquele lunático chamado Kurin, Tiko adquiriu uma modesta casa de madeira no extremo leste do vilarejo humano de Icca.
A residência, com suas janelas pequenas e um telhado desgastado pelo tempo, parecia ter sido abandonada por anos antes de ele chegar. Sua localização discreta, quase na base da montanha que os humanos chamavam de Piry Up, servia perfeitamente ao propósito: passar despercebido.
Os dias transformaram-se em semanas, e então em meses. Dois meses haviam se esvaído desde que Tiko pisara fora dos territórios élficos. Durante esse período, Kurin o visitava regularmente, sempre trajando roupas comuns para se misturar aos humanos locais.
Cada visita era acompanhada de uma entrega de moedas, o suficiente para sustentar Tiko sem que ele precisasse se expor demais. Era uma rotina sufocante, mas clara: Kurin fazia questão de lembrá-lo a cada encontro de que estava sendo observado. Qualquer tentativa de fuga seria fatal ou, no mínimo, o levaria de volta ao reino élfico para enfrentar a prisão e a forca.
Tiko sabia que Kurin não estava brincando. A força esmagadora que o homem demonstrara desde o primeiro encontro havia corroído sua confiança. Ele havia aceitado a realidade de sua fraqueza. Fugir não era uma opção.
Apesar disso, Icca não era um lugar terrível. O vilarejo humano era pacato, com seus habitantes levando vidas simples e previsíveis. O dia começava com o som de martelos na forja central e terminava com as lamparinas sendo acesas, uma a uma, ao longo das ruas de terra.
Tiko evitava ao máximo interações diretas, mas, de longe, observava a vida dos aldeões. Havia algo de familiar naquilo. Humanos, elfos e até mesmo elfos negros, no fim das contas, pareciam lutar pela mesma coisa: sobreviver ao próximo dia.
Os dias de Tiko resumiam-se a treinos, refeições e estudos. Ele passou a frequentar discretamente a biblioteca local, mergulhando em livros sobre o mundo humano.
Aprendeu sobre suas estruturas sociais, suas crenças e, para sua surpresa, tecnologias que os elfos jamais haviam concebido. Certos mecanismos humanos, como rodas de água e moinhos de vento, pareciam simples, mas eram engenhosos. Havia algo quase mágico no modo como os humanos compensavam sua falta de poder inato com invenções práticas.
Mesmo assim, todas as noites traziam os mesmos pensamentos angustiantes. Ele não podia evitar imaginar o destino de GolbZedh, agora provavelmente preso pelo assassinato de Richard Ravens. Tiko sentia um peso esmagador de culpa. Ele deveria estar lá, enfrentando o julgamento, mas estava aqui, escondido.
Os mistérios acerca dos pecadores só se aprofundaram com o tempo. Tiko se recordava vividamente de como havia saído do reino dos elfos e acordado, apenas um dia depois, na floresta próxima a Icca. Era um percurso impossível.
Após estudar a geografia do continente, concluiu que uma viagem daquela magnitude deveria levar pelo menos 20 dias, mesmo utilizando as melhores rotas. O método que os pecadores usaram para transportá-lo era um enigma. Não parecia haver tecnologia ou magia conhecida capaz de realizar tal feito.
Nem mesmo a biblioteca de Icca, com sua coleção surpreendentemente vasta para um vilarejo pequeno, oferecia respostas. Talvez fosse uma técnica perdida, algo que transcendia o conhecimento dos humanos e elfos comuns. Ou, talvez, fosse apenas mais uma prova do quão pouco ele sabia sobre o mundo.
As noites eram as mais difíceis. Quando o silêncio se instalava e os ventos da montanha sopravam pelas frestas de sua casa, Tiko se sentia pequeno. Ele fitava o teto por longos minutos antes de conseguir dormir, e, todas as manhãs, a mesma pergunta ecoava em sua mente:
O que será que eles querem de mim?
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