Índice de Capítulo

    Tiko despertou naquela manhã com uma dor de cabeça que parecia perfurar sua mente como uma lâmina afiada. Não era a primeira vez. Desde que fora obrigado a permanecer naquele vilarejo humano, essas dores vinham e iam como sombras indesejadas. 

    Ele culpava Kurin e os pecadores por isso. Suas noites eram tomadas por ansiedade, pensamentos inquietos sobre o que pretendiam fazer com ele, e a falta de sono cobrava seu preço cruelmente nas primeiras horas do dia.

    — Ah… — murmurou ele, esfregando as têmporas enquanto se levantava da cama.

    O quarto, feito de madeira envelhecida, era pequeno e desprovido de ornamentos, mas o espaço parecia suficiente para alguém que vivia sozinho. Ele caminhou até a sala de estar, o ranger das tábuas do assoalho ecoando suavemente. 

    A casa, minúscula e humilde, lembrava vagamente a morada de GolbZedh no reino dos elfos negros, embora ainda menor e mais simples. Para Tiko, porém, aquilo pouco importava. Ele aprendera a não ligar para o tamanho ou o conforto, especialmente quando não havia escolha.

    Ele se sentou à mesa de madeira áspera e começou sua refeição matinal. Pão e vinho. Era uma combinação que ele jamais escolheria por conta própria, mas, após dois meses vivendo naquele lugar, aprendera a se adaptar. 

    No início, a comida parecia um insulto ao paladar. Ele estava familiarizado com pão e vinho em sua terra natal, mas o sabor aqui era… diferente. O trigo parecia mais seco, o vinho, menos refinado, como se o solo da região humana alterasse até mesmo o caráter dos alimentos.

    — Curioso como até o gosto muda de região para região… — murmurou para si mesmo, enquanto mastigava lentamente.

    No entanto, ele já estava acostumado. A repetição de cada manhã, cada refeição e cada dia sem novidades o forçaram a aceitar o que antes parecia intragável. Havia algo de quase confortante na rotina, mesmo que sua mente ainda estivesse inquieta.

    Ao olhar pela pequena janela ao lado da mesa, Tiko viu a luz da manhã filtrando-se entre as árvores da floresta próxima. O vilarejo de Icca, à primeira vista, parecia uma pintura tranquila. 

    A fumaça das chaminés subia preguiçosamente para o céu, e o som distante de martelos na forja principal marcava o início de mais um dia. Era difícil imaginar que ele, um elfo negro, estivesse escondido ali, vivendo uma vida que mal podia chamar de sua.

    Ele suspirou profundamente, deixando seus pensamentos vagarem enquanto terminava o café da manhã. Apesar da calmaria ao redor, seu coração continuava agitado. Ele sabia que Kurin não o deixaria em paz para sempre. Este era apenas o prelúdio de algo maior, algo que Tiko ainda não conseguia entender.

    Depois de terminar sua refeição simples, Tiko colocou a máscara com cuidado, ajustando as alças para que ficasse firme no rosto. Seus dedos deslizaram pela mesa de madeira desgastada até o pequeno objeto que repousava ali, quase despercebido à primeira vista. 

    Ele o pegou e guardou no bolso interno de sua túnica. O item, uma relíquia de aparência modesta, era muito mais do que parecia.

    A relíquia fora entregue a ele por Kurin, junto com instruções claras sobre seu uso. Tiko lembrava bem do que fora dito: o funcionamento da relíquia dependia de sua habilidade em manipular Gama, uma energia que percorria o corpo de todos os seres vivos. 

    Era algo que ele havia aprendido desde muito jovem, durante os anos de estudos nas prestigiadas academias élficas. Aqueles tempos pareciam pertencer a outra vida.

    Etapa 1: ativar a relíquia com a técnica de Compartilhamento de Gama. Apesar de simples em conceito, a técnica exigia precisão. Transferir a Gama de seu corpo para um objeto ou ser vivo era algo que variava em dificuldade dependendo do recipiente. 

    No caso da relíquia, o processo era relativamente estável, e Tiko, com sua formação privilegiada, dominara a técnica rapidamente. Ele sabia que outros nomes para essa habilidade existiam — Injeção de Gama, Transferência de Gama — mas a essência era a mesma: conectar sua energia ao objeto.

    Etapa 2: configurar a ilusão. Assim que a Gama energizava a relíquia, o artefato ganhava vida, como uma máquina que acabara de receber combustível. Ele segurava o objeto firme em sua mão e concentrava-se nos detalhes. Sua mente precisava definir com clareza a ilusão que queria criar: olhos humanos comuns, orelhas discretas, cabelo escuro — as características essenciais para esconder sua verdadeira natureza. Era como moldar argila invisível, e qualquer falha de concentração poderia resultar em algo grotesco ou, pior, revelar sua identidade.

    Tiko já estava acostumado com o processo. As semanas no vilarejo haviam transformado o uso do artefato em uma tarefa quase mecânica. Ao final, ele se olhou em um pequeno espelho rachado na parede. 

    Seus olhos, antes marcados pelo brilho característico dos elfos, agora eram indistinguíveis dos olhos humanos. As orelhas pontudas haviam desaparecido. Ele sabia que no vilarejo cabelos brancos eram raros entre os jovens. A coloração escura ajudava a evitar perguntas desnecessárias.

    Ainda assim, Kurin insistira que ele usasse a máscara. A ilusão era apenas um recurso adicional, uma salvaguarda. Se por acaso a máscara fosse retirada, ele poderia manter a aparência humana tempo suficiente para escapar.

    Tiko prendeu sua espada na bainha com um gesto fluido, ajustando-a ao cinto de couro desgastado que segurava sua calça. Ele ajeitou o cabelo com uma mão, verificando se estava alinhado. Embora o vilarejo fosse calmo, ele não confiava em sua sorte. Tudo ali parecia ser um teste constante, um campo minado esperando para ser ativado.

    Do lado de fora, o ar estava fresco e levemente úmido, um sinal de que talvez chovesse mais tarde. O vilarejo ainda acordava; o som de passos apressados e conversas baixas preenchiam as ruas de terra. Pequenas casas de madeira alinhavam-se irregularmente, e à distância, a biblioteca aguardava, uma das poucas coisas que ele realmente apreciava naquele lugar.

    Estudar era um alívio para sua mente inquieta, uma forma de escapar das preocupações que pesavam sobre seus ombros. Cada dia passado na biblioteca o aproximava de um novo entendimento. 

    ⧫⧫⧫

    O sol ainda não havia despontado completamente no horizonte quando Sira despertou naquela manhã. A brisa suave trazia consigo o aroma das panquecas recém-preparadas, um convite irresistível para sair da cama. 

    O café da manhã na casa da família de Ivoguin não era apenas uma refeição; era uma experiência calorosa e repleta de sabores. Sira já havia provado panquecas com calda de caramelo antes, mas havia algo de especial naquelas. 

    Talvez fosse o toque de especiarias ou a textura perfeitamente macia, mas ela sentiu que havia mais do que simples ingredientes naquela comida — havia cuidado, hospitalidade, talvez até amor.

    Enquanto ainda saboreava os últimos vestígios do café da manhã, Markus se aproximou dela. O olhar determinado que ele sempre carregava agora parecia mais intenso. Ele informou, quase sem preâmbulos, que partiria em poucos dias. 

    No máximo, permaneceria ali por mais três dias antes de retomar sua jornada para o reino Grão-Vermelho, onde verificaria o estado de sua casa antes de continuar sua busca incansável pelos pecadores. Era típico dele, pensou Sira: direto, focado, sempre avançando, como uma espada que nunca descansava em sua bainha.

    No entanto, era o dia anterior que permanecia vívido na mente de Sira. Ao chegar à casa de Ivoguin, Pursena, a esposa dele, pedira para conversar com ela em particular. No início, Sira sentiu-se desconfortável com a maneira calorosa e afável com que Pursena a tratava. 

    Não estava acostumada a esse tipo de acolhimento. Mas a conversa evoluiu de forma natural, e Sira começou a se sentir à vontade. Pursena era uma anfitriã gentil, mas também tinha um jeito firme e determinado que a fazia parecer uma líder natural.

    Eventualmente, o assunto mudou para o futuro de Sira. Pursena, de maneira franca, ofereceu a Sira um lar enquanto precisasse. Com a fortuna de seu marido, ela garantiu que comida, roupas e outras necessidades nunca seriam um problema. Mais do que isso, Pursena ofereceu-se para pagar os custos de uma academia caso Sira quisesse estudar.

    Sira, no entanto, não queria ser um peso para aquela família. 

    Por mais generosa que fosse a oferta, ela sentia que precisava retribuir de alguma forma. Propôs ajudar nas tarefas domésticas e, mais importante, atuar como guarda-costas para a família. Também se dispôs a cuidar das crianças, caso necessário. 

    Embora não fosse de se gabar, sua habilidade em combate era sólida. Markus já havia dito que ela possuía força comparável a um aventureiro de ranking prata, uma avaliação que a enchia de um modesto orgulho.

    Pursena, embora grata, relutava em aceitar a ideia de Sira como guarda-costas. Ela apreciava saber que havia alguém forte o suficiente para proteger a família, caso fosse necessário, mas preferia que Sira seguisse um caminho que lhe trouxesse mais oportunidades. 

    O vilarejo de Icca, afinal, era seguro. Situado em um vale quase completamente cercado por montanhas, o lugar não apenas tinha boas academias, mas também uma organização própria, independente dos reinos que dominavam o continente.

    Icca e Idda, os dois vilarejos gêmeos, eram verdadeiras anomalias no continente. Separados pela imponente montanha Piry Up, cada um guardava um lado do passo montanhoso como sentinelas silenciosos. 

    Sua singularidade não estava apenas no isolamento político — não pertenciam a nenhum reino —, mas também na harmonia de suas leis e costumes próprios. Ainda assim, sua importância estratégica era inegável.

    Os dois vilarejos serviam como pontos de descanso indispensáveis para viajantes que cruzavam o continente. As estradas que levavam a eles eram movimentadas por caravanas de mercadores, peregrinos e aventureiros que sabiam que ali encontrariam um raro refúgio. Com suas ruas pavimentadas e mercados vibrantes, ambos os vilarejos eram mais que um simples ponto de passagem; eram destinos por si só. 

    A beleza das montanhas, as águas cristalinas que desciam em cascatas e a cultura acolhedora dos habitantes faziam deles locais de parada obrigatória, tanto para negócios quanto para turismo.

    Conscientes dessa relevância, os reinos do continente haviam selado um acordo histórico para proteger os dois vilarejos. Tropas compostas pelos cavaleiros sagrados de cada reino patrulhavam as áreas, garantindo que Icca e Idda fossem os lugares mais seguros de todo o continente. Era raro um vilarejo comum receber tanta atenção, mas a segurança reforçada e as constantes patrulhas faziam com que as pessoas de todos os cantos confiassem em sua proteção.

    Foi nesse cenário de segurança quase impenetrável que Sira sugeriu trabalhar como guarda-costas. Apesar da intenção genuína de ajudar, Pursena, com seu jeito gentil mas firme, rejeitou a ideia. No entanto, a mulher apresentou uma alternativa.

    — Se você está tão determinada a trabalhar, posso falar com uma amiga que é dona da biblioteca de Icca. Tenho certeza de que ela adoraria contar com sua ajuda.

    Agora, no dia seguinte à conversa, Sira encontrava-se no interior da biblioteca, um edifício surpreendentemente grandioso para um vilarejo como Icca. 

    As paredes de pedra eram cobertas de prateleiras repletas de livros de todos os tamanhos e cores. Um leve aroma de pergaminhos envelhecidos e madeira polida preenchia o ar, trazendo consigo um tipo peculiar de tranquilidade. O som abafado de passos ecoava suavemente, enquanto Pursena conversava animadamente com uma mulher robusta e de sorriso acolhedor.

    A amiga de Pursena era a bibliotecária local, uma mulher chamada Lairia. Seus olhos brilhavam com entusiasmo enquanto ouvia sobre Sira, avaliando-a com um olhar curioso e atento. Sira, por sua vez, permanecia em silêncio, permitindo que a conversa seguisse seu curso. Ainda assim, não pôde evitar ser capturada pelo ambiente ao seu redor.

    A biblioteca era muito mais que um depósito de conhecimento; era um ponto de encontro para estudiosos, comerciantes e até mesmo bardos em busca de inspiração. Havia um canto iluminado por janelas altas, onde crianças aprendiam as primeiras letras sob a supervisão de professores pacientes, e outro onde aventureiros folheavam mapas detalhados, planejando suas jornadas.

    Quando a conversa entre Pursena e Lairia terminou, a bibliotecária virou-se para Sira com um sorriso acolhedor.

    — Ouvi muitas coisas boas sobre você. Se estiver disposta, há espaço para ajudar aqui. Não é um trabalho glamouroso, mas é importante. Preservar o conhecimento é tão essencial quanto proteger o vilarejo com uma espada.

    Sira inclinou a cabeça em concordância. Embora não fosse o que ela havia imaginado inicialmente, algo na paixão de Lairia pela biblioteca despertou sua curiosidade. Talvez ali, cercada de histórias e mapas de terras distantes, ela encontrasse não apenas trabalho, mas um novo propósito.

    O acordo foi rapidamente selado, e Sira começou seu trabalho na biblioteca naquele mesmo dia. A princípio, a ideia de organizar prateleiras e lidar com um ambiente tão silencioso parecia um tanto estranha para alguém acostumada a trilhas e aventuras, mas ela aceitou o desafio.

    Lairia, cuidadosa e experiente, sabia que a adaptação de Sira poderia levar algum tempo. Para facilitar as coisas, chamou uma jovem assistente chamada Mirel, que já trabalhava ali há anos, para ajudar a novata a se ajustar.

    Apesar da estranheza inicial, Sira logo percebeu que o ambiente não era tão opressivo quanto imaginara. A calma do lugar era quase terapêutica. As poucas pessoas que iam e vinham o faziam em passos leves, suas vozes sussurradas quase imperceptíveis. Havia algo reconfortante naquele silêncio, uma familiaridade que ela não conseguia ignorar.

    Será que é por isso que me sinto tão bem aqui? Pensou, enquanto caminhava entre as fileiras de prateleiras altas e cheias de volumes antigos. O silêncio da biblioteca lembrava-lhe das longas viagens ao lado de Markus, onde o som do vento e das passadas suaves eram a única trilha sonora.

    Horas se passaram, e o almoço chegou como um pequeno intervalo em sua nova rotina. Após a refeição, restavam-lhe alguns minutos livres. Sira, entretanto, não sabia ao certo como ocupá-los. Instintivamente, sua mente voltou ao treino com sua katana, algo que ela costumava fazer para aliviar a mente. Mas Pursena havia insistido firmemente que armas não eram apropriadas para a biblioteca.

    Sira bufou ao lembrar da conversa. Respeitou a decisão da mulher, mas a ausência do peso da espada em sua cintura a deixava inquieta. Sem ter outra opção, decidiu andar pela biblioteca, deixando seus olhos vagarem pelas prateleiras, buscando algo que despertasse seu interesse.

    No início, foi difícil decidir. A abundância de livros a confundia. Romance? Não, nunca gostara de histórias melosas. Contos históricos? Talvez interessante para outros, mas para ela eram apenas ecos distantes do passado. Ela precisaria de algo que realmente a conectasse com seu mundo, algo que falasse à guerreira que habitava dentro dela.

    Então, seus olhos pousaram em um título: A Arte do Combate. Era um livro robusto, encadernado em couro escuro e com letras douradas gravadas na lombada. O simples nome despertou nela um lampejo de entusiasmo.

    — É esse — murmurou para si mesma, com um leve sorriso.

    O problema era a altura da prateleira. O livro estava guardado na fileira mais alta, além de seu alcance normal. Determinada, Sira ficou na ponta dos pés e esticou o braço, tentando agarrá-lo. Seus dedos roçaram na capa, e ela sentiu que estava prestes a alcançá-lo quando algo a interrompeu.

    Outra mão, mais escura e robusta, agarrou o livro quase ao mesmo tempo. Uma sombra projetou-se sobre ela, e Sira sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Erguendo o olhar, viu a figura de um homem alto, mascarado, encarando-a com olhos penetrantes.

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