Capítulo 81 - Novas Amizades
Haviam se passado pouco mais de dois meses desde que Sira passou a viver na casa de Ivoguin e sua família. Para ela, o início foi marcado por um desconforto silencioso, como um pássaro que, de repente, se encontra em um ninho que não é o seu.
Ivoguin e os seus eram boas pessoas, disso ela sabia, mas dividir um lar com quase estranhos era algo que ainda a fazia sentir-se deslocada.
Com o tempo, porém, as arestas do desconhecido começaram a se desgastar. A rotina foi ganhando forma, moldando-se ao novo ritmo, e os rostos antes apenas familiares tornaram-se companhias mais próximas. Ivoguin era um homem de hábitos simples, mas cativantes em sua constância.
Ele era o tipo de pessoa que valorizava tanto a mente quanto o corpo — frequentemente visto com um livro em mãos ou cuidando da forma física, quando a disposição o permitia. À noite, sua figura era um retrato de tranquilidade.
Ele gostava de sentar no jardim com uma taça de vinho, o olhar perdido entre as estrelas, como se buscasse nelas respostas que o mundo terreno não podia oferecer.
Em algumas dessas noites, ele convidava Sira para acompanhá-lo. A princípio, ela aceitava por cortesia, sem esperar muito daqueles momentos. Mas, pouco a pouco, começou a encontrar um tipo estranho de conforto naquilo: o silêncio compartilhado, a quietude pontuada pelo som ocasional do vento ou do vinho sendo servido.
Não era uma proximidade avassaladora, mas uma semente discreta de amizade começava a brotar entre os dois.
Já Pursena, a esposa de Ivoguin, tornou-se algo mais próximo de uma tia afetuosa para Sira. Pursena possuía uma bondade natural, envolvente, que parecia sempre encontrar uma forma de aliviar o coração alheio.
À noite, ela fazia questão de iniciar conversas com Sira, trocando histórias e experiências como se buscasse construir uma ponte entre elas. Inicialmente, Sira ouvia mais do que falava, retraída por anos de solidão e pela falta de prática em compartilhar sua vida.
Mas, com o passar dos dias, encontrou coragem para abrir-se. Pursena era uma ouvinte atenta, e Sira logo percebeu que dividir detalhes de seu trabalho e de sua vida trazia uma leveza que há muito tempo desconhecia.
As crianças da casa, Ariane e Loki, rapidamente adotaram Sira como uma irmã mais velha. Ariane, a mais velha, era um espírito vibrante que parecia personificar a palavra feminilidade.
Loki, por outro lado, era um menino cheio de energia, sempre em busca de aventuras, mesmo que fosse apenas nos limites do quintal. Nos dias em que Pursena e Ivoguin saíam para algum momento a dois, era Sira quem cuidava das crianças, algo que ela fazia com uma mistura de responsabilidade e surpresa.
Nunca imaginara, até então, que poderia ser alguém em quem outros confiariam tanto.
Ariane, em particular, tinha um impacto curioso sobre Sira. A menina era fascinada por moda, perfumes e tudo que envolvesse a graça e a elegância feminina — aspectos que sempre haviam passado longe da vida prática de Sira.
Tendo crescido ao lado de seu avô, ela conhecia mais sobre afiar lâminas do que sobre aplicar maquiagem, e mais sobre trajes funcionais do que sobre vestidos adornados. Mas Ariane não se importava com isso; em vez disso, assumiu como missão pessoal ensinar a Sira tudo o que sabia sobre o assunto.
As lições foram inesperadas, mas Sira aceitou-as com uma determinação silenciosa. Para ela, aquilo era menos sobre vaidade e mais sobre retribuir a hospitalidade da família.
Se vestir bem, mesmo que a incomodasse, era uma forma de mostrar que ela apreciava e respeitava o lar que a acolhera. Logo, ela passou a usar vestidos decorados, mesmo que eles limitassem seus movimentos de maneira irritante.
Entre as crianças da casa, Loki era o mais desafiador. O menino, travesso como um filhote de raposa, testava os limites de todos ao seu redor. No entanto, com o tempo, até ele cedeu ao carisma firme e discreto de Sira.
Chamava-a de “Irmãzona”, um apelido que ele repetia com um sorriso travesso, mas sincero. Suas brincadeiras desafiavam a paciência dela, mas também enchiam os dias de um calor que ela não sabia que sentia falta.
E então, havia Ariane, cujas lições sobre feminilidade criaram um contraste quase cômico com a seriedade de Sira. Apesar de sua resistência inicial, Sira começou a apreciar os momentos compartilhados entre as duas, encontrando um estranho conforto nas risadas e nos conselhos simples da menina.
Sua katana, outrora companheira constante, agora descansava mais frequentemente em seu suporte, sendo retirada apenas para treinos noturnos, quando o mundo ao redor estava em silêncio e ela podia recordar quem realmente era.
Sira sentia a ausência do peso familiar da lâmina em sua cintura, mas entendia que havia um momento para tudo — e, talvez, aquela fosse uma pausa necessária para sua alma inquieta.
Sira havia vivido anos num estado de constante vigilância, onde ter sua espada ao alcance de sua mão era tão natural quanto respirar.
Mas naquela aldeia tranquila, a vida desarmada parecia menos insensata com o passar do tempo. Não era como se tivesse abandonado sua katana completamente; nas noites em que o céu ficava límpido e as estrelas brilhavam como um mar de tochas, ela a desembainhava para treinos silenciosos no quintal.
Mesmo assim, a lâmina que antes parecia uma extensão de seu próprio corpo agora repousava mais frequentemente em seu suporte, como um guardião em descanso.
Os domingos eram especiais na casa de Ivoguin. A família inteira se reunia ao redor da mesa, e as conversas fluíam como o vinho que ocasionalmente acompanhava o jantar.
Era algo simples, mas carregado de significado para Sira. A convivência trouxe à tona um lado dela que havia sido enterrado sob anos de silêncio forçado. Durante aquelas refeições, ela descobriu que gostava de compartilhar suas experiências, que havia algo reconfortante em falar, em ser ouvida.
No trabalho, a mudança também era perceptível. Sira, que sempre fora uma figura reservada, começou a fazer amigas entre as colegas. Mirel e Sandra eram jovens como ela, e as três rapidamente criaram um vínculo.
Saíam juntas para comer ou simplesmente conversar, e essas pequenas escapadas se tornaram um novo tipo de treino para Sira – um treino social, onde cada sorriso e cada risada eram vitórias.
Entre as muitas promessas feitas a si mesma, Sira havia decidido investir em seus estudos.
Pursena a incentivou a ingressar na academia do vilarejo, cobrindo metade dos custos enquanto Sira se comprometia com o restante. Quando o momento chegou para escolher uma área de estudo, Sira sentiu um peso inesperado.
A academia oferecia aulas de combate, algo que ela dominava e poderia facilmente aperfeiçoar. Contudo, o pensamento de Pursena ecoava em sua mente: “Escolha algo que a faça feliz, algo que não seja apenas uma extensão do que você foi obrigada a ser.”
Por dias, Sira refletiu sobre o que queria para si mesma. Durante uma dessas noites, enquanto observava o céu estrelado ao lado de Ivoguin, encontrou sua resposta. Ele, com seu tom calmo e suas palavras ponderadas, disse que o verdadeiro desafio era seguir o coração, não o caminho mais óbvio.
Na manhã seguinte, Sira decidiu que continuaria a aprimorar sua arte com a espada, não porque sentia que devia, mas porque queria. A espada era mais do que uma arma para ela – era uma parte de sua identidade. E se o curso durava apenas um ano, poderia, no futuro, explorar outras paixões.
Assim, Sira embarcou em uma nova rotina. Suas manhãs eram preenchidas com treino disciplinado, e as tardes, com trabalho e companhias que tornavam os dias mais leves. A espada em suas mãos já não era apenas um símbolo de luta, mas de escolha.
O vilarejo lhe ofereceu uma chance rara: a de viver e crescer sem pressa, e Sira, pela primeira vez, sentiu que estava vivendo não apenas por obrigação, mas por vontade própria.
No refeitório modesto da biblioteca, três jovens ocupavam uma mesa perto da janela, onde o sol da tarde banhava os pratos simples com uma luz calorosa. Sandra, a mais perspicaz do grupo, largou seu garfo com um leve tinido contra o prato, sua expressão misturando surpresa e reprovação.
— Sira, que machucado é esse, menina?! — A voz dela era firme, mas com uma ponta de preocupação que a tornava mais uma repreensão carinhosa do que uma acusação.
Sira, pega de surpresa, congelou no meio da mordida em um sanduíche mal montado, as mãos segurando o pão de forma amassado. Os olhos dela se arregalaram, mais em confusão do que em culpa.
— Csomo ashim? — respondeu, a boca cheia. Um pedaço de alface caiu de lado, pendurado como se estivesse prestes a escapar.
Mirel, que sempre mantinha uma postura impecável, ergueu o olhar lentamente de sua torta, equilibrando um pequeno pedaço na ponta do garfo.
— Não fale de boca cheia. Isso não é algo que uma dama deveria fazer — disse ela com um tom tão calmo que quase parecia cruel. Havia uma certa elegância em como ela cortava cada pedaço de sua sobremesa, como se estivesse praticando para um banquete formal.
Sira mastigou apressada e engoliu, mas, ao invés de pegar o guardanapo na mesa, moveu a mão para a manga da camisa. Sandra arqueou uma sobrancelha, um gesto tão carregado de expectativa que a fez hesitar. Sira recuou com relutância, pegou o guardanapo e limpou a boca.
— Você tem que se cuidar mais, sabe? As pessoas notam essas coisas, Sira. Como vai arrumar um namorado agindo assim? Meninos gostam de garotas requintadas e arrumadas — disse Sandra, sua voz cheia de autoridade como se estivesse revelando uma lei universal.
Sira inclinou a cabeça para o lado, apoiando-a na palma da mão, sua expressão um misto de cansaço e tédio.
— Hm… Não é como se eu quisesse um namorado. Pra que eu precisaria de um? — respondeu, mais para o ar do que para as amigas.
— Pra casar, oras. — Mirel deu de ombros, como se a resposta fosse óbvia.
— E ter filhos. — completou Sandra, com a mesma naturalidade.
Sira suspirou profundamente, como se carregasse o peso do mundo nos ombros.
— Eu não quero fazer nada disso — retrucou, sua voz soando mais firme agora.
As duas amigas trocaram olhares breves, seus pensamentos claramente alinhados, antes de voltarem suas atenções para Sira.
Elas eram diferentes dela em quase todos os sentidos. Mirel, sempre impecável, e Sandra, com sua energia quase impositiva, faziam cursos de etiqueta e gastronomia na mesma academia em que Sira treinava a arte da espada. Filhas de famílias abastadas, nunca tinham segurado uma arma na vida.
— Vocês estão pensando muito à frente. Essas coisas não deveriam acontecer de forma mais natural? — Sira perguntou, erguendo uma sobrancelha, esperando que a lógica prevalecesse.
Sandra soltou um riso curto e afiado.
— Natural? Sei. E por natural, você quer dizer ignorar tudo isso como você faz e acabar velha, sozinha e sem nenhum filho? — Ela sorriu, mas havia uma ponta de provocação que fazia Sira estremecer.
— N-não é isso que eu quis dizer… — murmurou Sira, desviando o olhar.
Mirel, que até então havia mantido sua compostura serena, apoiou o garfo no prato e limpou os lábios com delicadeza antes de intervir.
— Sira, não é querendo me intrometer, mas já me intrometendo… — começou ela, sua voz sempre controlada, mas carregada de uma autoridade velada.
Sira ergueu a mão, exasperada.
— Se você já vai se intrometer, então por que começar dizendo que não vai? — protestou, mas foi cortada antes que pudesse continuar.
— Cala a boca. — Mirel falou rápido, cortante, mas com um brilho de diversão nos olhos. — O que eu quero dizer é que você precisa começar a pensar no seu futuro, amiga.
Sira revirou os olhos, frustrada, mas ainda com um leve sorriso nos lábios.
— Eu já penso no meu futuro. Estou trabalhando, estudando… O que mais vocês querem de mim? — Ela gesticulou com as mãos, apontando para a mesa, como se os fatos fossem evidentes.
As duas amigas a encararam por um momento, depois falaram em uníssono, suas expressões apáticas como se fosse óbvio.
— Um namorado.
Sira abriu a boca para retrucar, mas a fechou novamente, soltando um suspiro resignado enquanto apoiava o rosto na mão.
— Ah… Deixa pra lá… — murmurou, aceitando a derrota enquanto Mirel e Sandra trocavam um sorriso cúmplice.
O sol continuava a entrar pela janela, iluminando a mesa como se fosse uma cena comum, mas para Sira, havia algo ali que, apesar das implicâncias, fazia com que se sentisse estranhamente em paz.
Os olhos de Sira vagaram distraídos pelo pátio do refeitório, até pousarem em uma figura que ela reconhecia bem.
O homem estava sentado sob a sombra de uma árvore, cercado por uma pilha de livros, que pareciam ameaçar desabar a qualquer instante. Ele estava, como sempre, com o rosto parcialmente oculto por uma máscara que lhe dava um ar enigmático.
Sira franziu o cenho, curiosidade misturada com uma pontada de desconforto. Algo naquele homem a intrigava, embora ela mesma não soubesse o porquê.
— Ohhh… Quem é esse aí que você tá encarando como se fosse uma princesa observando seu herói de guerra? — A voz de Sandra cortou seus pensamentos, e a amiga estava tão próxima que Sira quase deu um salto.
— Q-que?! Eu não estava encarando ninguém! — Sira respondeu, mas o rubor em suas bochechas entregava algo mais.
Sandra, com um sorriso travesso, apoiou-se no ombro da amiga e olhou na mesma direção. — Hmmm… É o mascarado fortão, né? As meninas sempre falam dele. Como é mesmo o apelido? Ah, isso! ‘O Gostoso Mascarado’! — Sandra riu, claramente se divertindo com a situação.
Do outro lado da mesa, Mirel cruzou os braços, também interessada na conversa. — Ele é sempre assim? Sentado sozinho com aquele monte de livros? Parece um tipo esquisito, mas misterioso.
Sira soltou um suspiro exasperado, tentando desviar a conversa. — Dá pra vocês pararem? E que negócio é esse de apelidar os outros? Parece coisa de criança.
Mirel arqueou uma sobrancelha, inclinando-se levemente na direção de Sira. — Ah, então você conhece ele?
— Claro que não! — Sira respondeu depressa demais, o que fez suas amigas trocarem um olhar cúmplice.
— Conhece sim — afirmou Sandra, com um sorriso de quem sabia exatamente onde isso ia dar.
— Tá na cara que conhece — concordou Mirel. — Vai, confessa.
Sira jogou as mãos ao ar, irritada. — Eu já disse que não conheço! Só falei com ele uma vez, tá bom? Ele veio na biblioteca quando eu estava organizando umas prateleiras e pediu um livro. Só isso!
As duas amigas cobriram a boca ao mesmo tempo, fingindo um choque dramático.
— Aaaaah… Então vocês já conversaram! — Sandra cantarolou, rindo.
— Dá pra vocês pararem com isso?! — Sira já não sabia se estava mais irritada com as amigas ou com a própria reação.
— Vai lá falar com ele, ué — sugeriu Sandra, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
— Por que eu faria isso?! — Sira retrucou, indignada.
— Porque você tá curiosa — disse Mirel, piscando. — E porque ele parece interessante. Além disso, se você não for, quem sabe eu mesma não vou até lá?
Sira apertou os punhos, tentando não dar atenção ao tom provocador. — Vocês duas são impossíveis.
Mas antes que pudesse discutir mais, o sino indicando o fim do intervalo tocou. As três amigas se levantaram, recolhendo seus pertences. Quando Sira passou pela porta do refeitório, lançou um olhar rápido para o homem mascarado, mas desviou imediatamente ao perceber que ele estava olhando na sua direção.
Seu rosto ficou vermelho, e ela sacudiu a cabeça, tentando afastar os pensamentos. As risadas de Sandra e Mirel ainda ecoavam em sua mente, mas ela sabia que não ia dar o braço a torcer.
Ainda assim, enquanto voltava ao trabalho, não conseguia evitar se perguntar quem era aquele homem e por que ele parecia carregar tanto peso — não só nos livros, mas no próprio olhar.
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