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    Logo em seguida, Douglas avistou um grupo de mercenários da Avat correndo em completo desespero. Suas armas foram abandonadas no chão como se fossem peso morto, enquanto eles se lançavam em direção à floresta, passando pelos homens de Douglas que, paralisados, apenas observavam a horrenda criatura diante deles. 

    A visão daquele terror encarnado parecia ter drenado toda a coragem de seus soldados.

    Por entre a abertura na base da Avat, Bruce emergiu, com o corpo coberto de sangue e a expressão de puro terror estampada em seu rosto. Logo atrás, Berco, Tina e Shayax o seguiam. Todos eles estavam em péssimo estado, exaustos, com os semblantes abatidos e seus trajes encharcados de suor e sangue.

    — Bruce! Berco! — gritou Douglas, tossindo freneticamente ao tentar se levantar do chão. A força o abandonava mais rápido do que ele imaginava. — O que aconteceu lá embaixo?! O que essa criatura está fazendo aqui?!

    Douglas tentou organizar seus pensamentos, mas o cansaço e o medo eram como uma névoa densa em sua mente. 

    Um troll comum seria uma ameaça considerável, mas com um esforço conjunto, poderiam abatê-lo. Porém, a criatura diante deles não era um troll comum. Aquilo era um troll vermelho. Seu coração apertou. Ele sabia o que isso significava.

    — Não pode ser… — murmurou, enquanto olhava fixamente para a criatura.

    Esses monstros eram chamados de Temeros pelos aventureiros. Criaturas tão perigosas que tinham se tornado lendas nos círculos de combatentes. Anos atrás, um livro intitulado Temeros se tornou leitura obrigatória entre os aventureiros, escrito por um veterano idoso do reino das Quatro Torres. Ele detalhava bestas que nenhum grupo deveria enfrentar despreparado: dragões, hidras, e os raros trolls vermelhos.

    A lenda do troll vermelho era suficiente para gelar o sangue de qualquer um. Um monstro de força bruta insana, dominado por uma sede de sangue insaciável e uma fome interminável. 

    Era dito que, uma vez que seu olfato detectasse carne viva, ele não pararia até consumir tudo e todos. E agora, Douglas estava frente a frente com essa lenda viva.

    A criatura começou a atacar, um borrão de pura violência. O rugido bestial ressoou, reverberando pelo campo. 

    Os soldados próximos, apavorados, tentaram fugir, mas o troll era rápido demais para algo de seu tamanho. Com movimentos ferozes, arrancou membros e triturou corpos com suas mandíbulas tortas. Sangue e vísceras manchavam o chão, enquanto os gritos de agonia dos homens se misturavam ao som de ossos sendo esmagados.

    Douglas engoliu seco e se forçou a pegar sua espada do chão. Seus braços tremiam. Não era apenas o cansaço, mas o desespero que o dominava. 

    Ele se preparava para um fim inevitável, quando Bruce, Berco, Tina e Shayax correram em sua direção, formando uma linha defensiva ao redor dele.

    — Essa criatura estava presa em uma jaula no subsolo, em um dos armazéns da Avat — explicou Bruce, sua voz embargada e cheia de nervosismo.

    — O quê?! Por que diabos eles manteriam uma aberração dessas na base deles?! — gritou Douglas, incrédulo.

    — Não faço ideia! — respondeu Bruce, o tom carregado de raiva e frustração. — Mas um dos covardes da Avat abriu a jaula para tentar fugir enquanto a criatura nos massacrava! Perdi mais da metade dos meus homens restantes tentando escapar das garras dela.

    Shayax, ao lado de Bruce, colocou uma mão no ombro do amigo, tentando transmitir alguma empatia. Mas era inútil. A dor de perder tantos companheiros estava gravada no rosto de Bruce.

    — Não foi só isso… — murmurou Berco, apertando os punhos. — A criatura começou a caçar tudo que se movia. Encontrou minha equipe e nos atacou sem piedade. Foi um massacre. Tivemos sorte de sair vivos.

    — Subaru ficou para trás para me dar dar tempo de fugir… — disse Tina, a voz embargada. Seus olhos estavam marejados, mas não havia espaço para lágrimas naquele momento. — Ele foi… devorado.

    Berco deu um passo à frente, seu rosto tomado por uma expressão sombria. 

    — Durante o caminho, encontrei Igris e o vice-comandante dele. Toda a equipe estava morta. Eles foram destroçados. Essa coisa está nos caçando como animais.

    Douglas e seus companheiros olharam em direção ao troll. A criatura grotesca continuava sua carnificina, destroçando os mercenários da Avat que haviam tentado escapar. Cada movimento era uma explosão de brutalidade, e o chão agora era um tapete de sangue e restos humanos.

    — Merda…! — Douglas apertou a empunhadura de sua espada, sentindo o peso da realidade esmagando suas esperanças.

    ⧫⧫⧫

    No topo de uma colina pedregosa, distante o suficiente para os gritos ecoarem como sussurros macabros, um homem permanecia imóvel, observando o caos absoluto. Um sorriso torto iluminava seu rosto enquanto a carnificina se desenrolava diante de seus olhos. 

    Ele apreciava cada momento, os gritos desesperados dos mercenários e o som grotesco do troll vermelho dilacerando carne e ossos.

    Era assim que ele sobrevivia. Sempre à espreita, sempre traindo, sempre apunhalando antes que fosse apunhalado. Agora, cercado pela devastação que ele mesmo instigara, sentia uma satisfação sombria. 

    Ele sabia que, em algum lugar, alguém o havia traído primeiro. Para a localização da base da Avat ser exposta, era óbvio que alguém tinha falado. E, por isso, ele se sentia justificado.

    Reiz suspirou profundamente, levantando-se. O vento frio da montanha batia em seu rosto, trazendo consigo o cheiro de sangue e morte que impregnava o ar. Ele lançou um último olhar à base destruída abaixo, como um rei se despedindo de um reino em ruínas.

    — Adeus, e muito obrigado — murmurou, juntando as mãos num gesto irônico de oração.

    De repente, um riso abafado ecoou atrás dele.

    — Você é bem filha da puta, não é? — A voz era rouca, grave, mas tinha um tom zombeteiro que fez o coração de Reiz disparar.

    Num movimento instintivo, ele girou, sacando sua espada em um arco fluido. Contudo, não havia ninguém. Apenas o vazio e o silêncio da montanha.

    — Quem está aí?! — rugiu ele, os olhos arregalados, varrendo o ambiente.

    — Fique calmo, amigo. Não sou seu inimigo… ainda. — A voz voltou a soar, mas desta vez vinha de trás dele, mais próxima, quase sussurrando em seu pescoço.

    Reiz congelou. A respiração quente do intruso tocava sua pele, cada palavra carregada de uma ameaça velada.

    — Mostre-se! Quem diabos é você?! — gritou, virando-se mais uma vez, mas novamente encontrou apenas o vazio.

    — Eu? Sou apenas um mensageiro enviado dos céus. Está interessado em ouvir a palavra de Deus?

    O tom sarcástico na voz do homem fez Reiz soltar uma risada amarga.

    — Mensageiro dos céus? Ora, ora, mas que piada… — Ele tentou manter a compostura, mas o suor começava a escorrer de sua testa. — Sabe, eu nunca fui muito religioso. Essas coisas não me agradam.

    — Oh, entendi. Então você é um herege.

    — Pode me chamar assim, se quiser.

    — Um herege… um pecador. — A voz mudou, ficando mais grave, mais densa. O riso anterior desapareceu, substituído por algo frio e cortante.

    Antes que Reiz pudesse reagir, um vulto surgiu diante dele como um relâmpago. O homem estava agora à sua frente, tão próximo que Reiz podia ver o brilho insano em seus olhos. 

    Ele trajava um manto roxo com bordas desfiadas, um símbolo claro para aqueles que conheciam o mundo: o uniforme dos desajustados.

    Os Pecadores. Lunáticos, maníacos, assassinos que matavam por prazer.

    Reiz sentiu suas pernas tremerem enquanto a figura o fitava com um sorriso perturbador, como se estivesse analisando sua alma.

    — Então você é mesmo um pecador, de corpo e alma — declarou o homem, a voz carregada de ironia e algo mais… algo primal.

    Reiz tentou erguer a espada, mas sentiu um peso esmagador cair sobre ele. Era como se a presença daquele homem drenasse sua força, sua coragem, até mesmo sua vontade de lutar.

    — Quem… quem é você? — sussurrou ele, as palavras escapando como um gemido de desespero.

    O homem sorriu ainda mais, os dentes brancos contrastando com a escuridão ao redor.

    — Eu? Sou apenas um reflexo do que você é. Um pecador, como você. A gente achou bastante interessante a sua maneira de escapar, Reiz Beldaliar. — A voz ecoou com uma clareza sobrenatural. Um homem, envolto em um manto roxo esvoaçante. 

    Reiz recuou instintivamente, seus olhos se estreitando enquanto a mão deslizava para a empunhadura de sua espada.

    — O quê?! — exclamou, com uma raiva misturada ao espanto. — Como sabe meu sobrenome?!

    O homem sorriu. Seu sorriso era fino, quase desumano, e seus olhos brilhavam com uma intensidade perturbadora. Cada palavra que saía de sua boca parecia carregar um peso que se infiltrava em Reiz como farpas invisíveis.

    — Vamos dizer que tentar esconder seus pecados de um pecador proeminente é falha na certa, sabia? Nunca pensei que um dos príncipes do sétimo rei de Camelot fosse se rebaixar a um simples mercenário, mas faz sentido… faz muito sentido. — Ele riu, mas seu riso era vazio de alegria. — Depois daquela tentativa ridícula de usurpar o trono do seu irmão mais novo, foi obrigado a viver na miséria, não é mesmo? Tinha quantos anos na época? Dez?

    Reiz sentiu a tensão crescer em seu peito. Cada palavra do estranho o feria mais profundamente do que qualquer espada poderia. Ele deu um passo para trás, o olhar contorcido pela fúria e pela vergonha.

    — Agora quem está no trono é o seu amado irmão do meio… porque você matou o caçula, não foi? Aquele garotinho brilhante, de apenas sete anos. Você o odiava porque ele era mais talentoso do que você jamais poderia sonhar ser.

    O sorriso do homem parecia crescer, como se alimentado pela dor visível de Reiz. Ele continuou, ignorando o silêncio gélido entre eles.

    — O sistema de sucessão de Camelot é interessante, não acha? Em vez de simplesmente coroar o primogênito, todos os filhos devem provar seu valor. Feitos, inteligência, moral… e o amor do povo. Ah, como você se esforçou para parecer digno! Mas o pequeno… ele não precisava se esforçar. Ele brilhava naturalmente, não é mesmo? Inteligente, perspicaz, carismático… o favorito. E isso te consumiu, não foi?

    — Chega! — rosnou Reiz, 

    — Ora, não se apresse, meu amigo. Ainda nem cheguei ao melhor da história. — O homem não recuou nem um centímetro. Ao contrário, ele inclinou levemente a cabeça, os olhos fixos em Reiz. — Você matou seu irmãozinho, foi descoberto e fugiu como um rato. E agora, aqui está você, tentando juntar os cacos da sua ambição quebrada.

    Reiz abaixou a espada lentamente, o peso das palavras do homem o esmagando mais do que qualquer batalha jamais poderia.

    — Você sabe muito sobre mim… — murmurou ele, tentando recuperar a compostura.

    — Como não saber? Você é fascinante, Reiz. Tão promissor, tão cheio de potencial. Seria um desperdício deixar você apodrecer junto com aqueles miseráveis da Avat.

    Reiz estreitou os olhos, sua voz carregada de raiva contida.

    — Então foram vocês que entregaram nossa localização. Pecadores…

    — Bingo! — O homem riu, batendo palmas lentamente. — Mas vamos com calma. Antes de tudo, prazer, me chamo Kurin.

    — Não dá pra se importar menos com o seu nome. Vocês destruíram tudo pelo qual eu lutei!

    — E se oferecermos algo ainda melhor? — Kurin inclinou a cabeça, o sorriso agora mais largo, mais ameaçador.

    — Melhor? Vocês só podem estar brincando.

    — E se te entregássemos Camelot? De bandeja.

    Reiz congelou. Ele abriu a boca para zombar, mas algo no tom de Kurin o fez hesitar.

    — Vocês realmente têm poder para prometer isso?

    — Poder não nos falta. Os conselheiros da nossa ordem estão ansiosos para te conhecer. Que tal? Apenas uma reunião. Se não gostar do que ouvir, deixamos você seguir seu caminho.

    Reiz queria recusar. Ele sabia que não podia confiar em Kurin ou em qualquer um da organização Pecadores. Mas a ideia de recuperar Camelot… algo que ele passou toda a vida desejando… era irresistível.

    — Certo. Eu vou com você. — Sua voz era firme, mas seus olhos estavam cheios de desconfiança.

    Kurin sorriu, genuinamente satisfeito.

    — Ótimo! — Ele deu um passo para trás, estendendo a mão como um anfitrião prestes a guiar seu convidado ao salão principal.

    Mas antes que pudessem seguir adiante, um som distante cortou o silêncio da floresta. Era um ruído profundo, como o estalo de gelo quebrando sob pressão. Ambos viraram-se para a origem do som e, ao longe, viram um pilar de gelo gigantesco se erguer contra o horizonte, refletindo a luz do sol em um brilho fantasmagórico.

    — O que é aquilo? — murmurou Reiz, os olhos fixos no espetáculo surreal.

    Kurin riu baixinho, mas havia um traço de reverência em seu tom.

    — Parece que a lunática decidiu caçar hoje também…

    Reiz olhou para ele, mas Kurin apenas sorriu, os olhos brilhando como os de um homem que sabia muito mais do que estava disposto a revelar.

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