Capítulo 88 - Ponto Escuro Vs Troll Vermelho
Douglas, Bruce, Berco, Shayax e Tina se reuniram em um círculo apertado, seus corpos tensos e cobertos de suor. O rugido do troll vermelho ainda ecoava nas árvores, um som que parecia zombar deles, relembrando-os de que a morte estava próxima.
Bruce apertou o punho de sua espada, seus olhos queimando com uma fúria quase palpável. Ele não precisava de planos — queria vingança.
Seus companheiros caídos ainda estavam ali, mutilados e ensanguentados no chão. No entanto, era Douglas quem detinha a autoridade ali, e sua voz firme não deixou espaço para objeções.
— Não temos escolha, Bruce. — Douglas começou, sua expressão endurecida pela necessidade de liderar. — A prioridade é salvar o maior número possível. Isso significa fugir, não lutar.
— Fugir? — Bruce cuspiu as palavras como veneno, seu rosto uma máscara de desgosto. — Deixar essa coisa viver depois do que ela fez? Ela precisa pagar por isso!
— E quem vai pagar se falharmos? — rebateu Tina, olhando para Bruce como se ele fosse um tolo. — Nós, Bruce. E não só nós, mas qualquer um que cruzar o caminho dessa aberração depois.
Douglas ignorou a troca, olhando para Shayax, que até então havia ficado em silêncio.
— Precisamos ganhar tempo. Cortar uma das pernas do troll pode retardar a perseguição. — sugeriu Shayax, sua voz tranquila como sempre, apesar da gravidade da situação. — Se nos dispersarmos pela floresta, ele terá dificuldades para nos seguir.
Todos concordaram com a cabeça, mas foi Berco quem quebrou o silêncio com uma revelação que fez o coração de todos congelar.
— Esperem… não tem um vilarejo a alguns metros daqui?
A tensão se tornou palpável. Tina ficou boquiaberta, enquanto os outros se entreolharam, incapazes de processar o que acabavam de ouvir.
— Se deixarmos esse monstro vivo… ele pode ir atrás do vilarejo. — Berco sussurrou, sua voz frágil, quase como se não quisesse ouvir a si mesmo.
Douglas franziu o cenho, ponderando rapidamente. Tina foi a primeira a explodir.
— Não temos tempo pra discutir isso! Ou vocês esqueceram que estamos tentando sobreviver?!
Berco abaixou a cabeça, incapaz de argumentar contra a lógica de Tina, mas sua consciência pesava sobre ele. O rosto pálido e assustado de cada aldeão devorado e massacrado parecia se formar em sua mente.
Foi Bruce quem interrompeu a indecisão, sua voz grave como um trovão.
— Vamos matar ele.
Todos viraram-se para ele, incrédulos.
— Você enlouqueceu?! — Tina exclamou, a voz cheia de frustração.
— Vocês ouviram o que ele disse! — Bruce retrucou, apontando para Berco. — Um vilarejo inteiro pode ser destruído por causa desse monstro! E vocês querem apenas fugir? Se fossem da minha raça, eu não hesitaria. Não importa o custo, eu protegeria os meus.
Aquelas palavras atingiram Tina como uma flecha certeira. Seu rosto se contorceu em culpa, sua boca abrindo e fechando sem produzir som.
— Você é só mais um suicida… — resmungou ela, desviando os olhos.
Douglas levantou uma mão, pedindo silêncio. Seus olhos fixaram-se em Bruce, avaliando-o com um misto de respeito e preocupação.
— Bruce, entendo o que está dizendo. — disse ele calmamente. — Mas a realidade é que as nossas chances de vitória são mínimas. A criatura é mais forte, mais resistente, e tem regeneração. Não será uma luta, será um massacre.
— Isso não importa! — Bruce gritou, seu tom fervendo de paixão. — Se não tentarmos, quem tentará?
Shayax desviou o olhar para Bruce, cuja expressão indecifrável refletia o peso da decisão que Douglas colocara em suas mãos. Por um momento, o silêncio tomou conta do grupo, exceto pelo som dos passos brutais da criatura que continuava a ceifar vidas ao longe.
Shayax, porém, não suportava aquela hesitação. Imagens de seu passado, do momento em que abandonara seu instrutor ao Grigaktakos em sua terra natal, afloravam em sua mente.
Ele havia fugido uma vez, mas desta vez, fugiria novamente? Não. Aqueles dias de covardia ficaram para trás. Erguendo a voz, sua determinação foi clara como o som de uma lâmina sendo desembainhada.
— Eu concordo com Bruce! Devemos acabar com essa criatura hoje! — bradou Shayax, os olhos faiscando com a mesma intensidade de sua convicção.
Os outros viraram para ele, incrédulos. Bruce o encarou com surpresa, uma mistura de alívio e gratidão mal disfarçados. Ele não esperava que Shayax, tão pragmático e contido, fosse o primeiro a se alinhar à sua causa.
— Berco, Tina, escolham logo! Não temos tempo! — exclamou Douglas, o tom carregado de autoridade, mas também de urgência.
Berco foi o primeiro a responder, a voz grave e firme:
— Quero matá-lo. Não posso simplesmente deixar isso passar.
Tina resmungou, esfregando o rosto como se pudesse dissipar a tensão.
— Que merda… Certo, se todos estão nisso, eu vou junto. Não me deixem morrer por causa de decisões idiotas!
Douglas assentiu, tomando a liderança. Ele olhou para o campo de batalha onde a carnificina continuava. Dos mercenários da Avat, poucos ainda respiravam.
Os da Ponto Escuro mantinham alguma organização, mas a presença do troll vermelho rasgava qualquer senso de estratégia. A união era a única opção.
— Berco, traga os mercenários restantes da Avat para o nosso lado. Não somos inimigos agora. Nosso inimigo é ele.
Berco correu para convencer os sobreviventes, enquanto Douglas articulava o plano:
— Vamos privar a criatura de seus sentidos. Primeiro, cegá-la. Depois, tiraremos seu olfato e audição. Precisamos miná-la aos poucos antes de finalizar.
O som de arcos sendo tensionados ecoou pela floresta. Uma saraivada de flechas cortou o ar, direcionadas aos olhos da criatura. Mas a monstruosidade, instintiva como um animal acuado, protegeu o rosto com suas mãos massivas, frustrando o ataque.
— Não conseguimos acertar os olhos! — gritou um dos arqueiros.
Douglas não hesitou.
— Bruce! Linha de frente, agora!
Bruce rugiu em resposta, seu grito ecoando como o de um animal selvagem prestes a atacar.
— Comigo! Vamos fazê-lo expor as defesas!
Os passos pesados da linha de frente estremeceram o solo enquanto Bruce liderava o ataque. O plano era simples, mas arriscado: forçar a criatura a usar os braços para atacar, abrindo espaço para que os arqueiros pudessem alvejar seus olhos novamente.
O embate foi caótico. Bruce e os soldados cortaram as pernas do troll, lançando jatos de sangue viscoso e escuro que respingaram como chuva sobre a vegetação. A criatura rugiu de dor, um som gutural que reverberou no peito de todos. Suas mãos, antes protegendo o rosto, desceram para atacar os humanos que o desafiavam.
Os braços colossais balançaram desordenadamente. O primeiro golpe acertou dois soldados, arremessando-os como bonecos de pano contra as árvores. Os troncos estalaram com o impacto, e os corpos destroçados jazeram imóveis.
— Continuem atacando! Não recuem! — berrou Bruce, desviando por pouco de outro golpe devastador. Ele girou a lâmina, cortando profundamente a lateral da criatura. — Douglas! — o grito de Bruce ecoou por entre os sons do campo de batalha, misturando-se com os grunhidos furiosos da criatura.
— Agora! — respondeu Douglas, sua voz carregada de determinação. Um novo ataque de flechas rasgou o ar, atingindo o rosto monstruoso. O troll recuou, balançando a cabeça como um animal ferido. O grito que soltou foi um misto de dor e ira, mas sua visão já estava comprometida.
— Cega, finalmente. — murmurou Berco, limpando o suor da testa. — Temos poucos minutos! A regeneração desses monstros é rápida demais. Precisamos agir antes que ele recupere os olhos!
Os arqueiros, seguindo o plano, haviam mergulhado suas flechas em veneno ácido. O líquido viscoso corroía a carne e retardava a regeneração natural da criatura. Era uma vantagem temporária, mas Berco sabia que, no ritmo em que lutavam, a batalha seria decidida na próxima ofensiva.
Shayax, ao lado de Bruce, se movia como uma sombra. Sua lâmina brilhava à luz do entardecer enquanto cortava as grossas camadas de carne do troll. Cada ataque era meticulosamente calculado, cada esquiva parecia mais um reflexo instintivo do que uma ação consciente.
— Bruce, vamos tentar cortar a perna! — gritou Shayax. Sua voz era urgente, mas firme.
Bruce respondeu com um aceno. Seus olhos brilhavam com a mesma intensidade de sua determinação. Ambos sabiam que, para vencer, precisavam privar o troll de sua mobilidade. E para isso, a perna dele deveria ser cortada.
Com um grito uníssono, ativaram seus fluxos. A aura de energia que emanava de ambos os corpos era quase palpável, uma manifestação da força que estavam investindo no ataque.
Em sincronia perfeita, eles avançaram, mirando cortes profundos em lados opostos da perna da criatura. Suas lâminas rasgavam músculos e tendões como se estivessem talhando madeira dura.
O troll, sentindo o perigo, rugiu de dor. Com um movimento desesperado, ergueu a perna livre e desferiu um chute brutal. O impacto foi tão rápido e violento que Shayax mal teve tempo de reagir. Seu corpo foi lançado pelo ar como uma boneca de trapo, chocando-se contra o chão com força suficiente para levantar poeira e pedaços de pedra.
— Shayax! — o grito de Bruce cortou o caos. Por um momento, ele ficou imóvel, dividido entre avançar ou verificar o estado do amigo.
O punho gigantesco desceu sobre Bruce com toda a força, como um martelo tentando esmagar uma folha.
Um borrão passou pelo canto de sua visão. Antes que pudesse compreender o que estava acontecendo, Bruce foi empurrado para o lado. O impacto do soco ecoou pelo campo, e, ao olhar, Bruce viu o corpo de Afrem.
Ou melhor, o que restava dele.
O amigo agora jazia em pedaços. Parte de seu corpo estava diante de Bruce, enquanto o restante havia sido arremessado a metros de distância.
— Ah… — Bruce murmurou, atônito. Seus olhos se fixaram na poça de sangue que começava a se formar. Sua mente se recusava a aceitar o que via, mas o cheiro metálico do sangue e a visão dos restos de Afrem tornavam impossível a negação.
— Afrem… — a voz de Ibri soou fraca.
Ela estava sentada um pouco atrás de Bruce, o corpo curvado pelo esgotamento. O uso contínuo do fluxo cobrara seu preço, e agora ela mal conseguia levantar a cabeça. Seus olhos se encheram de lágrimas enquanto encarava a cena diante dela.
Shayax… Afrem… O nome de seus companheiros se repetia em sua mente, mas as imagens de seus corpos caídos eram um tormento que não cessava. O que eu fiz? Ele gritava para si mesmo, mas o som de sua voz parecia desaparecer na imensidão da tragédia.
O barulho de algo se movendo fez seu coração disparar. Não pode ser… E então, aos olhos atônitos de Bruce, o corpo de Shayax, ainda imóvel, se mexeu.
Uma esperança, quase irreal, se acendeu em seu peito. Mas logo ele soube que era tarde demais. O plano que haviam traçado falhara de maneira catastrófica.
A regeneração da criatura, uma força que eles jamais poderiam compreender, havia feito os olhos dela se curarem.
Douglas, ao seu lado, tremia. A exaustão de seu corpo era visível. Cada movimento era uma luta contra o inevitável colapso. Não dá mais para fazer nada, murmurou em pensamento. Usar fluxo agora, naquela situação, significaria a exaustão total de suas forças. Ele sabia disso. A esperança havia se dissipado.
Bruce olhou para o corpo de Shayax, caído e estendido no chão, ainda com a dor de um golpe imenso que o tinha deixado em um estado de insana agonia.
Ele estava ajoelhado, mas de alguma forma, ainda resistia. O troll que se aproximava, imenso e monstruoso, era uma ameaça imbatível. A criatura avançou, pronto para despedaçar qualquer coisa que cruzasse seu caminho.
Shayax estava ali, no chão, vomitando sangue e vísceras, como se a própria vida tivesse sido arrancada de seu corpo. Não… Bruce queria acreditar que seu amigo ainda respirava, mas a realidade de sua situação era cruel demais para que isso fosse verdade.
A mente de Bruce recusava-se a aceitar o destino de Shayax. Mas não havia mais tempo para dúvidas. Ele viu a criatura se aproximando de seu amigo. A mão gigantesca da criatura se estendeu, e o ar gelado da morte se espalhou.
Bruce tentou levantar-se, mas seu corpo, fraco e consumido pela exaustão, cedeu. As articulações de seus membros rangiam, e ele mal conseguia manter-se ereto.
Eu não posso… Ele não podia mais usar fluxo. Seu limite já havia sido ultrapassado. Cada respiração que ele tomava parecia um suspiro final, e mesmo assim, ele correu.
Desesperado. A dor em seu corpo não importava. Shayax precisava de ajuda. Eu… preciso chegar até ele.
Seus pés batiam no solo como se a terra estivesse querendo segurá-lo, e as adagas que caíam de sua mão eram apenas mais um lembrete de que ele estava indo para a morte.
Mas sua visão estava nublada pela dor, e a distância parecia interminável.
Quando ele finalmente levantou os olhos, a cena era clara. Shayax, seu corpo frágil ajoelhado, já não tinha forças para resistir. A criatura se preparava para o pegalo em suas mãos. Bruce sentiu o vazio se aproximando, a pressão da morte esmagando-lhe o peito.
Eu… não posso mais… tinha que ser eu! Mas mesmo assim, ele estendeu a mão, como se ainda houvesse uma chance, como se sua vida ainda tivesse algum valor.
A linha de visão de Bruce mudou abruptamente, e então ele percebeu que estava diante da mão gigantesca da criatura, que se erguia como um juízo final.
O peso da inevitabilidade se abateu sobre ele. Tudo parecia em câmera lenta. Será que trocamos de lugar? A pergunta se formou na mente de Bruce, mas não havia tempo para respostas. A mão monstruosa se aproximava, e ele sabia que, quando a tocasse, sua vida chegaria ao fim.
O tempo parecia se arrastar, e em um último suspiro, Bruce viu o olhar de Douglas, gritando em desespero, mas a distância entre eles era grande demais. Ele viu Berco, ajudando um soldado com a perna quebrada, mas estava longe demais para salvar qualquer um. Ele viu Ibri, o encarando, caída no chão, com os olhos vazios, como se a esperança já tivesse partido.
Shayax… me desculpa… Virmirka… eu… vou morrer…
Bruce caiu, de costas, no chão com um impacto surdo. O cenário ao seu redor parecia irreconhecível, a batalha que antes parecia iminente decepação e dor agora era substituída por uma calmaria absurda.
Ele olhou para o local onde sua morte deveria ter se consumado, mas o que encontrou não fazia sentido. A mão da criatura que momentos antes ameaçava esmagar sua cabeça estava caída no chão, cortada com tal precisão que parecia impossível.
O corte era tão limpo que até sua mente atordoada não podia acreditar naquilo.
A cena era como um pesadelo onde os limites entre o real e o impossível se esfacelavam.
Cabelos longos, brancos como a neve, dançavam ao vento. A luz do campo de batalha refletia na armadura prata da mulher que estava à sua frente, de um brilho intenso, quase sobrenatural.
O contraste entre a pureza de sua presença e a brutalidade do ambiente ao redor era profundo. Seus olhos eram azuis como o céu mais gelado, e seu rosto — ao mesmo tempo delicado e imensamente sereno — parecia transmitir uma calma mortal, como se o caos não tivesse poder sobre ela.
O que… o que é isso? Bruce pensou, um arrepio percorrendo sua espinha. Aquela figura, aquela mulher, de algum modo, emanava algo que ele só poderia entender como… beleza. Mas não uma beleza comum, mais como algo divino.
Algo que transcendia os limites da compreensão. Será… isso é o que os humanos chamam de Deus? O pensamento foi rápido, mas intenso, enquanto seus olhos não conseguiam desviar da mulher que, impassível, observava a cena com um desinteresse quase palpável.
O ar ao redor de Bruce começou a se tornar pesado e gélido, uma sensação que o fazia sentir como se a própria alma fosse congelada. O frio não era apenas físico, mas algo que penetrava suas entranhas, erguendo-se como uma muralha de gelo ao seu redor.
Com um movimento quase imperceptível, a mulher virou-se para o troll, que ainda se contorcia em agonia, com seu braço decepado e as pernas congeladas, agora impossíveis de mover. Ela murmurou, com uma voz clara e fria, sem o menor vestígio de emoção.
— Trolls vermelhos não deveriam ser mais fortes? — disse ela, com uma indiferença que parecia tão distante quanto o próprio inverno.
Em seguida, com um único movimento de sua espada, a rapiera fina, uma lâmina que brilhava com a luz da morte, fez o corte final.
A criatura parou de gritar. Seu corpo, cortado ao meio, caiu pesadamente no chão, enquanto a parte inferior, ainda congelada, ficou ereta e imóvel, como se fosse apenas uma estátua cruelmente preservada.
A mulher caminhou em direção a Bruce, seu andar calmo e sem pressa, como se tivesse todo o tempo do mundo. Cada passo parecia uma eternidade, e a tensão no ar era palpável.
Bruce, sem palavras, ainda não conseguia compreender o que havia acontecido. Ele observava a mulher que agora estava diante dele, seu olhar vazio de qualquer tipo de emoção, mas profundo o suficiente para fazer com que Bruce sentisse um peso esmagador em seu peito.
Ela parou à sua frente, pisando na carne da criatura caída com desdém. Seus olhos, azuis como o céu congelado, se fixaram nele. O silêncio entre eles era ensurdecedor. Bruce tentou falar, mas as palavras falhavam em sua garganta.
Sem um único gesto de compaixão, a mulher olhou-o de cima, seu queixo levemente erguido, com um olhar distante, como se tudo o que acontecera não passasse de um espetáculo tedioso para ela.
— Me chamo Axis. — disse ela, a voz suave, mas cortante. — Que coincidência os encontrar aqui.
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