Capítulo 99 - Palavras Ousadas
A viagem prosseguiu sem pressa, e o silêncio reinou entre os ocupantes da carruagem. Apenas o ranger ocasional das rodas contra o solo e o trotar ritmado dos cavalos rompiam a quietude. O tempo escoava lento, até que, incapaz de suportar a monotonia, Maria finalmente quebrou o silêncio.
— Soube que a incorporação dos homens-lagartos aos soldados da Ponto Escuro foi um sucesso! — Sua voz vibrava com entusiasmo genuíno, iluminando o ambiente com sua energia juvenil. — Gostaria de saber… Bruce, não é? Me desculpe por perguntar de novo.
O homem-lagarto piscou, como se precisasse de um instante para assimilar a pergunta, então assentiu levemente.
— Ah… er… sim, sou eu. — Sua voz era grave, mas não rude. — O que deseja saber, Alteza?
Maria inclinou-se ligeiramente para frente, os olhos brilhando de curiosidade.
— Como é viver na Floresta dos Homens-Lagartos?
O olhar de todos se voltou para Bruce, que engoliu em seco. Não era acostumado a ser o centro das atenções, e muito menos a falar sobre sua terra natal com estranhos. Ainda assim, depois de um instante de hesitação, respondeu:
— Bem… é normal, eu diria. Meu dia a dia consistia em treinar com minha irmã e caçar antes de voltar para casa e descansar. Desde que me juntei à Ponto Escuro, a única mudança real foi a natureza das missões que recebo.
Sua voz carregava um leve desconforto, como se ainda buscasse a melhor maneira de se expressar. Maria, no entanto, parecia fascinada.
— Caramba… Eu nunca fiz uma viagem assim antes. Para outro reino, para um lugar tão distante. — Ela suspirou, apoiando as mãos sobre o colo. — Essa é minha primeira vez… Estou um pouco nervosa. Você se sentiu assim quando teve que deixar sua casa pela primeira vez?
Bruce desviou o olhar, encarando o chão da carruagem. Sua cauda, que até então estivera imóvel, moveu-se ligeiramente sobre o banco.
— Sim… um pouco. — Sua voz era pensativa. — O desconhecido sempre assusta. Não saber exatamente para onde se está indo, quando poderá voltar para casa… como as coisas serão dali em diante. Mas tive sorte. Douglas é um excelente comandante. Berco é um grande companheiro de equipe. Conheci pessoas interessantes… e venho me tornando mais forte a cada dia. Para mim, deixar minha terra foi a escolha certa.
A princesa ouvia atentamente, absorvendo cada palavra como se fossem fragmentos de uma história heroica. Até mesmo Sven, que geralmente mantinha um semblante impassível, demonstrou um leve incômodo ao perceber o brilho nos olhos da jovem.
— Você é incrível, Bruce! — exclamou Maria, com sincera admiração. — Tanta convicção… Queria ser como você. Mas sou tão fraca… e nem sou muito boa em nada…
Seu tom diminuiu no final, e um sorriso tímido surgiu em seus lábios. Sven não demorou a intervir, com um tom sério, mas gentil:
— Alteza, não diga isso. — Seus olhos fixaram-se nela com firmeza. — A senhorita se dedica ao que faz. Seu pai confiou a vossa alteza uma missão de grande importância. Isso por si só já prova o quanto és valiosa para o reino.
Maria ergueu o olhar e sorriu suavemente.
— Obrigada, Sven… Mas, sabe… — Ela se virou novamente para Bruce, o rosto ganhando um brilho animado. — Eu queria muito socar os bandidos e malfeitores como vocês fazem!
Levantou os punhos e desferiu um pequeno golpe no ar, como se já estivesse enfrentando um inimigo invisível. Sua expressão determinada contrastava com a elegância de sua postura nobre.
Bruce não pôde conter um sorriso discreto. Aquela princesa era, no mínimo, peculiar. Embora lhe faltasse a força de um guerreiro ou a experiência de um soldado, ela possuía algo que Bruce respeitava mais do que qualquer atributo físico: a vontade de se tornar melhor.
Era um tipo raro de convicção. E, para Bruce, isso tinha mais valor do que qualquer poder bruto.
— Se a princesa se dedicar ao treinamento, acredito que poderia surpreender muitos adversários.
Ela sorriu com entusiasmo, satisfeita com a resposta. Seus olhos então percorreram os rostos dos viajantes antes de comentar:
— Pensando bem… faz décadas, talvez séculos, desde a última vez que representantes de tantas raças diferentes dividiram um mesmo espaço de maneira pacífica. Humanos, um elfo, um homem-lagarto… Se houvesse um elfo negro entre nós, seria uma reunião completa das raças inteligentes deste continente.
Houve um momento de silêncio enquanto todos refletiam sobre aquela observação. Era uma verdade incontestável: as tensões entre as raças sempre foram um obstáculo difícil de transpor.
Maria inclinou a cabeça levemente e voltou sua atenção para Turk, o elfo de expressão austera que permanecera calado durante boa parte da viagem. Seu olhar afiado indicava que ele não era do tipo que gostava de conversa fiada, mas isso não a impediu de perguntar:
— Senhor Turk, posso perguntar… quantos anos o senhor tem?
Os olhos do elfo se estreitaram ligeiramente, avaliando a jovem por um instante. Havia algo nela que o intrigava, talvez sua audácia, talvez sua maneira de agir sem temor. Mas, por fim, respondeu:
— Cento e vinte e cinco anos.
— O quê?! — exclamou Maria, levando as mãos à boca, incrédula. — Mas o senhor parece ter pouco mais de vinte!
Douglas sorriu, cruzando os braços.
— Elfos realmente são notáveis. Uma longevidade invejável e ainda conseguem manter a aparência jovem por tanto tempo…
Bruce, que até então apenas ouvia, também ficou surpreso. Em sua tribo, os homens-lagartos raramente ultrapassavam os setenta anos. A ideia de um ser vivendo tanto tempo e ainda aparentando juventude era fascinante para ele.
Turk, no entanto, sorriu de maneira quase irônica.
— Eu trocaria essa longevidade pela regeneração dos homens-lagartos — disse, olhando diretamente para Bruce. — Poder recuperar um membro perdido… Isso sim é algo que eu invejo.
Todos já haviam notado que Turk não possuía um dos braços. Um detalhe que, até aquele momento, ninguém havia se atrevido a mencionar.
Bruce inclinou a cabeça, curioso.
— Como perdeu seu braço?
O elfo manteve a expressão inalterada, mas sua voz carregava um peso distinto quando respondeu:
— Durante um ataque a uma base de uma organização malfeitora que tentou se estabelecer dentro das fronteiras do Reino Élfico. Naquela época, eu ainda era um cavaleiro sagrado, mas depois de perder meu braço, fui forçado a deixar o campo de batalha. Desde então, passei a servir ao Conselheiro-Chefe Kiel, assumindo uma posição mais administrativa.
Houve um instante de respeito silencioso. Perder um membro no campo de batalha era um destino que qualquer guerreiro temia, e ainda assim, Turk parecia carregar esse fardo sem ressentimentos.
Ele então inclinou a cabeça levemente e, com um brilho astuto no olhar, disse:
— Já que me fez uma pergunta, posso fazer uma para você, Bruce?
O homem-lagarto assentiu, sem perceber a tensão crescente na conversa.
— Claro.
O tom de Turk permaneceu tranquilo, mas a pergunta que fez foi como uma lâmina afiada cortando o ar:
— Vocês, que concordaram em se submeter ao Reino Grão-Vermelho, trabalhando para humanos em troca de recompensas miseráveis… Não acham que esse tipo de serviço é desonroso?
O silêncio que se seguiu foi denso, quase palpável. Os olhares na carruagem tornaram-se severos. Douglas e Berco franziram a testa, os corpos enrijecendo levemente. Sven, sentado ao lado de Maria, levou a mão discretamente até a empunhadura de sua espada, como se estivesse pronto para responder a qualquer desrespeito à princesa.
Bruce, no entanto, não reagiu imediatamente. Seus olhos reptilianos analisaram Turk com cuidado, medindo o significado por trás de suas palavras. O homem-lagarto inspirou fundo antes de responder.
— Do que está falando? — perguntou Bruce, sua cauda se movendo ligeiramente, um sinal sutil de sua crescente inquietação.
Turk, o elfo de semblante severo, manteve os braços cruzados, sua postura rígida como uma lâmina bem afiada.
— Veja bem, não quero ofendê-lo — disse ele, sem se preocupar em suavizar o tom — mas é desconfortável ver uma raça outrora louvada como grandes guerreiros, conhecidos pela capacidade de regenerar seus ferimentos e continuar lutando, reduzida a servos de humanos. Quando eu era criança, os anciãos contavam histórias dos homens-lagartos como se fossem forças imparáveis do campo de batalha, mas hoje vejo apenas sombras do que um dia foram. Trabalhadores submissos, recebendo migalhas em troca de sua força. — Sua voz transbordava um misto de raiva e decepção.
O comentário atingiu o interior da carruagem como um golpe certeiro. Berco franziu o cenho, seu maxilar travado de indignação.
— Não acha que está indo longe demais? — retrucou, sua voz carregada de tensão.
Turk ergueu uma sobrancelha e abriu um sorriso seco, quase desdenhoso.
— Oh, perdoe-me. Eu não esperava que fosse tão incômodo discutir isso com uma de suas vítimas.
— Vítimas? Está ficando maluco?! — Berco quase se ergueu de seu assento, mas a mão firme de Douglas em seu ombro o conteve.
Turk continuou imperturbável, seus olhos estreitos como se analisassem cada um ali.
— Vocês arrancam os homens-lagartos de suas terras natais, os fazem servir como soldados ou trabalhadores sob contratos questionáveis, dando-lhes o mínimo possível, e ainda chamam isso de uma troca justa? Sequer percebem a arrogância desse pensamento? Os humanos sempre foram assim. E, pelo que vejo, nem mesmo um século foi suficiente para que mudassem. Mesquinhos e usurpadores, como sempre foram.
O silêncio que se seguiu era denso, carregado de emoções prestes a explodir. Berco cerrou os punhos, seus olhos queimando de fúria, mas foi Douglas quem quebrou o impasse.
— É melhor calar sua boca… — murmurou Berco, a raiva evidente em cada palavra.
— Berco, acalme-se. — Douglas interveio, sua voz baixa, mas firme. Então, voltou-se para Bruce. — Ele tem razão em alguns pontos. Não posso negar que, no final das contas, a troca nunca foi justa.
Os olhares voltaram-se para Douglas. Ele suspirou profundamente antes de continuar.
— Bruce, eu não sei se tenho o direito de pedir isso a você, mas quero me desculpar. A verdade é que, por mais que tenha havido uma troca, os benefícios nunca foram equivalentes. Os humanos deram pouco e tomaram muito. Nossa oferta foi injusta desde o início, e mesmo sabendo disso, continuamos a agir como se tudo estivesse equilibrado. — Seus olhos encontraram os de Bruce com uma sinceridade difícil de ignorar. — Por isso, peço perdão.
O homem-lagarto observou Douglas por um momento, então sorriu. Um sorriso que fez os outros na carruagem hesitarem, sem saber o que esperar dele. Com calma, Bruce voltou-se para Turk, seu olhar carregado de ironia.
— Não que isso seja da sua conta, elfo, mas nós não estamos aqui para lutar pelos humanos. — Sua voz soava segura, cada palavra carregada de convicção. — Estamos aqui para lutar por nós mesmos.
Turk estreitou os olhos, intrigado, mas não interrompeu.
— No começo, viemos por necessidade. Mas quando comecei a estudar, percebi o quão atrás estávamos. Os humanos e os elfos superam minha raça em poder, tecnologia, conhecimento. Se uma ameaça surgisse e nos atacasse, não teríamos nenhuma chance. Eu aceitei essa situação porque vi nela uma oportunidade. Uma chance de crescer, de fortalecer minha tribo e garantir que ela nunca mais estivesse em desvantagem. Eu e meus companheiros sempre soubemos da desigualdade da troca, mas nunca nos lamentamos. Em vez disso, aprendemos a usar isso ao nosso favor.
A carruagem permaneceu em silêncio. Até Douglas parecia surpreso.
— Desde que saí da minha terra, estive à beira da morte mais vezes do que consigo contar — continuou Bruce, seu olhar intenso — e tudo isso apenas reforçou minha certeza. Eu voltarei para minha tribo mais forte do que nunca. E farei dela algo que nunca foi antes. A partir desse dia, os homens-lagartos não serão mais a raça que aceita as condições impostas pelos outros.
Turk o encarou com um olhar analítico, como se tentasse pesar suas palavras e determinar se eram apenas bravatas ou se havia verdade em sua determinação. Após um instante, abaixou a cabeça levemente, em um gesto de respeito.
— Parece que o julguei errado, Bruce. Se o que diz for verdade, e você realmente conseguir esse futuro para sua raça, então retiro minhas palavras. Peço desculpas se fui rude.
Bruce apenas ergueu os ombros, relaxando contra o assento acolchoado da carruagem.
— Já estou acostumado. Essas coisas não me abalam.
Mas Turk então voltou-se para Douglas e Berco, sua expressão endurecendo mais uma vez.
— Contudo — disse ele, sua voz fria — ainda mantenho minha opinião sobre os humanos. Não quero parecer um tolo idealista que se prende ao passado, até porque meu próprio reino está longe de ser perfeito. E, no fim, viemos nessa viagem para lidar com um problema de nossa própria nação. Mas digo isso apenas para que não haja mal-entendidos. — Seu olhar percorreu ambos os cavaleiros. — Minha opinião pessoal permanece: vocês, humanos, são escória.
Douglas e Berco nada responderam, pois sabiam que qualquer argumento apenas prolongaria um embate que nunca teria um verdadeiro vencedor.
O silêncio reinou na carruagem enquanto a viagem prosseguia, cada um mergulhado em seus próprios pensamentos, pesando palavras, julgamentos e ambições para o futuro.
A tensão na carruagem era palpável, como uma lâmina recém-forjada prestes a cortar. Berco cerrava os punhos, o couro de suas luvas rangendo com a força aplicada. A audácia daquele elfo o fazia ferver por dentro. Quem ele pensava que era para cuspir tais palavras com tanta leviandade?
E, no entanto, conteve-se. Não porque quisesse, mas porque Douglas, sempre ponderado, já o impedira uma vez. Ele sabia que seu comandante tinha algo a dizer e, por mais que o orgulho o queimasse, manteve-se em silêncio.
Douglas, por sua vez, não demonstrava irritação nem ressentimento. Seu rosto, sempre firme, exibia apenas uma sombra de melancolia. Afinal, não poderia negar o peso da verdade nas palavras de Turk.
De fato, os homens-lagartos haviam sido atraídos para o Reino Grão-Vermelho sob promessas vazias, suas forças alistadas em um exército que os via mais como ferramentas do que como aliados.
A disparidade entre os reinos era imensa — a superioridade humana em conhecimento e tecnologia sempre fora uma arma silenciosa, uma que subjulgava sem necessidade de correntes.
Mas havia algo que Douglas não poderia permitir que fosse distorcido.
Ele ergueu os olhos, e neles havia um brilho cortante, um olhar que fez até mesmo Turk, acostumado com duelos políticos e palavras afiadas, sentir-se examinado.
— Você está certo sobre tudo isso, Turk. — Sua voz era firme, inabalável. — Mas há algo que não permitirei que qualquer um pense.
Turk arqueou uma sobrancelha, intrigado.
— Bruce e os outros homens-lagartos não são servos. Não são peças em um tabuleiro. — Ele fez uma pausa, seu olhar varrendo a carruagem, como se quisesse que cada um ali gravasse bem suas palavras. — Eles são nossos companheiros.
O vento uivava além das janelas, sacudindo levemente a estrutura da carruagem. Mas dentro dela, apenas o silêncio respondeu.
Douglas inclinou-se um pouco para frente, a intensidade em sua voz jamais vacilando.
— Se necessário fosse, daria minha vida por eles.
Turk o encarou por longos instantes, avaliando-o como um joalheiro inspeciona uma gema rara. Talvez esperasse hesitação, talvez esperasse uma bravata vazia. Mas tudo o que encontrou foi a mais pura convicção.
O elfo fechou os olhos por um breve momento e soltou um suspiro, cruzando os braços.
— Palavras ousadas. Espero que esteja preparado para sustentá-las quando chegar a hora.
Douglas não respondeu. Não precisava. Seu olhar já dizia tudo.
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