Capítulo 101 - Corpos Espalhados
Sira sentia o sangue gelar em suas veias enquanto corria pelas ruas em chamas do vilarejo de Icca. O cheiro acre de carne queimada se misturava ao ar frio da noite, e gritos de dor e desespero ecoavam ao seu redor como o uivo de feras selvagens. Ela tentava organizar os pensamentos, mas o caos ao seu redor tornava tudo um turbilhão de emoções desenfreadas.
Os Pecadores haviam atacado. Assim, sem aviso, sem razão aparente. A pergunta martelava sua mente: por quê? Qual o sentido desse massacre? Mas, enquanto corria, um pensamento ainda pior a atingiu como uma lâmina fria cravada em seu peito.
— E se for por minha causa…? — ela murmurou, a voz trêmula.
Afinal, passou anos caçando Pecadores ao lado de seu avô. E se isso fosse uma retaliação? Uma vingança em larga escala contra suas ações do passado? O peso dessa possibilidade a fez vacilar por um instante, mas então, ao virar uma esquina, viu algo que silenciou todas as dúvidas.
O corpo carbonizado de uma criança jazia no chão, pequeno e encolhido, como se tentasse se proteger de um inimigo implacável. O horror percorreu sua espinha, e em sua mente surgiu uma visão terrível: Ariane e Igor, os filhos de Ivoguin, caídos da mesma maneira. Mortos. Reduzidos a nada.
Ela sacudiu a cabeça e cerrou os dentes. Não podia se dar ao luxo de pensar nisso agora. Tinha que encontrar sua família. A única que lhe restava.
No início, não os via como família de verdade. Eram apenas pessoas que a acolheram quando não tinha mais ninguém. Mas com o tempo, percebeu que laços de sangue não eram tudo. Eles a aceitaram, abriram as portas para ela e sorriram como se ela sempre tivesse pertencido àquele lar.
Agora, não deixaria que morressem como seus pais. Não desta vez. Agora, ela tinha força para protegê-los.
Ela seguiu em frente, desviando dos corpos e da destruição, até que, ao dobrar uma rua, avistou um grupo de Cavaleiros Sagrados em combate. Espadas cintilavam no fogo da vila, refletindo o sangue dos Pecadores caídos. Assim que os últimos inimigos foram abatidos, os cavaleiros recuaram, respirando com dificuldade.
— Mas que diabos está acontecendo aqui?! — gritou um deles, um homem robusto com armadura pesada, o rosto coberto de suor.
— Silver, há mais Pecadores espalhados pelo vilarejo. O que devemos fazer? — perguntou outro cavaleiro, a voz carregada de urgência.
— O que acha?! Temos que massacrá-los antes que queimem tudo até o chão! — Silver cuspiu ao lado, segurando a espada com força. Mas então, seu olhar se voltou para Sira, que se aproximava com cautela. Num instante, ergueu sua lâmina na direção dela. — Quem diabos é você?! Identifique-se!
Sira ergueu as mãos, mantendo-se firme.
— Meu nome é Sira! Sou moradora do vilarejo, mas também sei lutar! Estou indo para minha casa buscar minha arma, mas preciso de algo para me defender até lá! Vocês têm uma espada sobrando?!
Ela odiava a ideia de lutar com uma espada. Não era sua especialidade. Mas entre estar desarmada e segurar uma lâmina, preferia a segunda opção.
Silver a encarou de cima a baixo, os olhos semicerrados. Por um instante, parecia pronto para mandá-la embora, mas então sua expressão suavizou.
— Droga… não se aproxime desse jeito no meio de um ataque. Se sabe lutar, ótimo! Precisamos de toda ajuda possível para expulsar esses malditos de roxo do vilarejo. — Ele apontou a lâmina ensanguentada para um dos corpos dos Pecadores. — Mas você quer fugir com sua família…?
— Exato! — Sira exclamou, sua voz carregada de determinação. — Mas preciso de uma arma para protegê-los! Minha arma de verdade está em casa, e o caminho até lá pode ser perigoso demais sem nada.
Silver ponderou por um momento, então virou-se para um dos cavaleiros mais jovens, um rapaz que não aparentava mais que dezoito anos.
— James! — chamou, e o jovem se sobressaltou. — Escolte essa garota até a casa dela. Certifique-se de que ela recupere sua arma e leve sua família para fora do vilarejo. Depois volte para o combate.
— S-sim, senhor! — respondeu James, visivelmente nervoso.
Sira não perdeu tempo. Partiu em disparada pelas ruas destruídas, o cavaleiro jovem logo atrás. O tempo corria contra ela. Com sorte, sua família ainda estaria em casa, como haviam dito que ficariam naquela noite.
Se estivesse certa, teria uma chance de salvá-los. Se estivesse errada… então chegaria tarde demais.
Quando Sira e James se aproximaram da casa, um frio cortante percorreu sua espinha. A porta estava escancarada, pendendo miseravelmente de suas dobradiças retorcidas. Marcas de combate estavam por toda parte—cortes fundos nas paredes de madeira, estilhaços de móveis espalhados pelo chão, e manchas escuras de sangue tingindo o solo.
— Maldição…! — Sira apertou os punhos e disparou para frente.
— E-espere! É perigoso entrar assim! — James tentou alcançá-la, mas sua armadura dificultava os movimentos.
Sira ignorou o aviso. A ansiedade queimava dentro dela, um medo sufocante de encontrar algo que não poderia suportar. Assim que cruzou a soleira, o cheiro metálico do sangue a atingiu como um soco no estômago. Seu olhar se expandiu pela sala, e o horror se concretizou diante dela.
Quatro corpos estavam espalhados pelo chão. Três eram pecadores—homens de vestes rasgadas e pele suja, as lâminas ainda presas aos dedos enrijecidos pela morte. O quarto corpo, no entanto, fez seu coração afundar no peito.
tana. A lâmina ainda pingava sangue fresco.
— Pegue… — a voz dele era pouco mais que um sussurro. — Proteja nossa família… por favor… Eles foram pelo norte, há uma passagem que leva para fora do vilarejo…
Sira abriu a boca para falar, mas Ivoguin a interrompeu, erguendo a camisa com um esforço trêmulo. Seu torso estava coberto de ferimentos profundos—marcas que um homem comum já não teria sobrevivido.
— Para mim… já acabou… — Ele riu, fraco, o som entrecortado por tosses. — Aguentei mais do que devia… Talvez Markus tivesse feito melhor…
A cor já começava a fugir de sua pele, suas olheiras se aprofundavam. Ele estava morrendo.
Sira sentiu as lágrimas queimarem seus olhos.
— Isso é culpa minha… — sua voz mal saiu.
— Não… — Ivoguin apertou seu ombro com força surpreendente. — Não é culpa sua. Eles que estão errados… Entendeu…?
Ela assentiu, sufocada pelo choro.
— Por favor… proteja-os…
— Senhor… por favor… não feche os olhos! — Sua voz subiu em desespero, mas o corpo de Ivoguin já se tornava inerte.
James deu um passo hesitante à frente. Ele queria dizer algo, mas as palavras se recusavam a sair.
Então, de repente, Sira se levantou.
— Hã?! Onde você vai?! — James se virou para ela, espantado.
Sira parou na entrada da casa. Seu olhar era afiado como uma lâmina, a fúria e a dor queimando como brasas.
— Vou salvar minha família.
E sem hesitar, partiu.
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