Capítulo 131 - A Diferença Entre os Reinos
Kevin coçou o queixo, pensativo. Não era só um aventureiro — entendia política melhor do que a maioria dos nobres que juravam governar com sabedoria.
— Não é surpresa — disse ele, finalmente. — Mesmo em reinos com mais de um Paladino, a morte de um sempre deixa marca. A criminalidade costuma subir, até que o sistema encontre um novo equilíbrio. Mas o Reino Élfico… bem, eles só tinham Richard Ravens. Só ele. E agora não têm mais ninguém.
Saito franziu o cenho.
— Isso pode respingar no nosso reino?
Kevin não respondeu de imediato. Parecia estar fazendo contas invisíveis no ar.
— Essa… é uma ótima pergunta — murmurou. E, pelo tom, não era uma boa notícia.
A carruagem sacudia suavemente, e o cheiro de couro velho misturado à madeira impregnava o ar. Lá fora, o sol derramava sombras preguiçosas pelas janelas. Saito, Kevin e Isilda continuavam a conversa, cada palavra pesando um pouco mais que a anterior.
Isilda, que até então ouvia em silêncio, cruzou os braços e se inclinou para frente.
— Talvez — disse. — Mas, no máximo, isso deve complicar as coisas em áreas próximas ao território élfico. Com a morte do único Paladino deles, aquilo virou um convite aberto pra todo tipo de bandido. Ter um Paladino é como colocar uma placa: “Aqui tem problema pra quem tentar.” Tiram o Paladino, tiram o medo.
Kevin franziu a testa.
— Está falando das organizações mercenárias?
— Exatamente. Elas não são novas. Só vão onde o lucro está. Contrabando, assassinato, proteção paga — o que render mais. E evitam reinos onde Paladinos ou cavaleiros sagrados são comuns. Ninguém quer virar carvão por cinco moedas.
Saito ouvia tudo sem interromper. Sabia que mercenários existiam, claro. Mas nunca tinha pensado neles como estrategistas — como investidores do caos. E, aparentemente, era isso que eram.
— Depois do que a Paladina do Grão-Vermelho fez, essas organizações aprenderam a temer de verdade — continuou Isilda. — Ela exterminou uma das maiores facções criminosas sozinha. Sozinha.
Saito se endireitou.
— Axis? A Rainha do Gelo?
Isilda sorriu, mas não era um sorriso caloroso. Era o tipo de sorriso que vinha acompanhado de lembranças que gelavam até os ossos.
— Ela mesma. Cabelos prateados, olhos que te congelam antes da espada acertar. Acabou com um exército inteiro. E em tempo recorde. Depois disso, até Camelot tentou comprar o passe dela.
Kevin assobiou.
— Claro que tentou. Camelot coleciona Paladinos como outros colecionam arte.
— E o Grão-Vermelho não achou graça nenhuma nessa tentativa — disse Isilda. — Desde então, os dois vivem trocando farpas diplomáticas.
Saito encarou o chão da carruagem, processando as informações. Já ouvira sobre Camelot. Todo mundo já tinha. Um lugar que praticamente fabricava Paladinos.
— Dizem que eles têm sete Paladinos agora — comentou Kevin. — Investem pesado pra atrair gente de fora. Treinamento, recursos, reconhecimento. É um sonho pra muita gente.
— Mas o Grão-Vermelho ainda é o mais poderoso — completou Isilda.
— Mesmo com a mesma quantidade de Paladinos? — perguntou Saito, confuso. — Isso não colocaria nosso reino no mesmo nível?
Kevin balançou a cabeça.
— Não se trata só de números. O Grão-Vermelho fez algo que ninguém mais teve coragem de fazer: absorveram a Guilda dos Aventureiros.
Saito piscou.
— Como assim?
— Lá, todo aventureiro registrado é automaticamente parte do exército. Se o reino for atacado, são convocados sem discussão.
Saito soltou um suspiro surpreso.
— Isso muda tudo.
— E muito. Aqui, a Guilda Avós de Prata é independente. Se quiser ajudar numa guerra, tudo bem. Se não quiser, também tudo bem. Mas lá… é exército. Ponto.
— E só isso já faz deles uma potência — disse Isilda. — Mas tem mais. Eles têm três forças militares distintas: os Cavaleiros Sagrados, que são a elite e protetores da fé; os Soldados Reais, o braço pesado do exército; e o Ponto Escuro, que era um grupo de mercenários e foi assimilado.
— Uma força secreta legalizada — disse Kevin. — Nada mal.
Saito sentia o mundo ficar maior à medida que a conversa avançava.
— Então não é só força. É organização, estratégia…
— E medo — completou Kevin. — Ninguém quer provocar um reino que transformou mercenários em soldados leais.
Saito olhou pela janela. Pastos, árvores, campos sem fim. Lá fora, o mundo parecia calmo. Mas por dentro, ele sentia como se tivesse acabado de descobrir que sempre viveu numa vila de pescadores enquanto o mundo real era feito de titãs se preparando para guerra.
— Meu pai era do Grão-Vermelho — disse ele. — Mas se mudou antes de eu nascer. E eu… sempre estudei só o nosso lado do continente.
O silêncio que se seguiu foi mais gentil.
— Você aprende no seu ritmo — disse Kevin. — Todo aventureiro começa ignorando metade do mundo. O truque é continuar curioso.
Saito sorriu, um pouco. Um daqueles sorrisos que vêm depois de um chute no orgulho.
A carruagem finalmente parou nos limites de um vilarejo escondido entre colinas. Simples, mas com um ar pacífico. Gente comum fazia coisas comuns — carregava lenha, tratava caça, lavava roupa. Crianças corriam e riam. E por um segundo, aquilo parecia um mundo sem política, sem Paladinos, sem ameaças invisíveis.
Desceram da carruagem. Isilda já era recebida por dois moradores com abraços e risos. Pareciam velhos amigos. Os outros descarregaram os caixotes, quase todos cheios de ervas. Muitos. Quase demais.
— Deixem aí mesmo — disse Isilda. — Depois eu organizo tudo.
Kevin arqueou uma sobrancelha.
— Pensei que morasse no reino.
— E moro. Mas é sempre bom ter uma casa fora. Nunca se sabe quando o lar precisa mudar de endereço.
Saito pegava os caixotes com facilidade. Tinha braços pra isso. Mas ao olhar pro lado, viu Little Girl tentando carregar uma caixa que parecia maior que ela. Literalmente.
— Precisa de ajuda? — perguntou, gentil, inocente.
O olhar que recebeu teria matado uma flor.
— Eu pedi sua ajuda?
— N-Não, só achei que…
— Hm.
Ela o analisou por um instante. Depois largou a caixa no chão com um baque seco.
— Já que tá tão interessado, leva essa pra mim.
Saito suspirou.
— Claro…
Enquanto pegava o caixote, fez um voto silencioso:
Nunca mais. Nunca mais ofereço ajuda pra essa pirralha.
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