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    Horas depois, o grupo se reunia ao redor de uma mesa rústica, saboreando um lanche farto oferecido pelo casal que havia recebido Isilda de braços abertos. Hans e Chanie eram pessoas simples, de aparência comum, mas a hospitalidade deles compensava qualquer falta de distinção.  

    Enquanto mastigava um pedaço de pão macio, Saito observava Isilda conversando animadamente com os amigos, relembrando velhas histórias. Pelo que entendeu, ela era uma comerciante ambulante. Comprava mercadorias no reino e vendia fora, a preços baixos. Algo sobre aquilo parecia estranho. Como poderia lucrar vendendo mais barato do que comprava? Não fazia sentido para alguém que dependia disso para viver.  

    Mas ele não perguntou. Talvez houvesse um truque que só os comerciantes conhecessem, ou talvez fosse algo que ela preferisse manter em segredo. Ele não queria ser o estranho que estragaria o clima nostálgico da reunião.  

    Então, Hans mencionou algo que fez as conversas cessarem.  

    — Ah! Até esqueci de comentar… Sabia que uma princesa visitou o vilarejo recentemente?  

    Isilda piscou, surpresa.  

    — Uma princesa? Do que você está falando?  

    — Bem lembrado, amor. — disse Chanie, assentindo. — Faz poucos dias. Apareceu uma carruagem lindíssima por aqui. Um verdadeiro espetáculo! Só que, em vez de ser uma simples visita, parecia uma comitiva real. Os moradores ficaram assustados no início. Pelo que ouvimos, estavam escoltando a princesa Maria, do reino Grão-Vermelho, até o reino dos elfos.  

    — Isso mesmo. — confirmou Hans. — E você não vai acreditar: no meio da comitiva, havia um elfo e um homem-lagarto.  

    A reação foi imediata. O silêncio que caiu sobre a mesa foi tão abrupto que até os sons do vilarejo ao redor pareceram se distanciar.  

    Todos os presentes se entreolharam, atônitos.  

    Ver um elfo já era raridade. As leis proibiam elfos de saírem de seus territórios, assim como proibiam humanos de entrarem no reino élfico. A maioria das pessoas passava a vida inteira sem sequer vislumbrar um.  

    Agora, um homem-lagarto?  

    Essa raça já era considerada quase extinta. Diziam que sobreviviam escondidos nas profundezas das florestas, longe dos olhos humanos. A ideia de um deles caminhando lado a lado com guardas reais, escoltando uma princesa humana até o reino dos elfos, era…  

    — Isso… isso é difícil de acreditar. — murmurou Isilda, ainda absorvendo a informação.  

    Mas, pelo olhar de seus amigos, ela sabia que não estavam mentindo.

    — Ninguém sabe ao certo o motivo, mas eles pararam no nosso vilarejo para descansar naquela noite. No dia seguinte, partiram apressados. — Chanie contou, cruzando os braços enquanto revirava as memórias. — Ninguém conseguiu falar diretamente com o homem-lagarto ou o elfo. Quem parecia falar pelo grupo era um homem de cabelos pretos, vestindo uma armadura incrivelmente ornamentada. Qual era o nome dele mesmo…?  

    Ela olhou para o marido com um dedo no queixo, franzindo a testa em concentração.  

    Hans, que escutava atentamente, estalou os dedos ao lembrar.  

    — Era Berco, querida. Pelo que o pessoal comentou, ele faz parte de uma organização do reino Grão-Vermelho chamada Ponto Escuro. Parecia ser o líder da comitiva. Também havia outro sujeito com uma armadura imponente. Estava sempre ao lado da princesa, provavelmente o guarda juramentado dela.  

    A menção desses nomes e figuras despertou um burburinho na mesa. Kevin ergueu uma sobrancelha, intrigado, mas não teve tempo de formular uma pergunta antes que Saito explodisse em uma reação inesperada. Com um movimento brusco, ele se levantou, batendo as mãos contra a mesa.  

    — Eles partiram há quanto tempo?!  

    O silêncio caiu como um trovão sobre o grupo. O som repentino do impacto ecoou pela sala, e todos os olhares se voltaram para ele, surpresos com o tom exaltado. Saito piscou, percebendo a gafe. Seu rosto ficou ruborizado de imediato.  

    — Ah… desculpem. Isso foi rude da minha parte… — Ele desviou o olhar, coçando a nuca, claramente embaraçado.  

    Hans foi o primeiro a quebrar o gelo, soltando uma risada amigável.  

    — Não tem problema, jovem. Entendemos sua animação. — Ele sorriu, os olhos carregando um brilho nostálgico. — Veja bem, eu tenho quarenta e sete anos de idade, e essa foi a primeira vez que vi um elfo e um homem-lagarto na vida. Tinha que ver como fiquei animado na hora…  

    Chanie sorriu de canto e cutucou o marido com o cotovelo.  

    — Animado? Parecia uma criança na época do festival de colheita.  

    Hans pigarreou, desviando o olhar enquanto coçava a barba, fingindo ignorar a provocação.  

    Kevin soltou uma risada baixa, balançando a cabeça.  

    — Queria ter tido a oportunidade de vê-los também. — comentou, cruzando os braços com um sorriso pensativo.  

    ⧫⧫⧫

    A viagem até o vilarejo demorou bem mais do que o esperado. Pra piorar, eles teriam que passar a noite ali antes de voltar ao reino. Isso deixou Saito de mau humor. Ele ainda tinha responsabilidades esperando por ele. Seu pai tinha confiado a ele a missão de cuidar da empresa durante o fim de semana, e cada hora de atraso só aumentava as chances de alguma treta surgir do nada.

    Depois do jantar, o grupo se dispersou. Cada um foi pra um canto do vilarejo, aproveitando o tempo livre do jeito que dava. Mas Kevin percebeu que Saito estava mais quieto do que o normal. Tinha algo incomodando o cara, e ele decidiu ir até lá pra trocar uma ideia.

    — Saito, tá tudo certo com você?

    O jovem levantou os olhos, piscando como se tivesse sido puxado de volta de um devaneio.

    — Ah… sim, tô bem, senhor herói.

    Na mesma hora, o rosto de Kevin ficou vermelho.

    — Q-quêêê? Nem vem me chamar disso, cara… — murmurou, coçando a cabeça, todo sem graça.

    Saito riu, claramente se divertindo com a reação do amigo.

    — Ué, por quê não? Você não disse que queria ser um herói? Não é um objetivo ruim, pô.

    Kevin desviou o olhar, meio desconfortável com o rumo da conversa.

    — É… eu sei. Mas a maioria das pessoas não leva isso a sério. Falam como se querer ser um herói fosse coisa de criança, um sonho bobo, tipo conto de fadas…

    Ele já tinha ouvido isso tantas vezes que quase acreditava. Desistir da fortuna do pai pra seguir uma vida cheia de perigos parecia uma insanidade pra muita gente. Mas, pra Kevin, aquilo nunca foi só uma ideia romântica. Ele sentia que era o caminho certo. Ele queria ser um herói de verdade, custasse o que custasse.

    Saito percebeu a hesitação na voz dele e logo se adiantou, tentando consertar.

    — Ei, eu não quis dizer que é uma besteira, tá? — disse ele, coçando a nuca, meio sem jeito. — É o seu sonho. Eu também tenho o meu… e jamais zoaria o sonho de outra pessoa.

    Kevin abriu um sorriso sincero. Apesar dos objetivos diferentes, os dois tinham algo em comum: a coragem de sonhar grande. A maioria das pessoas preferia uma vida estável, tranquila, sem riscos. Mas eles não. Eles queriam algo mais. Algo que realmente fizesse a vida valer a pena.

    — Então não desiste do seu também, Saito. — disse Kevin, agora com um brilho determinado nos olhos.

    — Pode deixar.

    — Aliás… ainda bem que você entrou pro grupo. Acho que seria meio estressante viajar só com mulheres… não que elas sejam difíceis de lidar, mas os olhares dos outros aventureiros… cara, parece que querem me matar só com os olhos…

    Saito arqueou uma sobrancelha, achando graça.

    — Um aventureiro bonitão, rodeado de garotas o tempo todo? É, dá pra entender a inveja da galera… — ele riu. — E, sinceramente, tirando a Little Girl, as outras duas são bem atraentes. Qualquer cara hétero olharia pra elas mais de uma vez por dia.

    — Não tenho nenhum lance com nenhuma delas, sério. — disse Kevin, balançando a cabeça. — A Leiana namora um cara, lembra? E a Tuare é só minha amiga de infância. Não tenho nenhum interesse amor…

    Ele foi interrompido por um leve cutucão no braço. Saito tinha empalidecido e olhava fixamente por cima do ombro de Kevin, com uma expressão tensa.

    — Ei…

    Kevin virou o rosto devagar, já sentindo o estômago revirar. E então viu.

    Tuare estava parada ali, bem atrás dele. Os olhos marejados, a boca entreaberta… como se tivesse acabado de levar uma facada no peito.

    — T-Tuare…? — balbuciou Kevin, a voz falhando como se tivesse engasgado com as próprias palavras.

    — Agora deu merda… — murmurou Saito, sentindo o ar ao redor ficar pesado como chumbo.

    Por dentro, Saito só conseguia pensar em como Kevin podia ser tão cego. Ele respeitava o amigo, achava ele um cara decente, confiável e até sábio em certos momentos. Mas, sério… como é que ele não percebia?

    Desde o primeiro dia, era claro o jeito que Tuare olhava pra ele. Sempre por perto, sempre atenta, sempre disposta a tudo. Ela largou a vida inteira pra seguir com ele nessa jornada de se tornar um herói.

    E, convenhamos… ninguém faz isso à toa. Só faz se estiver completamente apaixonada.

    Tuare se virou de repente e saiu correndo, disparando pra uma direção qualquer, sem nem pensar. Ela só queria sumir dali. Só queria parar de olhar pro rosto de Kevin — aquele rosto que, sem saber, tinha acabado de machucar ela mais do que qualquer lâmina conseguiria.

    Kevin ficou parado, encarando enquanto ela se afastava. Seus olhos a seguiram com um misto de confusão e arrependimento. Por um instante, ele esticou o braço, como se fosse chamar por ela… mas parou no meio do gesto. A mão ficou suspensa no ar por alguns segundos, depois caiu devagar, pesada como chumbo. Seu rosto se fechou numa expressão amarga, de puro desgosto. Mas não por ela. Por si mesmo.

    — Você não sente mesmo nada romântico por ela, né? — perguntou Saito, com a voz baixa, quase num suspiro, enquanto observava as costas do amigo, agora curvadas pelo peso da culpa.

    — Não… nada. — respondeu Kevin, devagar, como se cada palavra saísse arrastada da garganta. — Eu nunca pensei nela desse jeito… Na verdade, nunca pensei em ninguém dessa forma.

    Houve uma pausa. Kevin apertou os punhos, o olhar perdido no chão de terra batida do vilarejo.

    — Tudo pra mim sempre foi o meu sonho. Só ele. Eu nunca me imaginei namorando, casando, construindo uma vida com alguém… essas coisas nunca fizeram parte dos meus planos.

    Saito ouviu em silêncio, os olhos fixos no amigo. Havia algo triste ali. Não só na dor da rejeição que Tuare acabara de sofrer, mas no vazio que Kevin carregava dentro de si — um espaço onde sentimentos como amor eram apagados, deixados de lado como se fossem distrações perigosas.

    — Pelo bem do meu sonho… — murmurou Kevin, quase num sussurro.

    Saito respirou fundo e resolveu se abrir também.

    — Eu entendo. Eu também tô dando tudo de mim pelo meu. Toda minha vida gira em torno de virar um grande aventureiro, assim como foi meu avô antes de morrer. Ele era uma lenda pra mim.

    Ele fez uma breve pausa, olhando para o céu escuro pontilhado de estrelas.

    — Mas, sabe… eu ainda me pego pensando às vezes. Qual é o jeito certo de viver isso? Cortar tudo que não for essencial pro sonho, como se fosse bagagem extra? Ou tentar buscar o sonho, mas sem deixar de viver outras coisas também? Tipo… amar alguém, criar laços, se permitir sentir? Eu não tenho essa resposta. E, sinceramente, acho que você também não tem.

    Saito olhou de lado para Kevin, que ainda estava calado.

    — Não se culpa tanto, cara… só segue em frente, como sempre fizemos. Às vezes é só isso que dá pra fazer.

    Kevin soltou um riso baixo, sem humor, quase um suspiro.

    — É… você tem razão. No fim das contas, tudo que resta pra gente é continuar andando.

    Mas então ele ergueu os olhos. Havia algo firme, inabalável ali. Uma convicção que não tremia nem mesmo diante da tristeza.

    — Mas eu já me decidi sobre isso, sabe. Sobre essa dúvida que você levantou. Eu não quero nada me atrapalhando. Relacionamentos, família, filhos… tudo isso, no fim, cria amarras. Me faz hesitar. Me faz ter medo. E pra ser o herói que eu quero ser… eu não posso ter medo.

    Saito ficou em silêncio. Queria dizer algo, qualquer coisa. Mas, no fundo, ele sabia que não era o momento. Ele gostava de Kevin, admirava a determinação do cara… mas ainda não o conhecia o bastante pra saber até onde podia ir com seus conselhos.

    Então apenas assentiu, respeitando o espaço do amigo.

    Depois de mais alguns minutos de conversa, os dois voltaram para os quartos onde iriam passar a noite. O silêncio os acompanhou pelo caminho, mas não era desconfortável. Era o tipo de silêncio que só existe entre aqueles que entendem a dor um do outro, mesmo sem precisar falar muito.

    E enquanto a noite caía de vez sobre o vilarejo, cada um deles se recolheu com seus próprios pensamentos — seus sonhos, suas dúvidas, suas escolhas… e os sentimentos que, por mais que tentassem ignorar, continuavam ali, batendo forte dentro do peito.

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