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    Ela relatava tudo com a calma de quem já chorou o suficiente anos atrás. Contar agora era apenas expor cicatrizes, não feridas abertas. Disse que chegou a um vilarejo remoto. Trabalhou em tarefas simples usando sua habilidade incomum com a manipulação da Gama — uma herança amarga do treinamento forçado. Com o tempo, economizou o suficiente para alcançar o Reino das Quatro Torres, onde se registrou como aventureira mesmo sem idade mínima. Foi aceita graças ao talento excepcional. Era uma exceção… mas não por sorte. Por sobrevivência.

    — E agora eles a querem de volta. — concluiu Saito, os olhos semicerrados, como se mapeasse cada possível desdobramento. — Afinal… você já foi deles uma vez.

    — Por isso eu preciso ir embora. Fugir daqui, ir para outro reino, eles não podem me encontrar de novo! — exclamou ela, voltando à sua urgência inicial.

    Kevin, ainda tomado por choque e empatia, concordou num sussurro:

    — Talvez seja a melhor solução…

    Mas Saito, como sempre, foi a lâmina no meio da carne.

    — Claro que não, Kevin.

    — O quê? Você quer que ela fique aqui pra ser levada por aqueles malditos?

    — Me responde uma coisa: pra quem eles mandaram a carta? Foi pra ela… ou pra você?

    Kevin congelou por um segundo. Então entendeu. Não era apenas uma carta de ameaça. Era uma armadilha.

    — Eles sabiam que, se mandassem a carta diretamente pra ela, ela fugiria de novo. Faria o que sempre fez. Fugir. Se esconder. Mas mandando pra você… colocaram todos nós dentro da jaula com ela.

    Saito se aproximou da mesa, os olhos queimando com frustração e lógica gelada.

    — Eles escreveram claramente: “se não a entregarem, iremos atrás de vocês. De todos vocês.” — Ele bateu levemente o dedo na madeira. — Estão usando nossa vida e nossas famílias, Kevin. Como garantia. Como reféns.

    Foi nesse momento que Little Girl fez algo que Saito jamais tinha visto antes. Ela baixou a cabeça. Não por orgulho ferido. Não por cansaço. Mas por culpa. Por medo. Pela primeira vez, ele viu nela não uma maga arrogante ou uma garota geniosa… mas uma sobrevivente exausta. O silêncio que se seguiu foi pesado, cheio de coisas que ninguém sabia como dizer.

    — Eu não vou entregar ela, Saito. — disse Kevin, com firmeza na voz e o maxilar travado.

    Saito soltou um suspiro pesado, como se as palavras do amigo tivessem lhe dado um soco no estômago. Ele se virou devagar, olhos apertados, e lançou um olhar fulminante para Little Girl, que continuava sentada com a cabeça baixa, como se o chão fosse mais confiável do que qualquer rosto naquela sala.

    — E vai colocar as pessoas que você ama na mira deles por causa dela? — disparou Saito, o tom cortante. 

    Little Girl não disse nada. Seus dedos apertavam a barra da própria camisa, e a respiração trêmula entregava o pânico que ela ainda tentava esconder.

    — Eu não sou tão gentil quanto você, Kevin. Nem vem com esse papo de redenção ou compaixão. Isso aqui não é um conto de fadas. É vida real. — Saito falou com um ódio contido, que mais parecia cansaço. — E na vida real, pessoas morrem por escolhas burras.

    Kevin se levantou com força, arrastando a cadeira para trás com um ruído ríspido.

    — Você acha mesmo que, se entregarmos ela, os Pecadores vão simplesmente esquecer da gente? — gritou, os olhos arregalados, o tom entre a revolta e a incredulidade. — Você acha que eles vão pegar a garota e deixar a gente em paz, como se fosse uma troca limpa?

    Saito não respondeu. Sua boca se fechou, e o silêncio dele falou mais do que qualquer justificativa. Ele sabia que Kevin tinha razão — e odiava isso.

    — Eles são lunáticos, Saito. Do tipo que não quer só vencer, quer ver o mundo arder. Quer destruir reinos, espalhar terror, arrastar inocentes junto. Entregar ela não vai nos salvar. Vai ser só o começo de outra desgraça.

    Saito passou a mão pelos cabelos, respirou fundo e fechou os olhos por um segundo. O cansaço estava estampado nele. Era o rosto de alguém pressionado demais por deveres, expectativas e um medo que crescia como erva daninha.

    — Então o que você quer fazer, Kevin? — perguntou, finalmente. — Falar bonito é fácil. Mas tem alguma solução que envolva manter todo mundo vivo?

    — Eu não sei… — respondeu Kevin com a voz agora mais baixa, mais humana. — Mas… eu me recuso a entregar alguém de bandeja pra aqueles monstros. Nem que eu precise me ferrar no processo.

    As palavras pesaram no ar como uma sentença de morte. Ambos sabiam o que isso significava. Decidir por não entregá-la era assumir o risco de guerra com um grupo que não conhecia limites, regras ou honra.

    — Vamos reunir o resto da equipe. Precisamos decidir isso juntos. — sugeriu Kevin, embora já estivesse cansado da própria voz.

    — Quer colocar mais gente na mira deles? Quanto mais pessoas souberem, mais difícil fica manter qualquer chance de defesa. Você sabe disso, não sabe? — retrucou Saito, mas sua voz agora não tinha mais fúria — apenas preocupação. Uma exaustão silenciosa.

    Foi então que a voz de Little Girl cortou o silêncio como um estilhaço de vidro.

    — Eu não vou me entregar àqueles lunáticos.

    Saito virou-se lentamente, encarando a menina com raiva renovada, pronto para explodir — mas o que viu o deixou em silêncio. Havia algo diferente nos olhos dela agora. Não era arrogância. Era convicção. Um ódio frio, antigo, o tipo de olhar que só quem sobreviveu ao inferno carregava.

    — Pode me encarar o quanto quiser, Saito. Mas nem você, nem Kevin, sabem o que eu passei enquanto estive nas mãos dos Pecadores. Vocês não têm ideia do que é viver como propriedade, como experimento. Não vou voltar pra isso. Nunca. Se tentarem me entregar… eu vou lutar. Contra vocês, contra quem for. E se eu perder… — ela tocou o maxilar com os dedos, delicadamente. — …tenho uma cápsula de veneno escondida no lugar de um dos dentes. Para o caso de eles me encontrarem de novo. Prefiro morrer. Rápido. Do que ser levada de volta e morrer aos poucos.

    Kevin engoliu em seco, surpreso com a frieza da declaração.

    — Veneno…? Você tá falando sério? — murmurou ele.

    — Eu sempre estive falando sério. Só não ouviam porque era mais fácil me ver como uma criança. — Ela se levantou, devagar, e seus olhos agora queimavam de raiva, não só dos Pecadores, mas do mundo que a deixou chegar até ali.

    Encarou Saito sem hesitação. Não havia medo. Havia guerra.

    — Então esqueça essa ideia, Saito. Você pode até tentar… mas não vai me entregar. 

    Saito ficou parado. Um músculo em sua mandíbula se contraiu. Ele queria gritar, queria reagir, mas não conseguiu. Por mais que seu coração estivesse dividido entre proteger sua mãe, seu futuro irmão e a lógica fria da sobrevivência… uma parte dele sabia.

    Ela não estava blefando.

    E isso mudava tudo.

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