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    Dois dias haviam se passado desde a reunião com Little Girl e Kevin. Agora, Tuare e Leiana também estavam cientes da verdade — e, como esperado, ficaram do lado de Kevin. Isso irritava Saito profundamente, embora ele já soubesse que estava lutando contra uma maré impossível de conter. Tuare sempre teve uma fraqueza pelos ideais heroicos de Kevin — uma admiração cega que beirava o fanatismo. Já Leiana, sendo amiga dos dois desde os tempos em que nem sonhavam em empunhar armas, era previsivelmente leal. Saito se viu encurralado. Isolado. Todas as cartas estavam sendo jogadas contra ele.

    No entanto, Saito era inteligente demais para insistir em uma causa perdida. E teimoso demais para aceitar a derrota sem fazer algo a respeito. No final do primeiro dia, ele já havia abandonado a ideia de entregar Little Girl. Por mais que desejasse proteger sua família, a realidade era clara como a lâmina de uma faca: ela era, indiscutivelmente, o membro mais poderoso do grupo — mais até do que Kevin. Se ele tentasse qualquer coisa, ela o esmagaria. Sem hesitação. E sem remorso. Então, seu plano teve de mudar.

    Se não pudesse entregá-la… ao menos garantiria que sua família não pagaria o preço por sua impotência.

    Seu pai, como sempre, era um problema menor — um comerciante itinerante que raramente ficava em um mesmo lugar por mais de três noites. Contratava guardas. Pagava por segurança. Estava acostumado a viver na borda da navalha. Mas sua mãe… ela era o ponto fraco. Grávida. Vulnerável. E morando sozinha em uma casa com pouca proteção.

    Foi então que Saito tomou uma decisão que sabia que marcaria um antes e um depois em sua vida: para lidar com gente perigosa, só com gente perigosa.

    Caminhou decidido até a sede da guilda de aventureiros, subindo os degraus até o escritório reservado do homem que muitos temiam — e, ao mesmo tempo, respeitavam. Zepelin. 

    Saito entrou sem pedir permissão.

    — Preciso negociar com você, senhor Zepelin. — disse ele, sentando-se diante do homem como quem se senta frente a um juiz. — A situação é inusitada. E caso aceite me ajudar… farei tudo que for necessário. Qualquer coisa que o senhor quiser que eu faça.

    Zepelin o observou com um sorriso torto. Cruzou os braços e se inclinou levemente para frente, como um gato preguiçoso que acabava de notar uma presa interessante.

    — Você parece bem diferente do outro dia. Teve tempo o suficiente pra pensar, garoto? — provocou ele, com aquele tom zombeteiro típico de quem se sente no controle.

    Saito soltou uma risada breve, quase amarga.

    — Tempo? — repetiu, desviando os olhos por um instante. — Não tive nem tempo pra respirar em paz. Quanto mais pra pensar.

    Houve um momento de silêncio. Zepelin franziu o cenho, percebendo algo diferente ali. O garoto que estava sentado à sua frente parecia… quebrado. Mas não frágil. Era a quebra de um homem que havia sido obrigado a crescer rápido demais. Que já não acreditava em vitória — só em sobrevivência.

    Saito então explicou. Tudo. Detalhes, nomes, implicações. E ao fazê-lo, algo inesperado aconteceu: a expressão de Zepelin, normalmente imperturbável, se deformou num rictus de medo. O veterano endurecido, que já enfrentara monstros e bandidos de todos os tipos, começou a tremer ao ouvir o nome deles: Os Pecadores.

    — I-Isso… Pecadores… Meu Deus… — balbuciou Zepelin, levando a mão à cabeça, como se uma dor repentina tivesse brotado no fundo da nuca.

    Saito apenas o observou, impassível.

    — Achei que, se você queria que eu começasse a fazer “serviços” pra você… deveria saber com o que está lidando. — disse com frieza. — Mas mais importante do que isso… quero que encontre um lugar seguro para minha mãe. Um esconderijo, a partir do último dia deste mês. Até nova ordem. Eu não me importo mais com as informações sobre meu avô. Se tiver que escolher, eu troco uma coisa pela outra. Só quero uma garantia: que minha família sobreviva, caso eles venham nos cobrar a conta.

    Zepelin respirou fundo, tentando reassumir a postura de líder. Ainda tremia, mas seu olhar começava a recuperar o brilho cínico de quem sabia negociar com o medo.

    — C-Certo… — respondeu, a voz ainda um pouco trêmula. — Irei providenciar um lugar seguro. Algo discreto. Mas vamos deixar uma coisa clara, Saito… enquanto formos parceiros, sua mãe estará protegida. Mas isso exige… reciprocidade.

    Saito assentiu, como quem já esperava ouvir aquilo.

    — Claro. O que você quer que eu faça?

    Zepelin abriu uma gaveta, retirou um pequeno envelope de couro e o jogou sobre a mesa. Dentro havia um mapa antigo, com marcas em tinta vermelha sobre uma floresta ao norte perto de um vilarejo. Ele olhou Saito nos olhos com uma seriedade cortante.

    ⧫⧫⧫

    — Então temos um trabalho… — murmurou Kevin, a voz mais grave do que o habitual, como se o próprio som da proposta fosse um presságio. Havia um peso nos olhos dele, algo que só os homens que sabiam o que é o perigo de verdade conseguiam entender. Ele não gostava de para onde aquilo estava indo.

    Saito o havia chamado para uma conversa privada, apenas os dois. Uma reunião curta, mas necessária. O restante do grupo sequer sabia que haveria uma missão. O garoto decidiu contar apenas para Kevin por um motivo muito simples: precisava de ajuda, mas não queria arriscar revelar demais. A tarefa que Zepelin havia lhe passado era simples, ao menos à primeira vista. Não envolvia ilegalidade — não por enquanto. Era um teste. Um ensaio para algo maior. Um prelúdio antes de mergulhar nas águas turvas dos favores de Zepelin. E por isso, Saito ainda podia chamar aliados.

    — O alvo é um troll — disse Saito, apoiando os cotovelos na mesa, o olhar fixo em Kevin como quem implora por razão sem se permitir parecer fraco. — Um vilarejo ao sul, chamado Caius, tem enfrentado problemas. A criatura apareceu há algumas semanas, destruiu plantações, matou alguns animais… depois sumiu. Zepelin quer a cabeça dele como prova.

    Kevin cruzou os braços, o rosto pensativo. Aquilo não era exatamente incomum. Trolls, apesar de raros, surgiam de tempos em tempos nos arredores das zonas habitadas. Mas não eram monstros que qualquer aventureiro enfrentava com tranquilidade. Alguns deles, como os trolls vermelhos, eram simplesmente aberrações de força e brutalidade.

    — Já vi um troll antes… de longe. Nunca lutei contra um. — murmurou Kevin. — Esses monstros não são fáceis de derrubar. Mesmo com um grupo experiente. Você tem certeza de que não há mais nada por trás disso, Saito? Estamos falando de Zepelin. Ele não dá ponto sem nó.

    Saito baixou os olhos por um instante, respirou fundo e então ergueu o olhar com determinação contida.

    — Não encontrei nada de ilegal. Fiz minha própria investigação. Um morador de Caius veio até o reino solicitar ajuda à guilda. A missão deveria ser colocada no mural público, mas Zepelin a reteve para ele. Disse que queria usá-la como teste. Nada além disso. Ainda assim, Kevin… eu estou com receio. Mas recuar… não é uma opção pra mim agora.

    Kevin entendeu na hora o que Saito não conseguia dizer em voz alta. O silêncio entre eles carregou esse entendimento. Um silêncio pesado, de dívida não paga.

    — Eu sei. — respondeu Kevin com um tom amargo. — Sei que colocamos você numa posição impossível quando votamos contra a entrega da Little Girl. Você avisou. Disse que haveria consequências. E mesmo assim, a gente seguiu com essa ideia. Agora, sua família pode pagar o preço por algo que você tentou impedir.

    A cabeça de Kevin abaixou, tomado por um raro momento de vergonha. Ele sempre se orgulhou das próprias decisões, sempre acreditou que estava do lado certo da história — mas aquela era uma ferida que nem a justiça curava. Saito havia sido empurrado para a beira do abismo, e ele sabia disso.

    — Eu não te culpo. — disse Saito, com um leve sorriso cansado. — Você é um cara que quer ser um herói. Acha que pode salvar o mundo só com a própria vontade. Não vou te condenar por isso. Seria hipocrisia da minha parte, afinal, eu também estou buscando meu sonho. Me desculpa se naquele dia eu deixei a raiva tomar conta. Não estou no meu melhor momento… e você não merece carregar esse fardo sozinho.

    Kevin ergueu os olhos. E sorriu — um sorriso simples, quase infantil, mas cheio de propósito.

    — Vamos fazer essa missão. — disse. — Vou reunir o grupo e dizer que é apenas uma tarefa comum, como tantas outras. Não mencionarei Zepelin. Nem acordos. Nem tratos. Assim não corro o risco de uma delas recusar.

    — Tem certeza…? — Saito arqueou uma sobrancelha, surpreso. — Você não costuma esconder esse tipo de coisa.

    — Devo essa a você, Saito. — respondeu Kevin, firme. — Se eu puder aliviar um pouco o peso que jogamos nas suas costas… é assim que vou começar.

    Saito assentiu lentamente, absorvendo o gesto com mais surpresa do que queria demonstrar. Não imaginava que Kevin fosse proteger o segredo dessa missão dada por Zepelin. Isso mudava tudo. Ele precisava que essa missão funcionasse, e se Kevin estava disposto a sujar um pouco a sua consciência… então havia esperança.

    — Agora… sobre a Little Girl — murmurou Saito, desviando os olhos para o chão, como se a simples menção do nome invocasse a sombra dela ali. — Ela já decidiu o que vai fazer?

    — Ainda não. — Kevin respondeu com um suspiro. — O choque passou. Ela voltou a agir como sempre. Mas por dentro… ela está com muito medo. Anda assustada. Tenho certeza que tem dormido mal. Desconfia de tudo. Não sabe se foge ou se fica. Está presa entre o medo e o instinto de sobrevivência.

    — E o pior é que… qualquer escolha dela vai nos colocar em risco. — Saito apertou os punhos. — Se ela fugir, os Pecadores vêm atrás da gente por deixar ela ir. Se ela ficar, eles vêm atrás por não obedecermos. Eu não gosto da presença dela, Kevin. Mas a verdade é que, se quisermos ter alguma chance quando eles vierem… vamos precisar dela do nosso lado.

    Kevin não respondeu de imediato. Ficou em silêncio, pensativo. Por um instante, o líder bondoso que tentava salvar o mundo pareceu perceber o que significava, de fato, lutar para mantê-lo de pé: alianças desconfortáveis, decisões sujas e apostas em monstros — desde que fossem os seus monstros.

    — É verdade… — respondeu, finalmente. — E acho que está na hora de começarmos a conversar sobre isso com ela. Não como ameaça. Mas como um pacto.

    Ambos se levantaram. A conversa havia terminado. Mas o pacto não dito entre eles estava selado.

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