Capítulo 139 - Preparações
Com apenas doze dias restando até o fim do mês, o tempo passou a pesar como uma lâmina suspensa sobre as cabeças de todos. Saito e Kevin estavam frente a frente com a figura que dividia o grupo: Little Girl.
A conversa, como era esperado, foi conduzida por Kevin. Ele sempre teve mais tato, mais empatia. Saito, embora presente, permaneceu encostado na parede, braços cruzados, olhos fixos nela como quem observa uma bomba prestes a explodir. Little Girl escutava em silêncio, seus olhos grandes e vazios revelando o medo que ela tentava esconder por trás da máscara habitual de indiferença.
Kevin explicou a situação com clareza e firmeza. Falou da missão, do risco, da urgência. Falou também do que aconteceria quando o mês acabasse — não havia como evitar esse assunto. Saito, embora inquieto, permaneceu calado. Ele não gostava da garota, isso era evidente, mas ali, naquele momento, ambos sabiam que iriam precisar dela.
Mais tarde, já com o grupo reunido, Kevin fez o que havia prometido: anunciou a missão, omitiu o envolvimento de Zepelin e a possível natureza política da tarefa. Apresentou-a como uma missão especial, uma oportunidade rara — e perigosa — que exigia ação imediata. Ele usava poucas palavras, mas a forma como as dizia carregava peso. Era como um general antes da batalha, sabendo que não adiantava dourar a pílula.
— Vamos sair daqui a dois dias — disse ele. — Caçar um troll nos arredores de Caius. É uma missão fora do mural oficial da guilda. Precisamos nos mover antes que a chance passe.
Com a missão discutida, o grupo entrou em um segundo tópico — o mais delicado de todos: o que fariam quando o mês acabasse. Porque todos sabiam, mesmo que evitassem colocar em palavras, que a decisão de não entregar Little Girl havia selado o destino deles. Os Pecadores viriam.
A atmosfera na sala mudou. O ar ficou mais denso, como se o simples nome desse grupo drenasse a coragem de quem o pronunciava. O silêncio tomou conta por longos segundos. E então, Leiana foi a primeira a falar.
— Disse pro meu namorado ficar comigo em casa até isso tudo passar. — comentou, com a voz firme, mas os olhos denunciando o medo. — Ele não é lutador. Mas se estiver perto, ao menos posso protegê-lo.
Kevin, por outro lado, não se mostrava tão inquieto com relação ao seu “filho” — que estava seguro com o pai, um homem influente. Tuare era diferente. Ela não tinha pais. Só tinha Kevin. E isso era o suficiente para ela estar disposta a matar ou morrer por ele.
Saito, no entanto, estava num ponto de ruptura. Ele tinha uma mãe. E ela estava grávida. Ele não falava muito sobre isso, mas quando o assunto surgia, seus olhos escureciam como um céu antes da tempestade. A ideia de sua casa ser invadida, de sua mãe ser arrastada por lunáticos em meio à madrugada, o consumia por dentro.
Então vieram os planos. A primeira ideia foi recorrer aos Cavaleiros Sagrados — a elite defensiva do Reino das Quatro Torres. Era uma proposta lógica. O reino ainda era considerado um dos lugares mais seguros de toda a região. Era improvável que até mesmo os Pecadores ousassem agir ali. Mas, após o massacre de Icca, quem podia garantir isso?
— Os Pecadores destruíram um centro comercial que atendia quatro reinos. — comentou Saito. — Não estamos falando de simples bandidos. Eles não querem ouro. Não querem fama. Eles querem carne, sofrimento… dor. E isso os torna imprevisíveis.
O vilarejo, outrora pulsante, virou cinzas. 80% das construções reduzidas a escombros. Mais de oitocentos mortos. Centenas de feridos. Quase cem desaparecidos. Não havia honra naquilo. Não havia estratégia. Apenas brutalidade.
O grupo estava aterrorizado. E com razão. Não era medo da morte — era medo de uma morte sem sentido, de serem despedaçados como exemplo, como mensagem. Aqueles que haviam sido treinados para enfrentar bandidos e feras estavam prestes a encarar demônios com forma humana.
— E se eles esperarem a gente sair em missão? — disse Tuare. — Se nos emboscarem na estrada, longe dos muros do reino?
Ninguém respondeu. Porque todos sabiam que essa era a maior probabilidade.
Mercenários podem ser comprados. Bandidos podem ser assustados. Mas os Pecadores… eles eram uma carta fora do baralho. Um culto de psicopatas que não queria moeda nem poder — só sofrimento. Eles surgiam quando queriam, sumiam sem deixar rastros. Quando se ouviam passos atrás da porta, não se sabia se era a morte ou apenas o vento.
E agora, aquele grupo de aventureiros — que há poucas semanas discutia contratos e caçadas a monstros — se via no meio de uma situação perigosa.
O plano era simples, ainda que enraizado em mentira. Levaram a carta e construíram uma narrativa com a precisão de quem molda uma faca: direta, cortante e funcional. Kevin foi o porta-voz. Disse aos Cavaleiros Sagrados que, durante a última missão fora dos domínios do reino, haviam encontrado um pequeno grupo de Pecadores, um grupo avançado, e que — por sorte ou talento — conseguiram abatê-los. Mas que, desde então, estavam sendo caçados.
Mentir para os Cavaleiros não era apenas uma escolha estratégica. Era uma necessidade. Dizer a verdade sobre Little Girl, sobre sua origem, seu valor para os Pecadores… seria abrir a caixa de Pandora. Eles não podiam correr o risco de que ela se tornasse um alvo oficial do reino, ou pior, que os próprios Cavaleiros passassem a temê-la. O silêncio era uma proteção frágil, mas era a única que tinham.
Os Cavaleiros, para a surpresa deles, levaram a ameaça a sério. Começaram a reforçar a segurança dos portões, aumentaram a patrulha noturna e colocaram mais olhos atentos nas estradas. Mas Kevin sabia: tudo isso era paliativo. Os Pecadores não invadiam como exércitos. Eles se infiltravam como doenças.
No segundo dia, Saito, Kevin e Tuare deixaram a sala de reuniões do grupo logo após o amanhecer. Foram direto ao setor de armas e relíquias, onde os antiquários e mercadores de relíquias antigas operavam suas lojas. Era uma área onde o tempo parecia andar mais devagar — e os preços, mais rápido.
Saito, como sempre, manteve a cabeça fria. Era o mais abastado do grupo, sem hesitar, pagou do próprio bolso um conjunto de aneis raros — relíquias enfraquecidas, mas ainda eficazes. Cada anel era entalhado com runas em forma de espiral, e ao ser ativado por um ataque surpresa, criaria uma cúpula de Gama, um campo de energia sólida que resistiria ao impacto inicial e protegeria os portadores por alguns preciosos segundos. Um uso único. Mas um uso podia ser o bastante para virar o jogo.
Saito comprou um para cada membro do grupo. Mas não parou por aí. Comprou também um para sua mãe. Não comentou com os outros — não precisava — mas os olhos dele, ao guardar o pequeno embrulho de tecido negro no bolso interno do casaco, disseram tudo. O medo por ela era uma sombra constante. A ideia de vê-la sendo arrastada por aqueles lunáticos durante a noite o mantinha acordado mesmo depois que o corpo caía exausto.
No mesmo dia, reforçou a segurança da casa. Contratou novos seguranças — discretos, mas armados. Estipulou um ciclo rigoroso para o vai e vem de quem entrava.
Com os anéis em mãos, os três passaram para a segunda etapa do dia: preparativos para a missão de amanhã. Iriam caçar um troll. As histórias sobre trolls variavam, mas todas tinham um ponto em comum: eram máquinas de destruição com fúria no lugar de cérebro. Alguns cuspiam fogo.
— A gente vai precisar de óleo incendiário, armadilhas de espinhos e…— disse Kevin, listando os itens enquanto caminhavam pelas vielas.
Compraram o que puderam. Rechearam mochilas com tudo o que podiam, não sabiam se iriam retornar vivos, cordas encantadas e iscas aromáticas para atrair a criatura. Cada detalhe era pensado com frieza. Aquilo não era uma missão comum. Era uma mensagem para Zepelin. Um teste. E se falhassem… talvez nem tivessem chance de morrer por erro próprio.
Durante esses dois dias, ninguém dormiu direito.
Kevin, por mais que tentasse manter o sorriso e as palavras de ânimo, tinha os olhos fundos, vermelhos, como se estivesse em vigília constante. Tuare passava a maior parte das noites organizando e reorganizando seu equipamento, cada gesto mais automático que o outro, tentando silenciar os pensamentos. E Saito… Saito apenas sentava na beira da cama, encarando o chão como se pudesse enxergar o futuro por entre as tábuas. A cada novo som no meio da madrugada, sua mão já estava no punho da espada.
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