Capítulo 143 - O Real Problema
— Me entreguem, é melhor assim… — ela murmurou, encolhendo-se ainda mais. O livro que segurava caiu no chão de grama, aberto em alguma página esquecida. Ela apertou os joelhos contra o peito e enterrou o rosto entre as pernas. — Eu não quero mais que vocês se machuquem por minha causa. Não quero continuar fugindo… Fala com os outros. Depois dessa missão, tá tudo bem… podem me entregar.
— Isso…
— Não. Melhor nem falar com ninguém. Eu vou sozinha. Assim ninguém precisa carregar essa decisão…
Saito deu um soco no tronco da árvore atrás dela. Forte. As folhas estremeceram e começaram a cair ao redor, rodopiando no ar como se o mundo tivesse parado por um instante.
Ela se assustou, ergueu o rosto, os olhos ainda marejados de lágrimas. Mas pela primeira vez, não o olhou com desprezo. Ela o encarou com surpresa… e medo. Não do mundo, mas dele.
Talvez tenha achado que o golpe foi para intimidá-la. Mas não foi.
Foi para acordar a si mesmo.
Sua cabeça estava em guerra com o coração — e ele precisava de algo que o fizesse parar de pensar como um covarde.
— Não se entregue. — disse Saito, firme.
— M-Mas… eu…
— Eu disse que não. De jeito nenhum. — Seus dentes estavam cerrados, os punhos fechados. Ele olhava para ela com raiva — mas não dela. Era dele mesmo.
O que ele estava fazendo? Que tipo de pessoa ele estava se tornando?
E seus sonhos? E sua família? Ele ia mesmo arriscar tudo isso por causa de alguém que mal conhecia?
Seu corpo gritava contra a decisão. Como se estivesse traindo a si mesmo. Como se estivesse caminhando direto para a forca com um sorriso no rosto.
— Eu sou mesmo um merda… — murmurou, escorregando a mão pela árvore até o chão, sentando-se ao lado dela.
Por um instante, ele pensou em Kevin. Kevin tinha um sonho de ser herói. De salvar os outros. Era o tipo de coisa que dava sentido a esse tipo de escolha. Mas ele, Saito? Ele só queria ser um aventureiro. Viver histórias, conhecer o mundo. Nada mais. Não havia razão para estar ali fazendo aquilo.
Mas mesmo sem razão… ele queria.
Queria.
Ele olhou para ela de novo — tão pequena, tão frágil. Magra, assustada, com os olhos vermelhos de tanto segurar o choro.
Naquele momento, ele só queria uma coisa:
Ser o heroi dela.
— Para de falar besteira. — disse Saito, com os olhos fixos no chão.
— Você… você não foi o primeiro a dizer que eu devia ser entregue?! — gritou Little Girl, tremendo de raiva e frustração. — Então por que, agora que eu decidi isso, você começa com esse papo?!
Ela finalmente havia tomado uma decisão. Na verdade, já havia feito essa escolha antes mesmo de sair para essa missão. Não queria mais que os outros sofressem por sua causa. Mas, mesmo tendo decidido, o medo ainda a consumia — medo daqueles homens, do que fariam com ela… ou do que a forçariam a fazer.
Ela havia prometido a si mesma: se tentassem obrigá-la a matar, ela se mataria antes.
Ela achava que precisava de um empurrão. Achava que Saito daria esse empurrão — afinal, ele era o único do grupo que havia sido contra protegê-la. Mas agora, justamente ele, dizia para não fazer isso. Por quê?
Ela nunca o tratou bem. Nunca foi amiga dele. Que razão ele teria?
— Você tá com pena de mim, é isso?! — gritou, se levantando num rompante, com o braço arqueado num gesto brusco. — Eu não preciso da sua pena! Nem da sua empatia! E muito menos da sua—
— Ajuda? — interrompeu Saito.
Ela congelou.
Saito se levantou devagar, seu rosto neutro, sem expressão. Pela primeira vez, ele olhou para ela do mesmo jeito que ela costumava olhar para ele: sem emoção, sem máscara.
— Vai se foder — disse, com a voz firme. — Logo você vem me dizer que não precisa de ajuda? Você?! Que passou a vida inteira fugindo como um rato, se escondendo pra sobreviver?! Para com essa merda. Enxerga a sua realidade, porra!
— O que você tá dizendo…?
Ela recuou um passo. Nunca tinha discutido assim com ninguém. Não sabia o que fazer, o que sentir.
— Eu enxergo melhor que qualquer um! — rebateu. — É exatamente por isso que—
— Por isso decidiu se entregar sem nem pedir ajuda? — interrompeu novamente, com o tom mais duro.
Ela ficou em silêncio, e ele continuou:
— Você não entende, né?
— O problema sou eu! — gritou ela, quase num desespero. — Sou eu… Então, se eu—
— O problema nunca foi você. — Saito a encarou direto nos olhos.
Foi como se o mundo tivesse parado.
Essas palavras atingiram Little Girl como um golpe seco no estômago — mas, ao invés de machucar, algo dentro dela pareceu se desfazer. Algo ruim, preso há muito tempo. Ela sentiu alívio. Sentiu-se vista.
Mas não queria sentir isso. Não podia.
Ela era o motivo pelo qual eles não dormiam tranquilos. Era o motivo pelo qual as famílias estavam em risco. Ela não merecia perdão.
— O problema nunca foi você. São eles. — Saito se abaixou, ficando na altura dela. — Você é só uma criança. Você não tem culpa de nada. Está só tentando viver, sobreviver, como qualquer um de nós. Quem fez isso com você… eles são os monstros. Não você.
Ela desabou.
As lágrimas caíram com força. Escondeu o rosto nas mãos pequenas e chorou como nunca. Como uma criança. Como a criança que sempre foi, mas nunca teve permissão de ser.
Aquilo… eram as palavras que ela mais queria ouvir.
Era pesado demais carregar tudo sozinha. Pesado demais se sentir um monstro quando só tentava mudar.
Saito não sabia bem o que fazer. Mas então se lembrou — de quando ele mesmo chorava daquele jeito, quando criança, ao saber do desaparecimento do avô. Lembrou de seu pai se aproximando, dizendo algo simples, mas que fez toda a diferença.
Ele se aproximou, hesitante.
— O que você… o que está fazendo…? — Little Girl tentou perguntar, soluçando.
— Vai ficar tudo bem — disse Saito, num tom desajeitado. Não parecia certo. Seu pai tinha dito aquilo de um jeito mais reconfortante. Ele precisava fazer melhor. — Vai ficar tudo bem, Little Girl. Pode chorar. Eu estou aqui. Se você me pedir ajuda… juntos, nós vamos dar um jeito.
E então, sem saber exatamente como, a abraçou. Ela hesitou. Mas logo, os bracinhos subiram e envolveram seu pescoço com força. Chorava baixinho agora, com o rosto enterrado em seu ombro.
— Vai ficar tudo bem — repetiu ele, num sussurro.
E, naquele instante, ela acreditou.
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