Capítulo 147 - Destruam os Pecadores
— Primeiramente… posso começar perguntando o porquê? — questionou Saito, com a voz baixa, porém firme.
Os três estavam em uma viela estreita nos fundos do vilarejo. Era um daqueles lugares quase esquecidos entre construções antigas, onde as pedras irregulares do chão contavam histórias de tempos melhores. Ali, entre paredes silenciosas e o vento que sussurrava entre as frestas das casas, ninguém os incomodaria. Finalmente, era possível conversar — de verdade.
Saito deu um passo à frente, sem se impor, mas mostrando que queria entender. Por mais que fosse fácil deduzir o que motivava alguém a caçar os Pecadores, ele queria ouvir da própria Sira. Entender sua dor. Conhecê-la.
— Eles mataram minha família. Duas vezes. — respondeu ela, com a voz fria como aço, mas os olhos carregando um ódio quase palpável. Não era apenas rancor. Era um ódio antigo, sujo, que parecia roer seu interior cada vez que falava sobre eles.
Saito sentiu um nó na garganta. O silêncio que seguiu parecia pesar entre eles.
— Eu… entendo. — murmurou, mesmo sem entender por completo o que significava ter sua família morta “duas vezes”.
Apesar disso, não conseguiu evitar um sentimento contraditório. Parte dele sentia empatia por Sira, pela dor visível nas palavras dela. Mas outra parte — mais pragmática — se sentia aliviada por finalmente encontrar alguém que também via os Pecadores como eles realmente eram: monstros disfarçados de humanos.
Talvez, se tudo desse certo, poderiam até ganhar uma aliada. Uma poderosa aliada. Mas antes que esse pensamento amadurecesse, Little Girl tomou a palavra, visivelmente incomodada com a presença de Sira.
— Certo, você quer matar os Pecadores. E descobriu que tivemos contato com eles. Mas me explica uma coisa… — disse, cruzando os braços e estreitando os olhos. — Por que desarmar o Saito? Por que sacar sua espada como se fôssemos inimigos? Se queria informação, não seria melhor começar perguntando?
A tensão entre as duas era palpável. Desde o início, as duas se estranhavam. Little Girl não tirava os olhos de Sira, encarando-a com a mesma ferocidade que costumava usar contra seus inimigos.
Sira, no entanto, não recuou. A resposta veio tão afiada quanto sua lâmina.
— Os Pecadores agem de muitas formas. Uma das mais perigosas é o disfarce. Eles se infiltram, fingem ser pessoas comuns, e só mostram quem realmente são quando já é tarde demais. Considerar a possibilidade de que vocês pudessem ser Pecadores disfarçados… não foi um capricho. Foi meu dever.
A frieza da resposta calou Little Girl por um instante. Saito quase comentou um “Faz sentido”, mas antes que as palavras escapassem, sentiu o olhar cortante de Little Girl perfurar sua alma. Engoliu seco e ficou em silêncio.
Após um momento, Saito tentou retomar o foco da conversa, afastando o atrito entre as duas.
— Agora que sabemos quem você é e qual o seu objetivo… acho que podemos contar como acabamos nos envolvendo com os Pecadores. — disse, com calma.
Sira apenas o encarou em silêncio, os olhos impassíveis, mas atentos. Era o tipo de silêncio que servia como permissão.
Saito se virou para Little Girl. Seu olhar perguntava o que sua boca não ousava dizer sem permissão. Sabia que parte da história envolvia o passado dela, e não queria expor nada sem sua autorização.
Por um instante, ela hesitou. Mas logo assentiu com um leve movimento de cabeça. Saito respirou fundo e começou.
Ele contou tudo. Desde os primeiros sinais de que havia algo errado, até o momento em que foram confrontados com os verdadeiros horrores que os Pecadores representavam. Falou sobre a carta de ameaça, sobre a ida dos companheiros aos Cavaleiros Sagrados, e sobre como o próprio grupo se viu no meio de uma guerra silenciosa, onde era difícil distinguir aliados de inimigos.
Não escondeu a dor. Não diminuiu o perigo. E, acima de tudo, não tentou se fazer de herói.
Contou também, com cuidado, sobre o passado de Little Girl — não em detalhes, mas o suficiente para que Sira entendesse o porquê daquela criança ser tão madura, tão firme… e tão perigosa.
E Sira ouviu. Silenciosa como uma estátua, mas os olhos dela diziam que cada palavra estava sendo absorvida. Avaliada. Julgada.
Quando Saito terminou, o silêncio retornou. Mas dessa vez, não era desconfortável. Era o silêncio de quem precisava processar a verdade.
— Agora estamos em uma enrascada… — disse Saito, a voz pesada como se carregasse o peso do mundo nos ombros. — Decidimos não entregar a Little Girl, mas isso coloca todos nós — e nossas famílias — em risco.
Ao ouvir aquilo, Little Girl baixou a cabeça, mordendo levemente o lábio inferior. A culpa era um nó em sua garganta que nem mesmo as palavras gentis de Saito conseguiam desfazer. Ela sabia que ele estava certo — e aquilo doía mais do que qualquer acusação.
Sira permaneceu em silêncio por alguns segundos, os olhos fixos em Saito como se estivesse estudando sua alma. Enfim, respirou fundo e falou, a voz fria como aço recém-forjado:
— Foi uma decisão idiota. Os pecadores não brincam de ser monstros. Eles são.
Houve uma pausa tensa. As palavras dela cortaram como lâminas afiadas. Mas então, com um leve meneio de cabeça, completou:
— Mas eu não sou ninguém de vocês, então não vou me meter.
Apesar da dureza na fala, Sira entendia. No fundo, se estivesse no lugar deles, provavelmente teria feito o mesmo. Proteger um amigo, alguém importante… era algo que ela conhecia bem, mesmo que hoje em dia não restasse mais ninguém para ela proteger.
— Se querem realmente escapar dessa situação, só existe uma saída. — Sua voz agora soava mais densa, quase fatalista.
Saito arqueou uma sobrancelha, surpreso.
— Existe… alguma coisa que a gente possa fazer? — perguntou ele, com um traço de esperança em meio à desesperança. Até agora, tudo o que o grupo havia conseguido imaginar era resistir. Fugir o quanto pudessem, por quanto tempo fosse possível. Não era um plano, era uma tentativa de sobrevivência à base de improviso.
Sira respondeu com a mesma naturalidade com que alguém diria que o céu é azul:
— Destruam os pecadores.
Houve um breve silêncio, logo rompido por uma risada seca.
— Ha! — ironizou Little Girl. — Fala isso como se fosse empurrar uma porta. Eles não são um grupinho de ladrões de estrada que se vence com coragem e uma espada na mão. Você nem imagina o que é necessário pra isso.
Ela sabia do que estava falando. Dentre os três ali, Little Girl era quem mais tinha vivido o inferno de estar entre os pecadores. Ela conhecia seus métodos, sua crueldade, e principalmente, o quão fundo eles podiam ir.
— Eu não disse que seria fácil — respondeu Sira, firme. — Mas me diz… que outra escolha seus amigos têm?
A pergunta caiu como uma pedra em um lago calmo, criando ondas silenciosas. Little Girl abriu a boca, mas não disse nada. Não havia o que dizer.
— Não importa o que tentem. Não importa pra onde fujam. Quando o tempo de vocês acabar… — ela encarou Saito, depois Little Girl — …eles vão vir. E não vão deixar pedra sobre pedra. A única forma de continuarem vivos, se é que realmente querem continuar protegendo essa garota… é acabar com os pecadores. Todos eles.
As palavras pairaram no ar, mais pesadas do que a própria ameaça dos inimigos. Nenhum deles queria admitir, mas ela estava certa. Fugir não era mais uma opção. Os pecadores eram como sombras — sempre encontravam um jeito de alcançar suas presas.
Saito apertou os punhos. Tudo estava acontecendo rápido demais. Ele só queria ser um aventureiro. Viver histórias, conhecer o mundo, fazer sua família se orgulhar. Mas agora… agora estavam falando em derrubar uma organização inteira de assassinos e lunáticos.
Ele não sabia se podia.
Ele não sabia se devia.
Mas algo dentro dele começava a se alinhar à inevitável verdade.
Foi quando uma voz masculina soou vinda da entrada da rua.
— Eu concordo com ela.
Todos se viraram, surpresos. Kevin surgiu, virando a esquina com um sorriso leve, como se tivesse chegado a tempo de um desfecho inevitável.
— Kevin? — Saito o encarou. — Você estava ouvindo?
— Boa parte, vocês dois se atrasaram, então vim os procurar — respondeu ele, se aproximando calmamente. — Ouvi o suficiente pra entender. E honestamente, ela tem razão. Não tem mais volta. Não tem mais normalidade. A gente já fez a nossa escolha, mesmo sem perceber. Não dá mais pra viver como antes. Os pecadores já nos marcaram.
Houve um instante de silêncio. Então Sira deu um leve sorriso — não de alegria, mas de quem reconhece quando alguém finalmente entende o que ela sempre soube.
— Gosto de ver que você entendeu o que realmente precisa ser feito… — disse Sira, enquanto observava Kevin com olhos atentos — …mas não acha que está aceitando isso fácil demais?
Sua voz era séria, quase fria, como se estivesse testando a determinação dele.
— Os reinos vêm tentando erradicar os pecadores há anos. E mesmo com toda a força, recursos e inteligência que possuem, ainda não conseguiram. Eles operam nas sombras. Ninguém sabe exatamente como se organizam, como recrutam, nem como conseguem estar sempre um passo à frente. — Ela fez uma breve pausa, o olhar endurecendo. — Recentemente, eles atacaram o vilarejo de Icca… o coração comercial que mantém a paz entre os reinos. Isso não é um jogo. Se você realmente quer seguir esse caminho… esteja ciente: vai perder muita coisa no processo.
Kevin abaixou os olhos por um instante, absorvendo cada palavra como se fossem pesos amarrados ao seu corpo. Quando respondeu, sua voz veio mais baixa, porém firme:
— Não é como se eu já não tivesse pensado nisso…
Então ele se virou para encarar Saito e Little Girl. Seus olhos estavam carregados de seriedade, mas havia também um brilho de decisão — o tipo de olhar que surge quando alguém já passou noites acordado encarando o inevitável.
— Eu não sei o que vocês estão sentindo agora, mas… já estive refletindo sobre as nossas opções. Viver com medo, fugindo de um inimigo invisível, esperando o pior a cada batida na porta… isso não é viver. — Ele respirou fundo, como se colocasse um ponto final em sua própria dúvida. — Quero pôr um fim nisso. Quero destruir essa organização. Acabar com os pecadores. Saito, Little Girl… eu realmente acho que essa é a única saída que nos resta.
Little Girl apertou os punhos, os ombros tremendo levemente. As palavras de Kevin, por mais verdadeiras que fossem, caíram sobre ela como uma tempestade de culpa.
Ela se sentia… podre. Era por ela que todos estavam sendo jogados nessa situação insana. Por ela que estavam considerando enfrentar uma das maiores organizações criminosas do mundo. A ideia de vê-los sofrer, lutar, talvez morrer por causa dela… a enchia de nojo de si mesma.
Saito percebeu o quanto aquilo a estava abalando. Ele não disse nada no momento, apenas olhou para Kevin, que agora sorria para ele com confiança. Um sorriso simples, mas carregado de significado.
Na mente de Saito, lembranças se entrelaçaram: a conversa com Little Girl na noite anterior, as palavras que ela disse entre lágrimas, a esperança frágil que ela ainda carregava… e agora, a determinação de Kevin.
Saito não queria isso. Ele nunca quis. Queria ser um aventureiro, conhecer o mundo. Mas o mundo não era gentil — e fingir que tudo voltaria ao normal já não era mais possível.
Houve um momento de silêncio. Um daqueles raros instantes em que tudo parece parar — até o som do vento parece hesitar.
E então, ele falou.
— Não tem jeito… — murmurou Saito, engolindo em seco. Um sorriso nervoso surgiu em seu rosto, revelando mais medo do que coragem. — Vamos ter que acabar com eles.
Naquele instante, por mais assustador que fosse, uma decisão foi tomada. Não havia mais volta.
E o primeiro passo rumo ao impossível acabava de ser dado.
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