Índice de Capítulo

    O grupo se reuniu naquela noite em uma pequena hospedagem no centro do vilarejo, o tipo de lugar que carrega o cheiro de madeira velha e a quietude de lugares esquecidos pelo tempo. O quarto onde Kevin e Saito dormiriam estava apertado, com paredes de pedra úmidas e uma única lamparina lançando sombras oscilantes pelas paredes. Era ali que iriam discutir o destino de suas vidas.

    Mais cedo naquele dia, Kevin e Saito tomaram uma decisão da qual não haveria volta — escolheram confrontar a organização dos pecadores. E agora, precisavam conversar com o restante da equipe. Tuare e Leiana, companheiras de jornada, tinham o direito de saber. Tinham o direito de escolher.

    Mas não estavam sozinhos ali.

    Encostada na parede ao fundo, braços cruzados, postura firme e olhar analítico, estava Sira. Embora não fizesse parte do grupo original, sua presença ali não era por acaso. Kevin e Saito haviam a convidado pessoalmente. Ambos sabiam que, se realmente quisessem enfrentar os pecadores, precisariam de aliados — pessoas com convicções semelhantes, dispostas a encarar a escuridão sem desviar o olhar.

    Após um breve resumo dos acontecimentos daquela manhã, o clima no quarto ficou denso, carregado de tensão e expectativa. O silêncio que se seguiu era quase palpável, como se até o ar aguardasse o próximo movimento. E então, Tuare quebrou o silêncio.

    — Não temos muita escolha… — disse, sua voz baixa, mas decidida. — Acho que, por mais difícil que seja, essa é nossa melhor saída. Kevin, Saito… podem contar comigo.

    Ninguém ficou surpreso. Tuare não tinha família. Ela havia deixado tudo para trás para seguir Kevin, seu melhor amigo desde os tempos de infância. Já havia arriscado a própria vida inúmeras vezes por ele — e não seria agora que recuaria.

    Mas então veio a surpresa.

    — Eu não quero fazer isso…

    A voz foi de Leiana, trêmula, quase imperceptível, mas o suficiente para calar qualquer outro pensamento no ambiente. Todos se viraram para ela. O olhar de Kevin foi compreensivo — ele sabia que cada pessoa lidava com o medo de forma diferente.

    — Eu não posso fazer isso… — ela continuou, os olhos marejando. — É muito… arriscado. Eu… eu só quero viver uma vida tranquila. Com meu namorad… — ela engoliu em seco — com meu noivo.

    O silêncio que seguiu foi quebrado pela voz firme e crítica de Sira, que até então observava tudo calada.

    — Você sabe que tudo isso que você quer não vai acontecer a menos que eles sejam dizimados, não sabe?

    — Eu não posso ao menos tentar?! — Leiana se levantou abruptamente, os olhos cheios de angústia. — Tenho economias. Vou sair do reino, ir para Grão-Vermelho com meu noivo. Lá é seguro, é um dos reinos mais protegidos. Eu… eu posso ter uma chance!

    Saito desviou o olhar, sentindo o nó na garganta. Ele sempre viu Leiana como uma luz no grupo, sempre animada, sempre otimista. Vê-la assim, desesperada, implorando por uma vida comum, era doloroso.

    — Leiana… — murmurou ele, a voz embargada.

    — Isso não vai funcionar. — Sira respondeu, fria e direta, como uma lâmina atravessando a névoa das ilusões.

    — Grrr… — Leiana rosnou, apertando os punhos, claramente irritada.

    — Se acalme, Leiana. — disse Kevin, com calma, tentando manter a ordem. Em seguida, voltou-se para Sira com um olhar sério. — Por favor, deixe ela terminar de falar.

    Sira ergueu uma sobrancelha e soltou uma risada debochada, como se estivesse ouvindo uma criança tentar explicar algo que não entende.

    — Tudo bem… — disse com um tom cínico, e então olhou lentamente para cada rosto no quarto. — Mas antes que ela continue falando sobre reconstruir uma vida feliz em outro lugar, posso dizer algo?

    Seu olhar se demorou em Kevin, buscando sua permissão. Ele hesitou, mas assentiu, olhando em seguida para Leiana, que ainda estava de pé, respirando rápido. Por fim, ela cruzou os braços, irritada, mas acenou com a cabeça.

    — Fale… — disse ela com voz dura.

    Todos os outros assentiram em silêncio. A atenção do grupo agora estava toda voltada para Sira, que descruzou os braços e deu um passo à frente, prestes a dizer algo que talvez ninguém estivesse pronto para ouvir.

    — Quando eu era criança — começou Sira, sua voz carregada de lembrança e dor —, os Pecadores nos atacaram enquanto viajávamos por uma estrada a caminho de Grão-Vermelho. Estávamos indo em busca de ajuda… minha mãe estava muito doente.

    O quarto caiu em silêncio. Todos ali mantinham os olhos fixos nela, como se suas palavras tivessem o peso de uma sentença.

    — Meus pais… nunca mais foram vistos — continuou, cruzando os braços e olhando fixamente para o chão. — Meu pai… ele se jogou contra eles, os distraiu… só assim eu consegui fugir.

    A tensão no ar parecia aumentar a cada palavra. Leiana mordeu o lábio inferior, Saito franziu o cenho, e Kevin escutava sem interromper, com uma expressão grave no rosto.

    — Fui acolhida pelo meu avô depois disso. Um homem duro… marcado pela perda da filha. Ele me treinou desde o primeiro dia. Disse que, se eu não soubesse lutar, seria um peso. E ele… ele queria vingança.

    Sira olhou para o teto por um instante, como se estivesse revendo imagens que há muito tentava esquecer.

    — Por muitos anos, viajei com ele, caçando os Pecadores, indo de vila em vila. Com o tempo, minha raiva… ela foi sumindo. A dor ficou adormecida. Eu já não sentia o mesmo desejo de vingança que ele sentia. Eu só… seguia. Seguimos os rastros dos Pecadores.

    Ela fez uma pausa, respirando fundo.

    — Um dia, ele me deixou na casa de um amigo, em Icca. 

    Saito arregalou os olhos. Agora tudo fazia sentido. A frase dita por Sira dias atrás, sobre perder a família duas vezes… enfim se encaixava. Sira continuou, sua voz agora mais baixa, embargada.

    — Um lugar pacífico. Pequeno, calmo. Aquele homem, sua esposa e seus filhos… me acolheram. Pela primeira vez, achei que podia parar de correr. Fiz amigas. Comecei a pensar em construir algo novo. Até comecei a cogitar, por insistência delas, encontrar alguém para amar… E então… eles vieram. De novo. Os Pecadores. Eles… destruíram tudo. — disse, e sua voz se partiu por um instante. — Mataram a esposa e os filhos do homem que me acolheu. Mataram o próprio homem. Mataram… minhas únicas duas amigas.

    Leiana arregalou os olhos, completamente imóvel. Ela começou a tremer. A imagem do seu noivo morto, sua nova vida destruída, tomou conta de sua mente como uma sombra sufocante. O medo que ela sentia agora era real, quase palpável.

    Sira olhou diretamente para ela.

    — Eu entendo seu medo. Entendo sua vontade de fugir. Você ainda tem algo… algo que não quer perder. Mas não se iluda, Leiana. Eles vão atrás de você. Eles vão tomar isso de você. Do mesmo modo que tomaram tudo de mim — disse com frieza. — Você pode fugir. Pode tentar esquecer. Mas saiba… eles não vão esquecer de você.

    Leiana soltou um grito abafado e caiu de bunda no chão. Sua respiração acelerou. Estava branca como cera, os olhos arregalados em puro terror. Kevin se levantou de imediato e correu até ela.

    — Leiana! Está tudo bem… estou aqui. — disse ele, agachando-se ao lado dela e segurando seus ombros. Mas ao tocá-la, sentiu o quanto o corpo dela tremia. Estava fria como gelo.

    — Não tem escapatória… — balbuciou ela, com a voz quebrada, enquanto lágrimas rolavam por seu rosto. — Eles vão me achar… eles vão destruir tudo…

    Kevin fechou os olhos com força, frustrado, impotente.

    — Se você quer ter alguma chance… alguma esperança de viver uma vida verdadeira — disse Sira por fim, com firmeza — então precisa lutar. Precisa exterminá-los até o último. Só assim poderá encontrar paz.

    O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Não havia mais palavras que pudessem aliviar o peso daquele momento. A verdade havia sido dita.

    E ela era dura. Cruel.

    Como o mundo em que viviam.

    Todos estavam abatidos. Mesmo aqueles que tentavam manter a postura, como Kevin e Saito, estavam visivelmente tomados pela tensão e pelo medo. Leiana continuava no chão, os ombros sacudindo com o choro contido.

    Sira encostou-se de novo à parede, cruzando os braços, mas agora seu olhar não era mais frio.

    Era cansado.

    Porque ninguém ali saía ileso.

    — Vocês podem me entregar… — balbuciou Little Girl, a voz trêmula, quase se perdendo entre as sombras do silêncio.

    — Para com isso, não é hora pra esse tipo de besteira… — resmungou Saito, o cenho franzido, tentando manter a calma, mas era visível sua irritação.

    — Seria a melhor solução, não é?! — gritou ela, levantando-se de súbito. O desespero em seu rosto era evidente, seus olhos marejados fixos nos demais.

    — Melhor solução onde, garota?! Você quer mesmo voltar pras mãos daqueles lunáticos? Já falamos sobre isso! — retrucou Saito, a voz erguida, misto de raiva e medo.

    — Mas ainda assim… é a solução mais viável… — sussurrou ela, cabisbaixa, as palavras pesando como chumbo.

    O olhar de Saito escureceu. Ele a entendia. Sabia que ela se sentia um fardo, que a culpa a consumia como uma praga silenciosa. Mas depois de tudo, ele se recusava a deixá-la para trás. Não agora.

    Um silêncio pesado pairou sobre o grupo até ser rompido por uma voz inesperadamente firme.

    — Na verdade… podemos usar isso. — disse Sira, olhando para o fogo da fogueira como se traçasse um plano dentro dele.

    Kevin, ainda tentando se recompor do impacto emocional, ergueu os olhos.

    — Como assim?

    — No dia marcado, podemos fingir que vamos entregá-la — começou Sira, com a voz controlada. — Preparar uma armadilha. Quando eles vierem pegá-la, caímos sobre eles com tudo o que temos. Se conseguirmos capturar alguns membros do grupo, talvez consigamos obter informações valiosas.

    Kevin franziu a testa.

    — Mas… mesmo os pecadores capturados no passado nunca falaram nada, nem sob tortura. Já ouvimos isso diversas vezes…

    — Sim — disse Sira, olhando agora para todos. — Mas eu tenho outro plano. Ao invés de forçá-los a falar… vamos ler suas mentes.

    A proposta pairou no ar como um trovão silencioso. Os outros trocaram olhares desconfiados e intrigados.

    — Como assim? — perguntou Saito, curioso, mas atento.

    Sira se ajeitou, cruzando os braços, e explicou:

    — Sabia que precisaria de algo além da força bruta pra entender essa organização maldita, então comecei a procurar uma solução. Foi assim que cheguei até um Abençoado — alguém que possui uma habilidade única: a habilidade de acessar memórias alheias apenas pelo toque.

    O interesse no grupo cresceu visivelmente. 

    — E você tem contato com essa pessoa?

    — Sim. O nome dele é Julgor Beldert. Ele é um cavaleiro sagrado novato do reino de Camelot. Descobri sua existência através de rumores discretos. Fui até Camelot, falei com ele pessoalmente. Ele aceitou me ajudar… mas com uma condição.

    Little Girl franziu as sobrancelhas.

    — Que tipo de condição?

    Sira hesitou por um instante. Seus olhos se perderam nas chamas da fogueira, como se buscassem coragem nas labaredas.

    — Ele quer que eu mate alguém pra ele.

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