Capítulo 100 - O Começo do Massacre
O passeio de Tiko prosseguiu em silêncio, mesmo após sua separação de Kurin. Contudo, as palavras daquele homem ainda pesavam em sua mente, ressoando como um eco incômodo que não queria desaparecer. Ele tentava afastá-las, mas a tensão persistia, uma presença incômoda sob sua máscara.
Sira, a jovem que o acompanhava, parecia inquieta. Talvez tivesse percebido sua rigidez, mesmo que seu rosto estivesse oculto. Ela não dizia nada, mas sua postura hesitante indicava que algo a incomodava.
Os dois caminhavam sobre uma ponte de madeira que se arqueava sobre um pequeno rio artificial. Não era um curso d’água natural, mas sim uma construção para tornar o lugar mais agradável. A corrente era rasa, mal alcançaria o joelho de uma criança pequena, mas seu reflexo cristalino cintilava sob a luz da lua.
Vários casais estavam ali, conversando baixinho, rindo ou trocando carícias discretas. Tiko observou-os por um momento, seu olhar pairando sobre os gestos de ternura que pareciam tão naturais entre eles. Quando desviou a atenção, percebeu que Sira também os observava.
No instante em que seus olhos se encontraram, ela virou o rosto bruscamente. O rubor em suas bochechas ficou evidente.
— Você está bem? — perguntou Tiko, sem entender o motivo de sua reação.
— S-Sim… estou bem. Não há por que se preocupar… — murmurou Sira, desviando o olhar e apoiando as mãos na grade de madeira da ponte.
O vento soprou levemente, agitando os cabelos dela. Havia algo curioso em sua inquietação, mas Tiko não insistiu.
O silêncio se estendeu por alguns instantes até que, de repente, Sira pigarreou e apontou para a espada na cintura dele.
— E-essa sua espada… você é um espadachim ou algo do tipo? — Sua voz carregava uma hesitação evidente.
Tiko baixou os olhos para sua arma.
— Hm… não sou exatamente um espadachim. — Passou a mão pelo cabo, sentindo a textura familiar da bainha. — Uso para me defender, mas não sou muito habilidoso com ela. Nunca foi meu forte.
Sira o fitou com um olhar contemplativo. Ela reconhecia esse sentimento. Lembrava-se de quando seu avô tentara ensiná-la a arte da espada. Na época, por mais que tentasse, nunca conseguiu se adaptar. Seu corpo rejeitava o peso, o equilíbrio e o ritmo da lâmina reta. Apenas quando experimentou uma katana sentiu-se confortável.
— Por que não tenta outra arma? — sugeriu, animando-se um pouco. — Há tantas por aí… arcos, machados… talvez foices ou lanças!
Era um assunto que a empolgava, apesar da timidez.
Tiko levou uma mão ao queixo, ponderando.
— Trocar de arma… hm… — murmurou. — Nunca pensei nisso. Acho que, como todos ao meu redor usavam espadas, acabei pegando uma também.
No reino dos elfos, sua terra natal, qualquer guerreiro digno desse título empunhava uma espada. Era uma tradição, quase um dogma. Outras armas eram vistas com desdém — adagas, por exemplo, eram consideradas armas indignas, sujas, pois eram a escolha preferida dos elfos negros.
Arcos eram pouco utilizados, apesar da famosa visão aguçada dos elfos. Aqueles que realmente tinham talento com essa arma eram selecionados para uma divisão especial de cavaleiros sagrados. Apenas os mais excepcionais eram aceitos. Qualquer elfo que fosse apenas “bom” no arco era sumariamente rejeitado.
Ao lembrar disso, a imagem de Jack surgiu em sua mente. Seu irmão.
Se houvesse alguém que pudesse ser aceito entre os cavaleiros sagrados, esse alguém era Jack. Desde pequeno, sua mira era impecável. Ele até sonhara em integrar essa elite um dia… mas isso nunca aconteceu.
— Talvez eu experimente outras armas algum dia… — disse Tiko, voltando ao presente. Ele lançou um olhar para Sira e inclinou a cabeça levemente. — Obrigado pelo conselho.
— N-Nada… não foi nada demais… — respondeu Sira rapidamente, balançando as mãos e desviando o olhar, as bochechas ainda tingidas de vermelho.
Tiko a observou por um instante, depois voltou o olhar para a água corrente abaixo deles. O rio refletia a luz dourada do céu, e a brisa noturna começava a soprar suavemente.
Ele não sabia dizer por quê, mas a conversa com Sira havia lhe dado uma nova perspectiva. Talvez… talvez estivesse na hora de olhar além da espada.
Uma luz intensa irrompeu do extremo leste do vilarejo, expandindo-se como uma estrela nascendo em meio às sombras. Em um instante, o brilho cegante foi seguido por um estrondo avassalador.
O impacto sacudiu o ar, e então, como chuva macabra, pedaços de carne e ossos despedaçados começaram a despencar no lago à frente de Tiko e Sira. O cheiro acre de carne queimada se espalhou pela brisa noturna.
A ponte onde estavam tremeu violentamente sob seus pés, as tábuas rangendo como se fossem se partir. Tiko firmou-se, segurando a grade de madeira enquanto seu olhar se voltava para a origem da explosão.
O que antes era um pacífico vilarejo agora se tornara um inferno em chamas. As casas, antes decoradas para a celebração do festival, estavam incendiadas, suas estruturas rangendo e desmoronando. Pessoas gritavam, suas vozes entrelaçando-se em um coro desesperado de pavor. O ar antes carregado pelo aroma das festividades agora fedia a fuligem e sangue.
— O que… o que está acontecendo? — murmurou Sira, a voz trêmula e os olhos arregalados fixos na cena de destruição.
— Isso… é um ataque? — balbuciou Tiko, incapaz de aceitar a brutalidade da cena.
A resposta veio antes mesmo que ele pudesse compreender plenamente a situação. Homens surgiram das sombras, suas vestes longas e encapuzadas tingidas em tons de roxo. Eles avançavam com lâminas sinuosas que reluziam sob a luz do incêndio, cortando aqueles que tentavam fugir. As espadas onduladas rasgavam carne e os gritos dos inocentes se misturavam ao crepitar das chamas.
— Pecadores! São os Pecadores! — alguém gritou no meio da multidão em pânico.
A menção daquele nome causou um calafrio em Tiko, mas foi Sira quem reagiu de forma mais intensa. Seus lábios tremiam, sua mão cobriu a boca e seus olhos pareciam vazios, como se um pesadelo há muito enterrado tivesse despertado.
— Não… não pode ser… Pecadores… não… de novo, não… — murmurou ela, o corpo oscilando como se fosse desabar ali mesmo.
Tiko ouviu suas palavras, mas não teve tempo de reagir. O caos se espalhava rápido, o vilarejo que momentos antes transbordava alegria e danças agora era um campo de massacre.
— De novo…? — ele repetiu para si mesmo, sua mente se enchendo de dúvidas.
Sira cerrou os punhos, o olhar tremendo entre medo e raiva.
— Malditos…! O que acham que estão—
— Sira! — A voz firme de Tiko a trouxe de volta à realidade. Ele também sentia a fúria crescendo dentro de si, mas agora não era o momento para isso. O aviso de Kurin ecoou em sua mente. Era disso que ele falava? O “show” que mudaria tudo?
A ficha caiu como uma lâmina fria contra sua pele. Se ficassem ali, morreriam.
— Vá para casa agora! Tire sua família daqui! — ordenou, segurando o ombro da garota. — É um ataque dos Pecadores… e dos grandes. Eles vão massacrar esse vilarejo até não sobrar ninguém!
Os olhos de Sira vacilaram apenas por um momento, mas então ela assentiu com firmeza. O medo ainda estava ali, mas agora era ofuscado pela urgência.
— Certo! Vou agora mesmo! — disse, girando nos calcanhares e disparando pela ponte.
Tiko não perdeu tempo. Seu próprio destino já estava traçado — precisava seguir o que Kurin havia dito. Correu em direção à sua casa, desviando das pessoas que fugiam em desespero, ignorando os gritos, o cheiro de sangue e os corpos que caíam pelo caminho.
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