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    Tiko finalmente chegou à entrada de sua casa. O cheiro acre de sangue pairava no ar, um aviso silencioso do horror que já havia se desenrolado ali. O caminho até ali não fora difícil—ele passou por alguns pecadores pelo vilarejo, mas nenhum deles sequer tentou atacá-lo. 

    Era estranho, e ele sabia que só havia uma explicação para aquilo: Kurin. Seus passos se tornaram pesados ao avistar a figura sentada em frente à porta de sua casa. A luz bruxuleante das tochas espalhadas pelo vilarejo iluminava o semblante daquele lunático, seu sorriso largo e olhos brilhando em pura excitação. Mas o que fez o coração de Tiko apertar foi a visão ao lado dele.

    O corpo de uma jovem menina jazia sobre o chão de terra batida, banhado em sangue. A mesma menina que ele tinha visto mais cedo com Sira—uma de suas amigas. Agora, seus olhos opacos fitavam o vazio, sua pequena boca entreaberta em um último grito de agonia.

    Tiko cerrou os dentes, sentindo uma raiva crescente subir-lhe pela garganta. Seu corpo tremia não apenas de fúria, mas de desgosto.

    — O que é isso tudo… Kurin…? — sua voz saiu carregada, trêmula, repleta de sentimentos conflitantes. Raiva, tristeza, incredulidade. 

    Kurin ergueu o olhar lentamente, e um sorriso preguiçoso se desenhou em seu rosto enquanto passava a lâmina longa e ondulada da espada pelo tecido de sua própria roupa, limpando o sangue fresco que ainda escorria da ponta.

    — Finalmente… — sua voz era arrastada, despreocupada, como se estivesse entediado. — Caramba, demorou pra caralho, hein, Tiko?

    O tom casual, a forma como ele falava como se nada daquilo fosse importante… fez algo dentro de Tiko explodir.

    — Pra que tudo isso?! — rugiu, balançando os braços violentamente. O calor da revolta queimava sua pele. — Por que atacar este lugar pacífico?! Por que matar essas pessoas inocentes?! Elas não fizeram nada para merecer esse sofrimento!

    Kurin se levantou lentamente, alongando os ombros como se estivesse espreguiçando após uma longa espera. Seus olhos se fixaram nos de Tiko, e então, ele sorriu. Um sorriso torto, largo demais, completamente insano. Um sorriso que Tiko já tinha visto antes, inúmeras vezes, mas que agora parecia ainda mais repulsivo.

    — Motivo? — Kurin inclinou a cabeça, como se realmente estivesse considerando a pergunta, e então jogou a cabeça para trás, rindo. — Hahaha! E precisa de motivo pra querer uma diversãozinha?

    — Diversão…? — Tiko repetiu, sentindo a palavra ressoar de forma distorcida dentro de si.

    — Porra! Claro! — Kurin abriu os braços em um gesto exagerado. — Alguns se sentem felizes quando comem, outros quando transam… e eu, bom… eu fico feliz quando vejo pessoas mais fracas sofrendo. Quando vejo o brilho de esperança morrer bem devagarzinho dentro dos olhos delas… antes de morrerem de verdade.

    Ele virou a cabeça, olhando para a menina caída ao seu lado. Com uma expressão extasiada, passou a língua pelos lábios e coçou as bochechas com força, como se revivesse o momento em sua mente.

    — Ahh… foi uma delícia… — sua voz ganhou um tom quase sonhador. — Os gritos dessa aqui foram tão bons…! É incrível ouvir o som de uma pessoa que nunca sofreu na vida sentindo uma dor insuportável pela primeira vez… sentindo o desespero a engolir inteirinha…

    A maneira como ele falava, a forma como se deliciava com a tortura alheia… era nojento. Terrivelmente nojento.

    Tiko sentiu um arrepio subir por sua espinha. Não podia ser normal. O prazer estampado em seu rosto, o brilho febril nos olhos… tudo nele exalava uma depravação monstruosa.

    E Tiko soube, naquele instante, que não havia diálogo, não havia redenção. Kurin precisava morrer.

    Tiko deu um passo para trás, os olhos arregalados, a respiração entrecortada.

    — Seu lunático… você… você é um doente… todos vocês pecadores malditos… um bando de doentes… — sua voz vacilou, misturando horror e fúria.

    Kurin inclinou a cabeça, como se estivesse intrigado, mas um sorriso zombeteiro surgiu em seus lábios.

    — Hm? Como assim “vocês”? Você é um de nós, Tiko… hahaha… ah, não, espera… é verdade — ele levou o dedo indicador ao queixo, como uma criança fingindo pensar profundamente. — Ainda falta concluir o seu batismo.

    — Eu nunca faria parte disso! Acha que sou louco igual a vocês?! — Tiko gritou, cerrando os punhos.

    Foi nesse instante que sentiu. O peso dos olhares. O som abafado de passos na terra úmida. O frio rastejante da percepção tardia.

    Ele estava cercado.

    Das sombras, emergiram mais de vinte figuras encapuzadas em mantos roxos, espalhando-se em um círculo perfeito ao redor dele e Kurin. Os rostos ocultos, os olhos brilhando no escuro como predadores espreitando uma presa indefesa.

    Kurin caminhou despreocupadamente até um dos homens de manto roxo, que se adiantou e lhe entregou uma peça de vestuário. Com gestos calmos, quase cerimoniais, ele vestiu o manto sobre o corpo, ajeitando-o como um ator que se prepara para seu grande momento no palco.

    — Ahhh… agora sim. Odeio ter que fingir ser outra pessoa… — suspirou, rindo como se tudo aquilo fosse um mero incômodo passageiro.

    Tiko não desviou o olhar. Havia algo no peito dele que ardia como ferro em brasa.

    — Vocês vão destruir o vilarejo…? — perguntou, a voz embargada pela raiva e pela desesperança.

    Kurin riu. Não um riso comum, mas um som que carregava uma perversidade refinada, um prazer mórbido que gelava os ossos.

    — Nosso objetivo é muito maior do que isso… mas, sim, acertou em partes. Alguns aqui têm missões mais nobres… outros — ele lançou um olhar significativo para os encapuzados — só querem matar porque gostam disso mesmo.

    Os pecadores responderam com risadas baixas e estranhas, como hienas ao redor de uma carcaça fresca. Seus ombros tremiam, alguns bateram palmas em um ritmo irregular. O ar parecia sufocante.

    Então, Kurin ergueu uma das mãos e o coro de risos cessou abruptamente.

    — Certo, certo. Agora está na hora do seu batismo, Tiko.

    Os olhos do rapaz se estreitaram.

    — Do que você está falando…?

    Kurin não respondeu. Em vez disso, virou-se para os pecadores próximos.

    — Conseguiram o que pedi?

    Dois encapuzados avançaram, arrastando consigo figuras trêmulas.

    Tiko sentiu o estômago revirar ao vê-los.

    Uma mulher de cabelos desgrenhados segurava um bebê contra o peito, os olhos marejados em desespero. Ao seu lado, um homem segurava duas crianças, um menino e uma menina, ambos incapazes de conter as lágrimas.

    — Eles estavam tentando fugir pela passagem do norte. Conseguimos interceptá-los facilmente. Como pediu, crianças e mulheres. — A voz do pecador era fria, quase monótona, como se estivesse apenas informando sobre um carregamento de mercadorias.

    Kurin sorriu, satisfeito.

    — Ótimo, ótimo…

    Os civis tremiam. A mulher apertou o bebê com mais força contra si.

    — Por favor…! Por favor! Deixem meus filhos irem embora! — sua voz saiu entrecortada, implorando, rasgando o silêncio da noite como uma lâmina cega.

    As crianças soluçavam. O bebê berrava com uma força inesperada, como se soubesse que aquele podia ser o último som que emitiria neste mundo.

    O coração de Tiko pulsava violentamente dentro do peito. Ele sentia a garganta seca. O suor frio escorria pela nuca.

    E então, ele viu.

    Kurin olhou para os reféns não como pessoas, mas como brinquedos. Como meros instrumentos para um jogo doentio que apenas ele compreendia. Seus olhos brilharam com uma fome insaciável.

    Era sufocante. Era asfixiante.

    Tiko não sabia se conseguiria respirar novamente.

    O riso de Kurin ecoou como um trovão abafado na noite silenciosa. Ele se aproximou da mulher ajoelhada, sua sombra projetada sobre ela como um presságio de morte.

    — Ohhh, uma mãe tão devotada. Quanta dedicação… Eu nunca tive algo assim. Sabe, sinto inveja dessas crianças. — Ele suspirou teatralmente, inclinando a cabeça de lado. — Mas, te contar um segredo… matar minha própria mãe foi uma experiência libertadora. Uma delícia, pra falar a verdade. Qual seu nome? — Ele soltou uma gargalhada rouca e curta, como se o próprio pensamento o divertisse além do normal.

    A mulher soluçava, seus lábios trêmulos abrindo-se em súplicas desesperadas. Segurava o bebê com tanta força que seus braços pareciam tremer pelo esforço.

    — P-por favor… meus filhos… — sua voz falhava entre os soluços, um som tão frágil que poderia se quebrar com o vento.

    Kurin inclinou-se ligeiramente, os olhos semicerrados em um brilho cruel.

    — Hm? Não foi isso que perguntei, senhorita. Qual é o seu nome?

    — P-Pursena… — ela balbuciou, a voz embargada, o peito arfando. — Por favor… deixe-os ir… Eu não… eu não preciso ir, mas meus filhos… por favor…

    — Que cena tocante. — Kurin sorriu, as palavras saindo quase num suspiro satisfeito. Seus dedos roçaram o queixo, pensativo, e então ele se virou abruptamente para Tiko, que observava tudo de punhos cerrados.

    — Kurin… — Tiko murmurou, sentindo a garganta seca. — Por favor… deixe essas pessoas irem. Não os mate…

    O sorriso de Kurin se alargou. Ele se virou para o rapaz como um predador que avistava uma presa especialmente interessante.

    — Matar?! Eu?! — Ele levou a mão ao peito, fingindo indignação. — Não, não, não, não, não, Tiko. Você me magoa com essa suposição. Eu não vou matar ninguém…

    Houve uma pausa densa, carregada de expectativa.

    — Você que vai.

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