Capítulo 103 - Batismo
O baque da lâmina contra o chão pareceu ressoar nos ossos de Tiko. A espada ondulada de Kurin jazia diante de seus pés, o metal reluzindo à luz das chamas que consumiam o vilarejo.
Os pecadores riram, um riso baixo e sibilante, enquanto forçavam a mulher e as crianças a deitarem-se no chão. Seus gritos em prantos eram como facas cortando a noite, mesclando-se ao crepitar do fogo e ao cheiro acre de sangue e cinzas.
Kurin avançou lentamente até Tiko, pousando uma mão em seu ombro com uma leveza enganadora.
— Está na hora do seu batismo, Tiko. Pegue essa espada… — Ele baixou o tom, sua voz deslizando como veneno nos ouvidos do rapaz. — …e mate a mulher e o bebê dela.
O silêncio que se seguiu foi mais ensurdecedor que qualquer grito. Os olhos arregalados de Pursena encontraram os de Tiko, e nele refletiam-se a súplica muda de alguém que já sabia o destino que a aguardava.
O suor frio escorria pela têmpora de Tiko. Seu coração martelava contra o peito, os dedos tremendo sobre a bainha de sua própria espada. Mas aquela que estava diante dele… aquela espada que brilhava como uma serpente prestes a dar o bote…
Ele sentiu seu corpo hesitar. Um único instante de dúvida.
E então Kurin riu novamente, o som cortando o ar como o fio de uma lâmina.
Os olhos arregalados de Tiko refletiam o horror da situação. Ele sentia o olhar dos outros sobre si, julgando, esperando. Ele tremia. Um calafrio percorreu sua espinha, não apenas pelo medo, mas pela verdade cruel que lhe era imposta: não havia escapatória. Kurin, aquele homem insano, continuava a sorrir, o brilho do fogo iluminando seu rosto em um jogo de sombras dançantes, tornando-o ainda mais aterrorizante.
— Eu não vou fazer isso… — murmurou Tiko, sua voz quase engolida pelo crepitar das chamas e os soluços das vítimas caídas.
— Ahhh… Sério isso? — Kurin inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse decepcionado. Com um movimento rápido e preciso, ele arrancou a máscara do rosto de Tiko e a jogou no fogo.
A máscara era frágil diante das chamas vorazes. Em segundos, o disfarce foi reduzido a cinzas, e o que restou foi um elfo negro, nu diante da verdade brutal da realidade.
Tiko se viu exposto, vulnerável, e o desespero brilhou em seus olhos como uma fera encurralada.
Kurin não conteve um sorriso largo e maligno.
— Eu não vou fazer isso! — gritou Tiko, sua voz carregada de medo e revolta. — Não vou matar pessoas inocentes para o seu divertimento!
Kurin suspirou, teatralmente entediado.
— Ahhh… beleza então. Eu os mato. E depois mato você. — Ele coçou a cabeça, como se fosse a decisão mais banal do mundo.
Tiko engoliu seco. Um frio tomou conta de seu corpo.
— O quê…? — murmurou ele, incapaz de acreditar.
Kurin deu um passo à frente, aproximando-se como um predador que se diverte com sua presa.
— Que foi? Achou que a gente não te mataria? Se acha especial, Tiko? — Ele riu, inclinando-se para encarar o elfo negro nos olhos. — Acha que tem algum motivo grandioso por trás disso? Hahaha! Não existe motivo! Eu faço isso porque eu gosto! Porque é divertido! Porque ver o horror estampado no rosto de alguém me dá um prazer que você nunca vai entender!
Kurin continuou:
— E quer saber? Te colocar nesse vilarejo meses antes foi o verdadeiro toque de gênio. Deixar você viver entre eles, te fazer acreditar que havia algo de bom aqui, que essas pessoas são como quaisquer outros… foi tudo parte do jogo, Tiko. E agora, olha só você! Tremendo, indeciso, sofrendo! Eu me pergunto, o que você vai escolher?
O riso de Kurin explodiu na noite. Os outros pecadores riram junto, suas vozes misturando-se como um coro macabro.
Tiko sentia o coração martelando no peito. O medo da morte era um peso esmagador, uma garra de ferro que se fechava sobre sua garganta. Mas pior que o medo da morte era a imagem de GolbZedh.
O homem que lhe dera tudo. O homem que confiara sua vida a ele. O homem que, neste exato momento, jazia em uma cela fria, pagando por um crime que não cometera, esperando que Tiko o libertasse.
Se ele morresse aqui, tudo estaria acabado. GolbZedh passaria o resto da vida apodrecendo atrás das grades. Sua promessa se esvairia como sua própria vida.
— Pegue essa espada, Tiko. Mate a mulher e o bebê dela.
A ordem foi proferida como se fosse algo trivial, sem peso, sem significado. Mas para Tiko, aquele momento era um abismo sem fim. Uma escolha que definiria não apenas sua vida, mas quem ele era.
Seu corpo tremia. Seus olhos estavam fixos na lâmina. A vida de inocentes e sua própria sobrevivência estavam separadas apenas por um ato de violência.
Ele engoliu em seco.
O que ele faria?
— Ah, que saco… — Kurin coçou o ouvido com desdém, como se a situação fosse apenas um incômodo passageiro. — Beleza então, já que você tá dificultando as coisas, vou contar de dez até zero. Se até lá você não matar a mulher e o bebê, eu mato os dois… e depois mato você.
Ele começou a contagem, sua voz carregada com uma calma cruel.
— Dez.
Tiko arregalou os olhos, girando a cabeça em direção a Kurin, como se de repente a gravidade tivesse se tornado uma sentença de morte.
Ele viu o homem se mover com passos preguiçosos até um dos pecadores, pegar sua espada ondulada e voltar, parando ao lado da mulher. Ela tremia, segurando o bebê com tanta força que suas juntas ficaram brancas.
— Nove, oito, sete, seis…
O tempo se encurtava, mas para Tiko, cada número parecia arrastar-se por uma eternidade, afundando seu peito num peso que esmagava sua razão. Suas pernas estavam fracas, sua respiração, curta. Fugir? Não. Era impossível. Os pecadores eram muitos e mais fortes. Lutar? Não havia chance. Ele morreria antes mesmo de dar um passo. O que fazer? O que fazer?!
— Cinco, quatro…
Tiko avançou e pegou a espada do chão. O metal era frio em suas mãos suadas, e sua lâmina distorcida parecia vibrar, como se estivesse ansiosa pelo sangue que deveria derramar. Ele avançou, rápido, mas seus pés travaram. A lâmina parou no ar, hesitante. Seus braços tremiam. Kurin também parou a contagem.
O silêncio durou apenas um segundo.
O rosto de Kurin se aproximou de seu ouvido, e um sussurro, baixo como um veneno, escorreu por sua mente como uma maldição.
— Vai, anda. Mata, mata logo, porra. Quer morrer, Tiko? Quer partir desse mundo sem ter feito nada? Você acha que alguém sentiria sua falta? Não se iluda. Ninguém se importa. Você vai ser esquecido como o nada que sempre foi…
Tiko fechou os olhos com força, tentando afastar as palavras, mas elas se enroscavam como espinhos em sua mente.
— E não pense que vai ser rápido. Não sou tão gentil assim… — continuou Kurin, sua voz mergulhando numa promessa macabra. — Eu vou cortar seus tendões, te deixar sem movimentos, quebrar seus ossos um por um. Vou te fazer implorar para morrer. Mas eu não vou matar você de imediato. Não. Você vai sofrer por dias, rastejando como um verme, até que eu decida que não me divirto mais com sua dor.
A espada de Tiko oscilou no ar.
— Então eu te pergunto de novo, Tiko. Quer morrer?
As lágrimas escorreram. Suas mãos tremeram. A lâmina foi erguida, sua sombra pairando sobre a mulher que soluçava, protegendo o bebê com o próprio corpo. Atrás dela, as crianças gritavam, implorando para que ele parasse, para que não fizesse aquilo.
Mas Tiko sabia.
Não havia escapatória.
E o golpe, se desferido, mataria os dois em um único corte.
Tiko fechou os olhos. Sua mente gritava em desespero, cada fibra de seu ser implorava para que sua mão parasse, para que seu corpo recuasse. Mas ele sabia. Sabia que não havia escolha. O medo da morte o consumia, corroendo sua vontade, reduzindo-o a um espectro do que fora. E então, desistindo de tudo o que era, ele baixou a lâmina.
O golpe foi limpo, rápido. A espada rasgou o ar e encontrou a carne sem resistência. O som seco do corte foi abafado pelos gritos que cessaram abruptamente. O sangue jorrou quente, tingindo suas mãos, seu rosto, o chão.
Os corpos tombaram como marionetes sem fio. Ele sentiu o cheiro metálico no ar, o calor do sangue escorrendo por seus dedos. Duas vidas arrancadas, duas almas ceifadas… por suas mãos.
Ele caiu de joelhos. O silêncio foi quebrado por um som que o fez encolher-se ainda mais: aplausos. Primeiro tímidos, depois intensos, até que o coro de assobios e risadas preenchesse a noite. Eles comemoravam. Como se ele tivesse feito algo grandioso, como se fosse um deles.
Ele era um monstro.
O mundo girava. A visão embaçada pelas lágrimas, a mente despedaçada pelo horror do que fizera.
As vozes se misturavam em um zumbido distante. As batidas do próprio coração ressoavam como tambores de guerra em seus ouvidos. E então veio o pranto.
Primeiro um soluço baixo, depois uma torrente avassaladora. Ele chorou, gritou, berrou. Agarrou-se ao próprio crânio, unhas cravando-se na nuca como se quisesse arrancar aquele momento de sua mente, apagar o que havia feito.
— Me desculpa… me desculpa… me desculpa…
Sua voz se dissolveu em puro desespero. O sangue ensopava seu cabelo prateado, tornando-o uma moldura carmesim para um rosto transfigurado pelo horror.
Kurin permaneceu ao seu lado, observando em silêncio. Os pecadores continuavam celebrando, mas ele… ele não sorria. Seu olhar frio fitava o homem destroçado a seus pés. Este era Tiko? O assassino de Richard Raves? Era esta a criatura que havia escapado, que tinha sobrevivido até agora? Que patético. Não havia força ali. Apenas um homem quebrado, reduzido a um trapo miserável.
Um riso baixinho escapou dos lábios de Kurin. Ele ergueu a perna e pisou sem hesitação sobre os corpos que Tiko acabara de ceifar. Com um puxão violento, agarrou-o pelos cabelos, levantando seu rosto sujo de sangue e lágrimas.
— Olhe para mim — ordenou, a voz macia, quase gentil. Tiko não resistiu.
Kurin sorriu, um brilho perverso dançando em seus olhos.
— Muito bem… de agora em diante… você é um pe-ca-dor.
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