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    A jornada até o vilarejo de Icca consumiu quase duas horas, mas o tempo pareceu se estender como uma sombra inquieta sobre a comitiva. Quando finalmente se aproximaram, detiveram-se na orla da floresta, ocultos entre troncos robustos e copas cerradas. O ar carregava um cheiro pesado de fumaça e cinzas, vestígios de um destino cruel que se abatia sobre a vila.

    Douglas permanecia imóvel, braços cruzados, os olhos varrendo o vilarejo parcialmente encoberto pela neblina da noite. Sua mente fervilhava de pensamentos sombrios. Um ataque dessa magnitude… nunca antes algo assim ocorrera contra Icca. Aquilo não era apenas uma afronta a um vilarejo isolado. Era um prenúncio de um caos maior, um sinal de que o equilíbrio do continente estava começando a ruir.

    Ainda mais inquietante era o fato de que, não muito tempo antes, o único paladino dos cavaleiros sagrados do reino dos elfos havia sido assassinado. E agora isso. Douglas sentia um gosto amargo na boca. O destino parecia estar tecendo um padrão de destruição que ninguém conseguia prever.

    Ele inspirou profundamente e voltou-se para seus homens, os guerreiros da Ponto Escuro, que aguardavam suas ordens com olhares firmes, ainda que alguns demonstrassem resquícios de dúvida.

    — Todos sabem o que precisa ser feito. — Sua voz soou como um trovão abafado, penetrando a tensão no ar. — Não temos números suficientes para um confronto direto, mas não estamos aqui para guerrear. Nosso objetivo é resgatar os aldeões e repelir os invasores.

    Os comandantes de equipe assentiram, os olhos fixos em seu líder.

    — Cada um de vocês levará sua tropa para um ponto diferente do vilarejo. Aliem-se à guarda local e a qualquer um que ainda tenha forças para lutar. Elimine o máximo de inimigos possível e protejam os civis, evacuando-os para fora dos muros.

    — Entendido! — responderam em uníssono.

    — Vocês têm dez minutos para se prepararem. Movam-se.

    A tensão espalhou-se como uma corrente elétrica entre os soldados, enquanto começavam a afiar lâminas, conferir flechas e reorganizar formações. Douglas, no entanto, manteve-se firme, virando-se para o vulto ágil que descia silenciosamente de uma das árvores mais altas.

    Turk aterrissou sem fazer ruído, mas seu rosto estava pálido, gotas de suor escorrendo pela testa. O que quer que tivesse visto no vilarejo, fora o bastante para estremecer até mesmo alguém como ele.

    — O que viu lá dentro? — Berco perguntou, impaciente.

    Turk levantou a cabeça, e sua expressão tornou-se uma máscara de pura aversão. Seus olhos brilhavam de um ódio silencioso.

    — Pecadores… — murmurou, como se a própria palavra lhe queimasse a língua.

    Um silêncio gélido se instalou.

    — O quê?! Pecadores?! — Berco quase cuspiu as palavras.

    Douglas sentiu um nó se formar em seu estômago. Ele fechou os olhos por um breve instante, reprimindo a raiva que lhe fervia no peito.

    — Isso só pode ser brincadeira… — murmurou, sombrio.

    Alguns dos soldados empalideceram. Outros cerraram os punhos, os rostos endurecendo. Até os guerreiros mais experientes hesitaram por um breve momento. Apenas alguns, como Bruce e Shayax, pareciam indiferentes, desconhecendo por completo o peso do nome que acabara de ser proferido.

    — Pecadores? — Bruce arqueou uma sobrancelha. — Quem exatamente são?

    Foi Berco quem respondeu, sua voz carregada de asco:

    — Um bando de lunáticos. Sádicos que matam por prazer. Eles não lutam por dinheiro, nem por glória, nem por objetivos políticos. Para eles, destruição e sofrimento são um jogo.

    — Eles são fortes? — indagou Shayax, sem qualquer vestígio de preocupação.

    Douglas cruzou os braços, seu olhar frio como o aço.

    — O problema não é apenas a força deles. É o fato de que não seguem lógica alguma. Não há padrões em seus ataques, não há misericórdia, não há racionalidade. Cada um deles é um monstro disfarçado de homem.

    Turk permaneceu em silêncio, a mandíbula travada.

    Ele sabia melhor do que qualquer um ali do que os Pecadores eram capazes.

    Porque já estivera diante deles antes.

    E naquela noite, ele perdeu algo.

    Algo que nunca mais poderia recuperar.

    Turk, recostado contra o tronco de uma árvore, observava os guerreiros ao seu redor se prepararem. Seu olhar se ergueu quando sentiu os olhares atentos sobre si. Ele suspirou, ajustando a postura antes de finalmente quebrar o silêncio.

    — Os Pecadores não são tão fortes assim… — sua voz era um tom grave na noite, como o ranger de uma lâmina sendo retirada da bainha. Todos se viraram para encará-lo. — Já estive em combate com eles, e, para ser honesto, a maioria não passa de combatentes medianos, tanto em luta quanto no uso da gama. Mas isso não significa que sejam fracos. Eles simplesmente não pensam como guerreiros comuns…

    Um breve silêncio pairou antes que ele continuasse.

    — Durante uma missão, muitos deles se atirarem sobre mim sem hesitação, mesmo sabendo que seriam abatidos. Alguns se explodiram em um frenesi suicida, tentando levar outros cavaleiros sagrados com eles. E outros… bem, alguns possuíam habilidades extraordinárias. Ainda não sei o quanto eles se prepararam para esse ataque, mas sei que nós precisamos ser extremamente cautelosos.

    Douglas escutou atentamente, enquanto refletia. Havia uma gravidade nas palavras de Turk que não podia ser ignorada.

    — Como alguém que já enfrentou esses malditos, sua experiência será crucial para nós. Sei que é pedir muito, mas pode nos ajudar a combatê-los?

    Turk baixou os olhos, seus dedos crisparam-se contra o coto de seu braço decepado. Ele apertou o local onde um dia estivera sua mão, sentindo a dor fantasma da perda, não apenas de sua carne, mas de sua identidade como cavaleiro sagrado.

    — Gostaria de dizer que não… — sua voz era um sussurro raivoso. — Mas também sinto que não posso ignorar isso. Enfrentar esse grupo maldito…

    Ele ergueu os olhos, e a chama em seu olhar refletia não só a luz da fogueira, mas um ódio profundo e inextinguível.

    — Nunca irei perdoá-los por me fazerem desistir da minha carreira…

    A preparação prosseguia, mas nem todos estavam satisfeitos com suas ordens. A tensão aumentou quando uma voz se ergueu irritada no meio do grupo.

    — Como?! Ficar aqui?! — Bruce rugiu, seu tom de voz carregado de frustração.

    Ele cerrava os punhos, as garras afiadas raspando contra o couro de sua armadura. Seus músculos retesavam-se, e seus olhos brilhavam com a fome de combate. Sua nova força queimava dentro dele, clamando para ser testada.

    Douglas manteve-se firme, seu olhar cortante como o fio de uma espada embainhada.

    — Você precisa entender que sua missão é proteger a princesa, Bruce. Tirando os comandantes e seus homens, selecionei pessoalmente um grupo para escoltá-la. E você, com suas novas habilidades, é o melhor guerreiro para essa tarefa.

    Bruce rosnou baixo, desviando o olhar, seus instintos lhe dizendo para correr em direção à batalha.

    — Pensei que finalmente teria uma chance de lutar…

    Para ele, o combate era um campo de aprendizado, uma forja onde seu corpo e mente seriam refinados pelo calor da batalha. Ele queria sentir a adrenalina, testar suas capacidades, descobrir seus limites para depois superá-los.

    Douglas aproximou-se, pousando uma mão firme sobre o ombro largo do homem-lagarto.

    — Eu entendo. Sei o que você deseja. Mas você faz parte de algo maior. E esse grupo precisa de você.

    Bruce rangeu os dentes, mas assentiu, embora a chama em seu peito não se apagasse.

    Shayax e Ibri aproximaram-se, encontrando-o encostado em uma árvore, os braços cruzados e a expressão cerrada.

    — Bruce, sei que isso é frustrante, mas você foi escolhido para proteger a princesa dos humanos! — Shayax falou com animação, tentando aliviar a tensão.

    — Douglas confia em você. Isso deveria ser um motivo de orgulho. — Ibri acrescentou, sua voz mais séria.

    Bruce suspirou, erguendo os olhos para os amigos.

    — Eu sei… não estou irritado por ter sido escolhido. Estou irritado por perder uma chance de me tornar mais forte…

    Ele parou por um momento e depois olhou fixamente para os dois.

    — Cuidem-se. Não sabemos o que esses Pecadores são capazes de fazer. Voltem vivos.

    Shayax e Ibri trocaram sorrisos.

    — Pode deixar! — Shayax respondeu, com um brilho nos olhos.

    — Não é como se eu quisesse morrer. — Ibri brincou, ajeitando a arma na cintura.

    Com as tropas prontas, os comandantes montaram em seus cavalos, seus olhares fixos no horizonte de destruição. O vilarejo de Icca esperava por eles, envolto em um mar de chamas e sangue.

    E na escuridão entre as chamas, algo os esperava também.

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