Índice de Capítulo

    Sira caminhava ao lado de Sigurd, James e o restante dos soldados da Ponto Escuro. O cheiro de cinzas e sangue impregnava o ar, e o vento soprava entre os escombros, carregando consigo as últimas cinzas das vidas que ali haviam sido perdidas. 

    Enquanto avançavam com passos firmes, Sira sentia um incômodo crescente. Ela olhava de soslaio para o homem careca chamado Sigurd. Algo nele lhe parecia familiar, mas por mais que tentasse, não conseguia se lembrar de onde o conhecia. Era como uma sombra de memória, indistinta e fugidia. Preferiu afastar essa inquietação e se concentrar na tarefa diante dela.

    O grupo logo chegou ao centro do vilarejo, ou ao que restava dele. O cenário era desolador. Edifícios outrora robustos estavam reduzidos a esqueletos carbonizados, e as ruas, antes vibrantes com o burburinho de aldeões e mercadores, estavam agora cobertas por destroços e corpos inertes. 

    Um calafrio percorreu a espinha de Sira ao reconhecer o lugar. Era exatamente ali onde se separara de Tiko quando os pecadores haviam atacado. Será que ele estava bem? Ou estaria entre os destroços, mais um nome na longa lista de mortos?

    — Sira, você conhece melhor o vilarejo. Onde acha que podemos encontrar mais sobreviventes? — A voz de Sigurd rompeu seus devaneios, trazendo-a de volta à realidade brutal diante dela.

    Ela observou as ruínas à sua volta, buscando em sua memória a rota de fuga que muitos aldeões haviam tomado. Seu olhar pousou em uma trilha de destroços que se estendia por uma viela menos destruída.

    — Se há sobreviventes, é provável que estejam naquela direção — disse, apontando.

    — Por que acha isso? — perguntou Sigurd, sua expressão carregada de curiosidade e atenção.

    — Quando o ataque começou, eu estava aqui. Vi muitas pessoas correndo para lá, tentando escapar da carnificina. Se alguém conseguiu sobreviver, deve ter seguido esse mesmo caminho. — Sua voz carregava uma ponta de esperança, mas também um medo silencioso.

    Sigurd assentiu.

    — Uma boa observação. Vamos por ali, então.

    O grupo seguiu pelo caminho indicado, os olhos atentos a qualquer sinal de movimento. Enquanto caminhava, Sira não pôde deixar de pensar em Tiko. Se ele estivesse vivo, ela o encontraria. Mas se estivesse morto… 

    Cada passo a aproximava da resposta, e seu coração martelava no peito.

    Os corpos espalhados pelo chão tornavam a caminhada pesada. Eram aldeões que até dias atrás sorriam nas ruas, agora reduzidos a sombras do que haviam sido. Ela evitava olhar diretamente para os rostos, temendo encontrar um conhecido entre eles, um amigo… ou pior, um parente. A cada cadáver, um peso invisível se acumulava sobre seus ombros.

    James caminhava ao seu lado, sua expressão sombria. De repente, murmurou, quase para si mesmo:

    — Isso poderia ter sido evitado…

    Sira ergueu os olhos para ele, surpresa pelo tom pesaroso.

    — O que quer dizer com isso? Os pecadores atacaram sem aviso. Não havia nada que pudéssemos fazer… — Havia uma amargura em sua voz, mas também a necessidade de afastar qualquer culpa. A culpa deveria ser dos pecadores, não de mais ninguém.

    James hesitou, depois suspirou.

    — Não é só isso…

    Sigurd, sempre atento, percebeu a hesitação do jovem e se aproximou.

    — James, o que está tentando dizer? — sua voz era firme, mas sem julgamento.

    James passou a mão pelos cabelos, como se buscasse ordenar os pensamentos antes de falar.

    — Alguns dias atrás, um aldeão veio até nosso quartel aqui no vilarejo de Icca. Ele estava em pânico, muito alterado. Disseram-me que era um homem conhecido por todos… um farmacêutico talentoso, que no passado vendia remédios poderosos a preços baixos. Mas isso foi há muito tempo…

    Sira franziu a testa, a lembrança se acendendo em sua mente.

    — Acho que já ouvi falar dele. — Recordou-se de uma conversa que tivera com Sandra, que mencionara um homem cujo remédio milagroso salvara a vida de seu pai anos atrás. — Dizem que ele era um excelente alquimista, mas parou de fabricar remédios.

    James assentiu.

    — Exato. Antigamente, ele curava muita gente. Mas então… sua filha adoeceu. Ele tentou de tudo para curá-la, mas nada funcionava. Aos poucos, deixou de vender seus remédios e dedicou-se inteiramente à busca de uma cura para a filha. Mas… — James suspirou, olhando para os destroços ao redor. — Algo deu errado. 

    Sira sentiu um arrepio. 

    Sigurd cruzou os braços, ponderando sobre as palavras do jovem.

    — Entendo — disse Sigurd, lançando um olhar de canto para James. — Mas o que exatamente isso tem a ver? No final das contas, por que você acha que poderiam ter evitado esse ataque dos pecadores?

    James hesitou por um momento, seus olhos fixos nos corpos espalhados pelo vilarejo. Inspirou fundo antes de continuar:

    — Como eu disse, esse homem foi até um dos quartéis para denunciar uma movimentação suspeita na montanha Piry Up. Ele contou que, durante uma de suas escaladas, avistou homens trajando mantos roxos, se reunindo. Pareciam estar envolvidos em algo clandestino. No início, ninguém deu muita atenção ao relato dele. Ainda assim, o capitão achou prudente enviar uma equipe pequena para averiguar a situação. O homem foi junto, conduzindo os soldados até o local onde vira os desconhecidos. 

    Sigurd franziu o cenho, atento a cada palavra.

    — E encontraram algo?

    James balançou a cabeça lentamente.

    — Não. Nenhum sinal dos pecadores ou de qualquer outra atividade suspeita. Mas algo aconteceu… Durante a busca, o homem conseguiu encontrar uma planta extremamente rara que ele vinha procurando há tempos. 

    — Planta? — questionou Sigurd, arqueando uma sobrancelha.

    — Sim, acabei esquecendo de mencionar. Depois que sua filha adoeceu. Não importava o que fizesse, ela não melhorava. Ele gastou toda sua fortuna tentando encontrar uma cura, mas nada funcionava. Foi então que descobriu a existência dessa planta. Ela poderia ser o ingrediente essencial para salvar a filha.  Ele tentou encontrar a planta sozinho várias vezes. Subiu a montanha sete vezes, e nas sete, falhou. Mas quando voltou ao vilarejo falando sobre os pecadores e recebeu a escolta dos soldados, finalmente a encontrou. Isso não terminou bem…

    Sigurd cruzou os braços.

    — Os soldados acharam que ele estava mentindo sobre os pecadores para conseguir a escolta e explorar melhor a montanha, não foi?

    James assentiu lentamente, a frustração evidente em seu rosto.

    — Sim. No início, ninguém desconfiava dele, mas quando os soldados retornaram sem encontrar qualquer traço dos pecadores, começaram a suspeitar. Pensaram que ele inventara a história para usá-los. E como ele já estava desesperado por uma cura, não parecia tão improvável que fosse capaz de algo assim. No final, ele foi julgado e preso. 

    — Não… — murmurou Sira, com uma expressão de horror. — E a filha dele…?

    James abaixou a cabeça.

    — Ela morreu. Enquanto ele estava preso, não pôde preparar o remédio. Quando finalmente foi solto, já era tarde demais. Talvez, se tivesse conseguido criar a cura a tempo… ela ainda estivesse viva. 

    Silêncio. O vento frio soprou pelo vilarejo, levantando poeira e cinzas no ar. 

    — Então você acha que esse ataque tem ligação com o que ele viu na montanha? — perguntou Sigurd, pensativo.

    — Sim. Acredito que aqueles homens realmente estavam lá. Talvez estivessem planejando esse ataque desde então. E se tivéssemos levado a denúncia mais a sério, talvez pudéssemos ter impedido isso…

    Sigurd ficou em silêncio por alguns instantes, ponderando. Olhou ao redor, para os destroços do vilarejo, para os corpos espalhados… para os rostos cansados dos soldados que agora carregavam um peso invisível nos ombros.

    — Olha, eu não posso dizer com certeza que não há ligação, mas acho improvável — disse ele, com um tom mais sério. — Os pecadores atacam por toda parte. Eles não precisam de razões tão complexas para fazer o que fazem. Já vi isso acontecer antes, em outros lugares. O padrão é sempre o mesmo: invasão, massacre, caos. 

    — Concordo — disse Sira, atraindo os olhares dos dois. — Antes de vir para cá, já lutei contra pecadores ao lado do meu tio. Sei como eles agem… e honestamente, isso parece apenas mais uma das atrocidades que eles cometem.

    James desviou o olhar, sua expressão carregada de culpa e frustração. Ele queria acreditar que essa tragédia poderia ter sido evitada. Que, de alguma forma, poderiam ter feito algo para impedir. Mas a realidade era cruel.

    E a dor de carregar essa dúvida permaneceria com ele por muito tempo.

    — Eu também gostaria de acreditar nisso… mas… — James hesitou por um momento, como se as palavras pesassem demais em sua língua. Por fim, soltou um suspiro antes de continuar: — Quando aquele homem foi preso, fui escalado para a vigia noturna da prisão. Durante uma das noites em que estava de serviço, ele me chamou até as grades e me contou algo que não consigo esquecer. Disse que os pecadores estavam se preparando para algo… Havia caixotes, armas… “Eles realmente não pareciam estar só de passagem” — foram as palavras exatas dele.

    Sigurd e Sira trocaram olhares, seus rostos antes indiferentes agora carregavam uma sombra de preocupação. O peso das palavras de James tornou-se um fardo invisível sobre os ombros de ambos. Se o que aquele homem dissera fosse verdade… Então o ataque poderia ter sido evitado. Uma chance perdida, enterrada pela descrença daqueles que deveriam ter ouvido.

    Sira passou as mãos pelo rosto, sua expressão refletia frustração e impotência.

    — Agora eu entendo seu ponto… — murmurou, sua voz carregada de irritação. — Mas já não há mais nada que possamos fazer. O leite já foi derramado.

    — Sim, você tem razão — concordou James, ainda que sua expressão dissesse o contrário.

    O grupo seguiu em frente, seus passos pesados ecoando no vilarejo devastado. Por entre as casas carbonizadas e as ruas marcadas pelo caos, encontraram quarenta e dois sobreviventes escondidos. Civis aterrorizados, famintos, suas roupas rasgadas e seus olhos sem esperança. Um por um, foram reunindo-os, guiando-os em direção à saída da vila.

    Foi então que Sira, que caminhava alguns passos à frente, parou subitamente. Seus olhos se arregalaram e seu corpo inteiro congelou como se tivesse sido atingido por uma lâmina invisível.

    Ali, diante de uma casa de madeira escurecida pelo fogo, jazia o corpo de uma mulher. Em seus braços, um bebê sem vida. Ao lado dela, caídos na terra como bonecos quebrados, estavam os corpos de duas crianças—um menino e uma menina. Suas pequenas formas eram marcadas por cortes profundos, seus rostos desfigurados pela violência impiedosa dos pecadores.

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