Capítulo 114 - Kurin, O Pecador
Três corpos foram ceifados antes mesmo que percebessem que estavam mortos. O brilho frio da espada refletiu sob a luz pálida da lua, e quando os pecadores tombaram, seus rostos ainda contorciam-se em expressões de terror. Sigurd, um homem acostumado ao peso da batalha, estremeceu ao presenciar tamanha precisão. Aquela garota… não era alguém comum.
— Ataquem! Sejam cautelosos! Esses malditos são traiçoeiros! — bradou Sigurd, ordenando seus homens da Ponto Escuro a avançarem.
O campo de batalha foi tomado pelo clangor do aço e o estrondo dos corpos colidindo. Em um instante, um combate feroz e desesperado se instaurou, onde lâminas cortavam carne e gritos de dor se mesclavam ao frio da noite. Sigurd e James estavam entre os guerreiros, suas espadas traçando arcos mortais contra os inimigos que ousavam se aproximar.
Sira, por sua vez, movia-se como um vendaval impiedoso. Sua katana riscava o ar em cortes perfeitos, dividindo inimigos como se fossem meros fantoches de carne e ossos. Um pecador avançou num ataque suicida, e antes mesmo que sua lâmina se aproximasse, ela o partiu ao meio com um único golpe. O fluxo ativo, concedendo-lhe velocidade e reflexos sobre-humanos. Mas essa dança frenética cobrava seu preço.
Os pecadores caíam um a um diante dela, suas lâminas mal conseguindo acompanhá-la, mas nem mesmo sua habilidade impecável poderia mantê-la ilesa para sempre. Cortes rasgaram sua pele em alguns momentos, feridas pequenas, mas acumulativas. Ainda assim, ela não parava. O ódio que queimava dentro dela era o combustível que a impelia para frente. E enquanto aquele fogo ardesse, ela continuaria.
O tempo perdeu o significado. Para Sira, a batalha parecia ter durado horas, mas haviam se passado apenas dez minutos. Seu corpo, contudo, já gritava em protesto. Os músculos ardiam, a respiração tornava-se ofegante, cada movimento sentia-se mais pesado que o anterior. Mas ela não cedeu. Não podia ceder. Mesmo quando seus sentidos começaram a falhar, quando sua visão se turvou e a dor atingiu um limiar insuportável, ela forçou-se a continuar. Ela ativou o fluxo uma, duas, três vezes além de seu próprio limite. Seu corpo já não obedecia mais às regras da razão ou da sobrevivência. Foram um total de seis ativações de Fluxo.
E então, de repente, suas pernas fraquejaram.
O chão se aproximou rápido demais. Ela caiu de joelhos, os braços sem forças para sustentá-la, o gosto ferroso do sangue preenchendo sua boca. Um fio carmesim escorreu de seus lábios, misturando-se ao sangue e poeira que tingiam o solo. O mundo girava ao seu redor, a cacofonia da batalha parecendo distante. Seus olhos tentaram focar em algo, mas a escuridão começava a devorá-la.
— Sira! — A voz de James cortou o caos, um tom de desespero que raramente deixava transparecer.
Mesmo com a visão embaçada, ela o viu. Ele estava ali, sua espada repelindo um golpe que teria acabado com sua vida naquele instante. Movendo-se com a precisão do fluxo, James contra-atacou, sua lâmina abrindo o abdômen do inimigo antes que este pudesse sequer reagir. Em um piscar de olhos, ele estava ao lado dela, agachando-se.
— Eu preciso tirar você daqui! — disse ele, a urgência em sua voz evidente.
— N-não… eu ainda… preciso matá-los… — A voz de Sira mal passava de um sussurro, entrecortada pelo sangue que escorria de sua boca.
— Você vai morrer desse jeito! — James rosnou, frustrado.
— Eu não ligo…
Com um grunhido de raiva, ele a ergueu sobre o ombro. Sira quis resistir, quis ordenar que a soltasse, mas seu corpo recusava-se a obedecer. Sua consciência oscilava entre a realidade e o vazio. A batalha ainda rugia ao seu redor, mas ela não conseguia mais lutar. Tudo que restava era a exaustão esmagadora e o ódio que ardia, impotente, dentro de si.
James correu em direção a Sigurd, que acabara de atravessar a garganta de outro pecador.
— Sigurd! — gritou. — Vou tirar Sira daqui! Ela passou do limite!
Sigurd ofegava, seu corpo coberto de sangue, parte dele de seus inimigos, parte do próprio. Seus olhos pousaram sobre Sira e, por um instante, uma expressão indecifrável cruzou seu rosto. Ele assentiu lentamente.
— Vá. Nós daremos cabo do resto… e então levaremos os sobreviventes para fora do vilarejo.
James acenou, segurando Sira com mais firmeza antes de se lançar em retirada. O corpo dela estava tão fraco que, em algum momento, sua consciência se apagou por completo. O cheiro de sangue, o estrondo das espadas se chocando, tudo foi desaparecendo. O mundo se dissolveu na escuridão.
E Sira, por fim, sucumbiu ao vazio.
O campo de batalha tornava-se um cemitério silencioso. O solo, outrora apenas terra dura e poeira, agora se tingia de escarlate, refletindo o destino dos pecadores caídos. Os guerreiros da Ponto Escuro eram superiores em técnica e ferocidade; não havia dúvidas sobre a vitória. Mesmo os ataques insanos dos degenerados não os haviam detido. Poucos inimigos ainda se erguiam, e logo eles também cairiam.
Sigurd, de pé entre os corpos dos adversários derrotados, respirava com dificuldade. O suor escorria pelo rosto marcado de cicatrizes. Seus músculos pulsavam de exaustão, e a cada inspiração sentia o peso do combate.
O fluxo havia sido ativado duas vezes, e ele sabia que seu limite estava próximo. O corpo já alertava sobre os riscos de usá-lo uma terceira vez. Mas ele deveria guardar sua última reserva para uma situação desesperadora ou utilizá-la assim que uma nova ameaça surgisse? Um dilema sem resposta.
Foi nesse instante que sentiu. Algo frio, um toque sutil e letal contra sua pele.
O mundo pareceu desacelerar quando baixou o olhar e viu a lâmina atravessando seu peito. O aço perfurara sua armadura como se fosse feita de papel. A dor veio logo em seguida, uma onda cortante que se espalhou por todo o corpo. O sangue jorrou de sua boca.
— Aaaahhhggg… — Ele tombou sobre um joelho, o corpo tremendo sob o choque. Não havia ninguém próximo a ele. Nenhum inimigo, nenhum aliado. Como aquele golpe o acertara? Isso não deveria ser possível.
Uma risada baixa e cortante rasgou o ar.
— Você deveria prestar mais atenção ao seu entorno.
A atmosfera pareceu se distorcer ao seu redor, como se o ar se dobrasse para revelar a presença oculta de alguém. Então, da miragem disforme, surgiu um homem envolto em um manto roxo. Seus olhos eram de um laranja intenso, queimando como brasas, e seus cabelos desgrenhados refletiam a mesma tonalidade incandescente. Um sorriso sádico lhe curvava os lábios.
— Kurin. Esse é o meu nome. E eu sou um pecador.
Sigurd tentou erguer a espada, forçar o corpo a obedecer, mas um golpe veloz atingiu sua cabeça. O impacto ecoou como um trovão dentro de seu crânio, e ele tombou no solo. O chão de terra fria recebeu seu corpo ferido. Sua visão escureceu por um instante, a consciência oscilando como uma chama ao vento.
As dúiras entre realidade e pensamento se dissiparam enquanto ele buscava sentido naquilo. A dor e o desespero tomavam conta de sua mente, mas mesmo assim, ele tentou entender. Tentou formular uma estratégia, encontrar uma saída. Até que Kurin se aproximou ainda mais, ajoelhando-se ao seu lado.
O pecador sussurrou algo. Palavras que Sigurd jamais poderia esquecer, mesmo enquanto a dor nublava seus sentidos. O que ele ouviu fez sua respiração travar. Seu coração martelou forte em descrença. Ele precisava contar para alguém. Isso não podia morrer com ele.
Mas ele não teve a chance.
O brilho prateado de uma adaga brilhou diante de seus olhos antes de perfurar sua garganta.
O sangue jorrou, quente e sufocante. Ele se engasgou, os dedos apertando desesperadamente o ferimento na vã tentativa de conter a hemorragia. Mas já não havia esperança. A morte chegava, fria e silenciosa. Seus olhos fitaram o céu turvo enquanto sua consciência se esvaía.
Kurin ergueu-se e afastou-se. Ele não precisava testemunhar o fim. Sua obra já estava feita.
Sigurd, em seus últimos momentos, viu o inimigo desaparecer, dissolvendo-se no ar como se jamais tivesse estado ali. O mundo ao seu redor se deformava e se dobrava, tornando-se um vazio indistinguível.
E então, a escuridão o acolheu. Sigurd morreu.
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