Índice de Capítulo

    As coisas estavam complicadas para Bruce e Berco. 

    Embora a sincronia entre os dois fosse impressionante, tanto o ambiente hostil quanto o inimigo desproporcionalmente forte tornavam cada instante da batalha uma provação. 

    A floresta densa, com suas raízes traiçoeiras e árvores imensas, restringia os movimentos, exigindo de ambos um cuidado extra ao se deslocarem. O único fator que os mantinha em pé de igualdade era a bênção de Bruce: a troca instantânea de posição. E, por mais arriscado que fosse, a estratégia estava funcionando.

    Bruce desferia cortes precisos contra a criatura, e no exato momento em que ela se preparava para revidar, ele trocava de lugar com Berco. 

    O guerreiro, já antecipando o movimento, conseguia se esquivar ou bloquear o golpe com destreza. Era um jogo de ritmo e percepção, onde qualquer erro significaria a morte. Não havia sinais visíveis antes da troca – nenhum gesto, nenhum brilho mágico – apenas uma inversão abrupta das posições.

    E, ainda assim, Berco havia conseguido se acostumar com isso em um tempo surpreendentemente curto, respondendo com maestria à nova dinâmica.

    Durante dez minutos, tudo correu conforme o planejado. A criatura não conseguia acompanhar a velocidade da troca, frustrando cada tentativa de um ataque certeiro. Mas então… algo mudou.

    O monstro simplesmente parou. Seu corpo manteve-se ereto, os braços caídos ao lado do torso, a cabeça pendendo para a frente como se toda a energia tivesse sido drenada. Não havia mais sinais de agressividade, apenas uma imobilidade inquietante.

    Berco franziu o cenho, o aperto firme em seu machado demonstrando sua desconfiança. 

    — O que está acontecendo? — perguntou em voz baixa.

    Bruce não respondeu de imediato. Estava atento a cada detalhe do inimigo. 

    — Ela… parou?

    A tensão cresceu entre os dois. O silêncio da floresta parecia mais pesado agora, carregado de um perigo invisível. Berco lançou um olhar para o companheiro. 

    — Será que Douglas matou o invocador?

    Bruce ponderou a ideia. 

    — Talvez… Então quer dizer que agora a criatura está morta?

    — Não faço a mínima ideia.

    — Cortemos a cabeça do monstro. Assim garantimos que não se levantará mais.

    Berco assentiu.

    Mas antes que pudessem agir, a atmosfera se alterou drasticamente. A criatura, que antes permanecia imóvel, moveu os braços de forma estranha, contorcendo os dedos como se testasse sua própria existência. Seus joelhos dobraram, e sua cabeça ergueu-se de forma brusca, a boca se abrindo em um ângulo impossível.

    Então veio o grito.

    Um som agudo e penetrante, carregado de desespero e fúria. Era um grito que ecoava entre as árvores, um chamado que parecia buscar algo além do entendimento humano. Mas conforme os segundos passavam, a criatura percebeu que seu chamado não havia sido atendido. Algo se quebrou dentro dela. Agora, estava livre de qualquer restrição.

    Bruce sentiu um calafrio na espinha. 

    — Berco… isso não é bom.

    No mesmo instante, passos apressados ecoaram pela floresta. Douglas surgiu, correndo, o rosto carregando uma urgência que os dois nunca haviam visto antes.

    — Voltem agora para perto da carruagem! — sua voz soou como uma ordem incontestável. — Protejam a princesa com suas vidas!

    Não havia espaço para questionamentos. Bruce e Berco se viraram e começaram a correr ao lado de Douglas. A criatura atrás deles não demonstrava pressa, mas sua presença era uma sombra opressora que ameaçava devorá-los a qualquer instante.

    Ao chegarem ao descampado onde a carruagem aguardava, a visão que os recebeu foi alarmante. Turk e Sven estavam postados à frente da carruagem, protegendo a princesa Maria. O elfo permanecia impassível, segurando seu tridente com firmeza, mas Sven…

    Sven estava sem um dos braços.

    Seu rosto contorcia-se de dor enquanto pressionava o coto sangrento, o olhar selvagem buscando o inimigo. Assim que avistou o trio se aproximando, reuniu forças para se erguer do chão, apesar da exaustão evidente.

    — A situação está pior do que imaginávamos — murmurou Berco.

    Turk olhou para a floresta, onde a criatura começava a emergir da escuridão entre as árvores. 

    — A criatura está vindo! — a voz de Douglas cortou o ar como um trovão.

    Sven, ainda pressionando o coto de seu braço, arregalou os olhos ao ver o grupo chegando.

    — Hã?! Por que vieram para cá?! — sua voz estava tingida de frustração. — Vocês trouxeram essa coisa diretamente para a princesa!

    Da escuridão entre as árvores, a criatura surgiu. Seu andar era lento e irregular, seus membros se contorcendo como se tentassem romper as limitações de seu próprio corpo. Seu olhar vazio e sinistro pousou sobre o grupo. Um calafrio percorreu a espinha de todos.

    — Agora é tudo ou nada… — murmurou Douglas, levando a mão às costas. — Relíquia de Proteção! Ativar!

    De repente, uma luz azulada emanou da carruagem, como um farol em meio à tempestade. A energia se expandiu num círculo perfeito, envolvendo a todos dentro de uma esfera translúcia. O brilho pálido dançava em reflexos na pele dos guerreiros e na armadura de Douglas. A criatura recuou por um instante, como se fosse incapaz de compreender a barreira. Em seguida, investiu contra ela, golpeando com fúria. Mas a proteção permaneceu intacta.

    — A carruagem é uma relíquia?! — exclamou Berco, incrédulo.

    — Não exatamente — Douglas respondeu, sem tirar os olhos do inimigo. — Mas possui três relíquias embutidas. O rei ordenou sua instalação, em segredo.

    O monstro continuava atacando, golpeando a barreira como uma fera ensandecida. Douglas ignorou os olhares surpresos e ergueu a mão mais uma vez.

    — Relíquia de Recuperação! Ativar!

    Uma nova luz, agora esverdeada, se espalhou pelo grupo. Ferimentos menores cicatrizaram de imediato, enquanto os mais profundos começavam a se fechar aos poucos. A expressão de dor de Sven relaxou ligeiramente, embora seu braço perdido jamais pudesse ser restaurado.

    — Relíquia de Energia! Ativar!

    Dessa vez, uma aura azul-escura os envolveu, como se a brisa gélida de um amanhecer percorresse seus corpos. O cansaço que pesava sobre os ombros de Bruce e Berco se dissipou, e suas respirações voltaram ao ritmo normal. Douglas abaixou a mão e virou-se para os guerreiros.

    — Certo. Vocês têm cinco minutos para se preparar.

    O capitão encarou Bruce e Berco com olhos firmes.

    — Vocês vão sair daqui. Sven, Turk e a princesa precisam ser escoltados ao reino dos elfos. Essa é a missão de vocês.

    — Como?! — Berco deu um passo à frente, o cenho franzido em incredulidade.  

    — Deixe-me adivinhar — Bruce rosnou, expondo as presas. — Você vai ficar.  

    Douglas assentiu.  

    — Alguém precisa deter essa criatura. Sem um invocador para controlá-la, ela se torna um perigo ainda maior. Não posso deixá-la solta.  

    Ele então se voltou para Turk, o elfo.  

    — E você? Consegue destruí-la?  

    Os olhos afiados de Turk pousaram sobre Douglas, sua expressão fria e distante.  

    — Não posso — respondeu, a voz inabalável. — Minhas habilidades são proibidas fora do reino élfico. Nem você, nem a princesa podem me conceder permissão. Já desrespeitei minhas ordens ao matar aquele pecador. Isso já será um problema quando eu retornar. Se eu interferir novamente, posso perder meu posto.  

    Douglas cerrou o punho.  

    — Entendo. — Suspirou. — Como eu imaginei.  

    Ele compreendia o peso da hierarquia. Sabia que, para Turk, a lealdade ao reino dos elfos vinha antes de qualquer outra coisa. Então, voltou-se para os demais.  

    — Sendo assim, vocês partirão assim que a barreira cair. Essa é minha ordem.  

    — Eu me recuso! — Berco explodiu, os punhos cerrados, os olhos ardendo de determinação. — Não vou abandoná-lo aqui!  

    Douglas o encarou, a expressão firme.  

    — Isso não é um pedido, é uma decisão. E você vai obedecer.  

    Berco rangeu os dentes, mas Douglas deu um passo à frente e o fitou nos olhos.  

    — Vai desafiar seu comandante?  

    O peito de Berco subia e descia, sua respiração pesada com a frustração contida.  

    — N-não… — murmurou, a contragosto.  

    Douglas sabia que a ordem era cruel, mas necessária.  

    — Você tem noção do que está pedindo? — Bruce rosnou, sua cauda se contraindo. — Quer que um guerreiro… um homem-lagarto criado para lutar… fuja de uma batalha? Isso é uma maldita desonra!  

    Douglas assentiu lentamente.  

    — Sim, eu entendo. Mas vai desobedecer minha ordem?  

    Bruce cerrou os punhos com tanta força que suas escamas rangeram.  

    — Não… — baixou a cabeça, os dentes cerrados. — Mas só porque minha tribo é mais importante que o meu orgulho. Caso contrário… EU NUNCA FUGIRIA!  

    Douglas sorriu. Um sorriso leve, mas repleto de compreensão.  

    Bruce o encarou uma última vez antes de se virar e subir na carruagem, seguido por Berco, Turk, Sven e a princesa Maria.  

    O tempo estava se esgotando.

    Ainda que o desejo lhes dilacerasse o peito, Berco e Douglas prepararam-se para partir. Bruce, por sua vez, mantinha o olhar cravado no campo de batalha, os punhos cerrados, a cauda tensa. Queria lutar. Não havia ainda demonstrado todo o seu vigor, toda a sua fúria. Mas uma ordem fora dada, e ele, por mais que lhe custasse, haveria de cumpri-la.  

    Não tardou para que a barreira cedesse. Com um último olhar para trás, a carruagem disparou pela estrada poeirenta, levando consigo aqueles que haviam sido forçados a partir.  

    Douglas, no entanto, permaneceu. Diante de si, a colossal criatura vermelha o fitava, sua forma distorcida irradiando malevolência.  

    Ele baixou os olhos e sorriu, um sorriso que carregava resignação e coragem em igual medida.  

    — Creio que este… pode ser o meu momento final. — murmurou para si, sentindo o peso da batalha que se avizinhava.  

    A fera rugiu, lançando-se contra ele com selvageria. Douglas, sem hesitar, invocou o fluxo. Seu corpo tornou-se um borrão, movendo-se com velocidade sobre-humana, escapando por um fio dos primeiros ataques. As garras da criatura cortavam o ar com violência, buscando seu alvo com fúria crescente.  

    Por um instante, pareceu que Douglas manteria a vantagem. Mas então, ao firmar os pés no solo após um desvio, sentiu o impacto brutal. O golpe atingiu-lhe o torso como o choque de um trovão. Seu corpo foi arremessado para trás com força descomunal, batendo contra o chão e rolando várias vezes antes de finalmente deter-se.  

    Uma nuvem de poeira ergueu-se ao seu redor. Tossindo, Douglas esforçou-se para recuperar o fôlego. Sua armadura, que lhe salvara a vida, agora jazia em frangalhos. No ponto exato do impacto, restava um rombo aberto, como uma ferida profunda no metal.  

    Ainda assim, ele ergueu-se. Com ambas as mãos, segurou firme o cabo de sua espada e voltou a encarar a criatura que se aproximava, os membros contorcendo-se de maneira antinatural.  

    E então ele viu.  

    O monstro sorria.  

    Era um sorriso distorcido, antagônico à própria essência da humanidade. Não havia nele alegria, apenas o mais puro e sádico deleite pelo sofrimento alheio.  

    — Douglas! — O grito irrompeu à sua direita, forte e resoluto.  

    Voltando-se, viu um grupo de guerreiros avançando. Eram os soldados da Ponto Escuro, postando-se ao seu lado em linha de batalha. À frente deles, empunhando sua lâmina com firmeza, estava Shayax.  

    — Estamos aqui! Vamos lutar ao vosso lado!  

    — vocês… — murmurou Douglas, os olhos arregalados diante da visão inesperada.  

    Shayax sorriu com bravura.  

    — Vimos Bruce e os outros partirem. Alguém deve lutar aqui para que possamos encontrá-los novamente.  

    Douglas varreu os rostos de seus homens. Estavam exaustos, sim, cobertos de poeira e fuligem, mas seus olhos brilhavam com a determinação inabalável dos que jamais recuam.  

    No fim, Shayax conseguira evacuar o máximo de aldeões que pôde de Icca, mesmo enquanto o vilarejo ardia. Após abaterem os pecadores que cruzaram seu caminho, ele e os demais soldados reuniram-se e marcharam até ali, prontos para a batalha.  

    Do pecador Kurin, aquele que escapara, nada se soubera desde então.  

    Douglas inspirou profundamente. O cansaço, a dor, a certeza da batalha brutal que se seguiria—nada disso importava. Ali estavam seus homens, seus aliados, seus irmãos de armas. Ainda que desconhecessem a verdadeira natureza daquela criatura, ainda que soubessem que a morte os rondava como uma sombra faminta, mantinham-se firmes ao seu lado.  

    E isso era tudo que importava.  

    — Pois bem. — Sua voz ergueu-se, firme como aço. — Vamos pôr fim a isto e reencontrar os nossos!  

    Ergueu a espada, e o brilho de sua lâmina refletiu a ira do céu sobre o campo devastado.  

    — À luta!  

    E assim, com um brado que ecoou como um trovão, os soldados da Ponto Escuro investiram contra a besta, aço em punho, prontos para gravar seus nomes na lenda.

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