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    Ficou decidido: Saito trabalharia dois dias por semana na empresa do pai. Sirius — o velho — deu a ele liberdade total pra escolher quais dias queria. Um gesto quase paternal, se você ignorasse o fato de que ele ainda esperava resultados.

    Com isso, Saito desenhou sua nova vida com precisão quase militar. De segunda a quinta, Guilda. A missão era simples: subir na carreira de aventureiro e não morrer no processo. Sexta-feira virou seu dia santo — descanso absoluto. O corpo não era de ferro, e ele sabia que se tentasse ser o fodão invencível, ia acabar ferrado antes de completar um mês.

    Sábado e domingo eram para a empresa da família. Reuniões, papelada, lidar com adultos engravatados e fingir que se importava com números. Ainda assim, era uma rotina bem mais tranquila que a da maioria dos aventureiros por aí — gente que dividia o dia entre caçar, sobreviver e tentar lembrar quando foi a última vez que tomaram banho. Saito ainda morava com os pais. Casa limpa, roupa passada, comida pronta. Até o quarto dele cheirava a lavanda, graças às empregadas. Ele não precisava mover um dedo fora do campo de batalha.

    E assim começava sua nova rotina.

    Na manhã de segunda-feira, saiu de casa cedo. Sol mal tinha decidido acordar. A ideia era clara: enfiar o pé nas missões o máximo que pudesse nos próximos quatro dias. Pelo menos duas por dia. Três, se ainda estivesse inteiro.

    Havia uma vantagem em chegar cedo à Guilda: pouco depois das sete, os contratos do dia eram colados no mural principal. E aí era o caos. Um monte de maluco se empurrando por uma chance de caçar goblins ou proteger uma caravana sem ser esmagado por um ogro.

    Saito não fazia parte do empurra-empurra. Ele preferia ficar sentado num canto, observando o circo pegar fogo de longe. Jogou-se numa cadeira perto da parede e ficou só olhando os aventureiros se matarem — literalmente, às vezes — pelos melhores papéis.

    Barriga roncou. Nada filosófico nisso: ele tava com fome.

    Chamou a atendente e pediu algo simples: torta e suco de laranja. Não era café com leite gelado, sua bebida dos deuses, mas era o que tinha. A Guilda não servia café com leite gelado. Um crime, sinceramente.

    Enquanto comia, aconteceu algo incomum.

    Um cara puxou a cadeira à sua frente e sentou — sem pedir, sem cerimônia.

    Saito ergueu os olhos, ainda com o garfo na boca. Encara o sujeito. Um loirinho sorridente, aparência de quem saiu de um conto de fadas — cabelo dourado, olhos azuis, sorriso de propaganda de pasta de dente. E, pra piorar, parecia simpático. Detestável.

    — Ah… Quem é você? — perguntou, ainda mastigando.

    — Kevin. — disse o cara, como se isso explicasse tudo. — Prazer.

    Saito arqueou a sobrancelha. Claro, Kevin. O cara parecia um “Kevin” mesmo. E parecia ter acabado de sair de um spa.

    — E o que você quer comigo?

    Kevin inclinou a cabeça como um cachorro curioso, ainda sorrindo.

    — Saito, o Novato Rapa-Tudo. Quero te convidar pra uma missão com o meu grupo.

    Saito franziu o cenho.

    — Você tá me chamando pra trabalhar com você?

    — Isso aí. A equipe já existe faz um tempo, mas perdemos dois membros recentemente. Estamos reestruturando. Precisamos de mais um bronze.

    — “Perderam” como? Tipo, eles morreram?

    Kevin soltou uma risada meio sem jeito, levantando as mãos.

    — Não, calma. Ninguém morreu. É só que… bom, um casal do grupo descobriu que estavam grávidos. A garota saiu primeiro, óbvio. O cara ainda ficou pra juntar uma grana antes de sair também.

    Saito deu uma risadinha, aliviado.

    — Você devia ter começado por aí. Falou como se tivessem virado adubo.

    Kevin coçou a nuca, um pouco envergonhado.

    — Pois é. Eu sou um desastre recrutando gente. Mas como sou o líder, as meninas me jogaram essa missão. Missão Kevin: convencer um novato promissor.

    Saito arqueou uma sobrancelha. Aquilo parecia interessante.

    — Então você é o líder? Quantos membros tem o seu grupo?

    — Quatro, contando comigo. Recrutamos uma garota nova há algumas semanas, mas ainda falta mais um pra fechar a formação que costumávamos ter.

    Saito cruzou os braços. Ficou em silêncio por um momento, como quem avalia uma proposta de emprego que envolve risco de vida — o que, tecnicamente, era o caso.

    — Entendi…

    — E então? Tem interesse em se juntar a nós, Novato Rapa-Tudo?

    A cara de Saito fechou na hora. Ele soltou um suspiro, o tipo que diz “lá vamos nós de novo” sem usar palavras.

    — Você pode me chamar só de Saito, por favor?

    Kevin piscou, um pouco lento, como se só então tivesse percebido que aquele apelido não caía bem.

    — Ah… Foi mal. Não sabia que te incomodava. Normalmente, os aventureiros gostam dessas coisas. Ajuda a espalhar o nome, construir reputação…

    Saito soltou o ar, relaxando os ombros.

    — Talvez. Mas eu preferia um apelido melhor. Esse soa meio… arrogante. Como se eu achasse que sou melhor que todo mundo.

    Kevin coçou o queixo, pensativo.

    — Hm. Nunca tinha parado pra pensar nisso. Mas agora que você falou… a Little Girl disse a mesma coisa.

    — Little Girl?

    — Little Girl. — Ele confirmou com um aceno. — A garota nova que entrou no grupo. Foi o apelido que deram pra ela. Também odiou.

    Saito balançou a cabeça, tentando imaginar o tipo de pessoa que achava Little Girl um bom apelido para uma aventureira. Não parecia um grupo muito criativo — mas também não parecia ruim.

    Ele se ajeitou na cadeira, com um ar mais sério.

    — Trabalho de segunda a quinta. Sexta é meu dia de descanso. Sábado e domingo, compromissos familiares.

    Kevin ouviu com atenção. Nenhum comentário sarcástico. Apenas assentiu.

    — Sem problema. A gente se adapta.

    Saito estendeu a mão.

    Foi direto. Sem cerimônia.

    Kevin piscou mais uma vez — o cara parecia bom em piscar quando surpreso — mas apertou a mão com firmeza. E, pela primeira vez, sem aquele sorriso pronto. Era só um gesto honesto, selando um acordo simples entre dois desconhecidos.

    — Espero que a gente se dê bem.

    — Também espero — disse Saito, com a voz tranquila. E, por um instante, havia algo diferente em seus olhos. Algo que parecia com expectativa. Talvez até animação.

    Nada mal para uma manhã que começou com torta e suco de laranja.

    ⧫⧫⧫

    Naquele mesmo dia, mesmo com as missões já fixadas no quadro e distribuídas entre os aventureiros, Saito continuava ali, sentado num canto da Guilda. Quieto. Imóvel.

    O comportamento incomum não passou despercebido. Alguns novatos lançavam olhares curiosos em sua direção, cochichando entre si. O “Novato Rapa-Tudo” não tinha agarrado nenhuma missão ainda. Isso não era normal. Costumava ser o primeiro a levantar da cadeira. O primeiro a sumir pela porta com um papel na mão.

    Mas naquele dia, ele esperava.

    Kevin havia dito que o apresentaria à equipe nova naquela tarde. E, aparentemente, seria um grupo fixo. Saito sabia o quanto isso podia mudar a rotina de um aventureiro — trabalhar em grupo, confiar nos outros, depender deles. Queria estar presente e prestando atenção.

    Um a um, os membros da equipe chegaram. Quando todos estavam lá, Kevin pediu uma sala privada. Queria discutir os detalhes com calma, longe dos olhos e ouvidos do salão principal. A Guilda disponibilizava salas pequenas para isso. Confortáveis o bastante, práticas o bastante.

    Assim que entrou, Saito sentiu um leve desconforto. Havia quatro membros no grupo. Três mulheres. Um homem. Ele mesmo seria o quinto.

    Mas o que realmente chamou atenção foi a menina sentada à mesa. Uma criança.

    Ou quase.

    Ela devia ter um metro e meio, no máximo. Perna curta, rosto redondo, cabelo azul-claro caindo como uma cortina dos dois lados da cara. As pernas balançavam para frente e para trás, sem tocar o chão. Parecia uma boneca mal posicionada numa prateleira.

    E no peito, o broche de rank prata.

    Saito piscou. Depois franziu a testa.

    O que uma criança estava fazendo com um distintivo daqueles? Ele próprio teve que esperar até completar quinze anos — a idade mínima exigida pela Guilda — para poder se alistar. Isso era lei. E ali estava ela, comendo doces em forma de bichinho, parecendo que tinha saído direto de uma festa infantil.

    Ele engoliu a irritação. Não valia a pena começar com o pé esquerdo. Manteve o rosto neutro. Mesmo com o incômodo claro nos olhos.

    Kevin não parecia se incomodar com nada disso. Continuava de pé, sorridente, no papel de líder informal e anfitrião. As três garotas, do outro lado da mesa, observavam Saito como se ele fosse um novo ingrediente numa receita que elas já conheciam de cor.

    Foi Kevin quem quebrou o gelo.

    — Esse aqui é o Saito. Ele vai se juntar a nós por tempo indeterminado. Tratem bem o rapaz.

    A primeira a se apresentar foi uma loira de trança apertada, aparência prática e voz tranquila.

    — Bem-vindo ao grupo.

    Seu nome era Tuare. Segundo Kevin, ela estava com ele desde o começo — quando tudo ainda era uma dupla sem grande ambição. Aos poucos, haviam crescido. Montado algo maior.

    A seguinte foi bem diferente.

    — HEEEI! Um novo companheiro! Isso é ótimo!

    Cabelos curtos, tingidos de laranja quase neon. Leiana. Hiperativa, sorriso largo, presença exagerada. Tinha um dente afiado que aparecia sempre que falava demais — o que era o tempo todo.

    Saito assentiu, mas achou que ia precisar de fôlego extra para lidar com ela.

    Sobrou a pequena.

    Ou, como era chamada, Little Girl.

    Ela não disse uma palavra. Apenas continuou comendo os docinhos, impassível. Não parecia prestar atenção. Vestia um robe grande demais para seu corpo, arrastando pelo chão, e segurava um cajado que era quase do tamanho dela.

    Saito olhou novamente para o broche de prata preso ao robe. Ainda não engolia aquilo.

    Depois da apresentação, veio o “quem faz o quê”.

    Kevin era espadachim. Treinou desde moleque, passou por meia dúzia de academias e recusou entrar nos Cavaleiros Sagrados. Tinha seus motivos.

    — Eles precisam de ordens pra tudo. Se um vilarejo estiver queimando e você estiver lá, vai precisar de permissão pra agir. Não dá.

    Não havia raiva em sua voz. Apenas frustração. Discordância com o sistema. Queria fundar sua própria organização, algo que realmente ajudasse as pessoas. Sem burocracia. Sem enfeite.

    Soava como personagem de conto infantil.

    Tuare era arqueira. Precisa, mas não brilhante. Estava no grupo por lealdade a Kevin, não por ideologia.

    — Dou suporte de longe. E vigio as costas de todo mundo.

    Simples assim.

    Leiana tinha quinze anos, assim como Saito. Usava adagas, atacava na linha de frente, e parecia feita de molas.

    — Sou pequena, mas sou rápida. Vai ver.

    E então havia ela.

    Little Girl.

    — Maga — explicou Kevin, quando viu o olhar de Saito se prolongar no cajado.

    Aquilo chamava atenção. Mago não era título dado com leveza. O exame oficial era complicado. Exigia controle refinado da Gama, a energia mágica que envolvia tudo. Quem passava ganhava um cajado especial, com um Orbe Combustível embutido — uma esfera mágica capaz de armazenar Gama e liberar feitiços antes de puxar energia do próprio corpo.

    — Dá pra recarregar o orbe? — perguntou Saito.

    — Dá sim. Por isso é valioso.

    Little Girl não disse nada. Só observava, calada. Era difícil dizer se ela se entediava ou se só não se importava.

    Logo depois, a reunião terminou. Rápida, direta, sem enrolação.

    Saito, como de costume, não queria desperdiçar o resto do dia. Pegou uma missão qualquer e saiu da Guilda. Conseguiu terminar só uma tarefa antes do sol se pôr. Com o céu escurecendo, voltou para casa. Precisava dormir. No dia seguinte, começaria oficialmente sua nova rotina.

    Com um grupo novo.

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