Capítulo 135 - Uma Mensagem Assustadora
Duas semanas haviam se passado desde que Saito saíra daquele escritório abafado da guilda, onde Zepelin, com aquele olhar de quem já sabia todas as respostas, jogou uma bomba em seu colo e depois sumiu como se nada tivesse acontecido. Desde então, o mundo ao redor de Saito seguia normalmente — contratos continuavam sendo oferecidos na guilda, o mercado ainda acordava cedo, e as pessoas andavam pelas ruas com pressa de viver — mas, dentro dele, tudo estava suspenso. Como uma corda esticada demais, prestes a arrebentar.
Agora, ele estava com Kevin e o resto da equipe numa missão que, em teoria, era simples: coleta de ervas medicinais numa floresta próxima ao reino. Algo de rotina, quase burocrático. Haviam trabalhadores com eles — camponeses que conheciam bem as ervas, mas nada sobre monstros — e o papel dos aventureiros era garantir que voltassem todos vivos. Mas mesmo num cenário tão banal, havia algo em Saito que não se encaixava no momento. Ele estava presente, mas distante. Físico, mas ausente. Os olhos escaneavam o ambiente, mas não viam as árvores. A cabeça estava em outro lugar. Ou em outro tempo.
Kevin notou. Era impossível não notar.
Passaram meses lado a lado, enfrentando criaturas, tempestades e homens armados. Kevin sabia reconhecer quando um companheiro estava carregando um peso grande demais para andar ereto.
Ele se aproximou de Saito com a calma de quem respeita o silêncio de um homem no limite.
— Saito.
O nome foi dito como se fosse uma pergunta.
— Hhmpf… — Saito piscou, como se voltasse de um transe. — Aconteceu alguma coisa, Kevin?
Olhou em volta, os olhos ainda ligeiramente desfocados. A floresta estava quieta, o som dos trabalhadores colhendo as plantas era ritmado, quase reconfortante. Mas dentro de Saito, a tempestade continuava.
— Não aconteceu nada aqui — respondeu Kevin. — O que me preocupa é o que está acontecendo aí dentro. — E apontou com o queixo para o peito do amigo. — Você tá diferente. Tá mais… sombrio. Desfocado.
Saito suspirou. Mas não foi só ar saindo. Era raiva. Era frustração. Era dor.
— Recebi uma notícia, Kevin. Uma daquelas que mudam a forma como você enxerga a própria história. Aquilo que você acreditava ser verdade… de repente vira invenção. E a pessoa que você mais amava… é transformada em vítima. Em mártir. Em nada.
Kevin ouviu. Apenas ouviu. Como um bom amigo ouve quando sabe que interromper seria roubar um peso que o outro precisa carregar até o fim da frase.
— Meu avô… — Saito começou, a voz arrastada. — Eu cresci com a ideia de que ele tinha morrido em uma missão fazendo o que amava. Mas agora… agora me dizem que ele foi assassinado.
Kevin estreitou os olhos. E pela primeira vez, a preocupação deu lugar à raiva.
— E você acredita nisso?
— Se eu não acreditasse… não estaria assim. — Saito desviou o olhar. — E o pior é que não sei o que é mais difícil: aceitar que ele foi morto como um peão, ou aceitar que alguém está usando isso pra me manipular.
Kevin cruzou os braços, pensativo.
Kevin arqueou uma sobrancelha, mas não disse nada.
Houve um silêncio. Um daqueles longos e densos, que nem o farfalhar das folhas consegue preencher.
Saito finalmente olhou nos olhos de Kevin.
— Eu não queria te arrastar pra isso. Não quero que você se torne uma peça nesse jogo sujo. Não quero te colocar no radar desses homens. Eles não jogam limpo, Kevin. Eles te apertam até você virar o que eles precisam. E se você não vira… eles te quebram.
Kevin apenas sorriu. Um sorriso simples, mas que carregava mais firmeza do que qualquer discurso.
— Você esqueceu o que eu quero ser, Saito?
— Heh… não. Você nunca me deixa esquecer.
— Eu quero ser um herói. E heróis não viram as costas pra quem confia neles. Então se esse fardo está pesado demais, divide ele comigo. Eu aguento.
Saito não respondeu de imediato. Apenas encarou o amigo. E naquele instante, em meio à sombra das árvores e ao cheiro de ervas frescas no ar, sentiu algo que não sentia há semanas: alívio.
— Obrigado, Kevin.
— Não agradece ainda. A gente ainda vai quebrar muito a cara.
Ambos riram. Mas no fundo, sabiam que não era piada.
⧫⧫⧫
Kevin caminhava lentamente pelas ruas de paralelepípedos do Reino das Quatro Torres, como fazia todas as manhãs desde que se tornara um aventureiro de verdade. Aquela parte da cidade, entre a guilda e o mercado dos anciãos, era praticamente sua segunda casa. As lojas já abriam as portas com rangidos familiares, os donos o reconheciam com um aceno sutil, e até os cães vadios, largados nas esquinas, pareciam já saber o ritmo de sua passada. Era um cotidiano quase coreografado, como se o mundo dançasse em torno de uma rotina que ele mesmo havia criado — mas que, ultimamente, parecia cada vez mais distante da realidade que queria viver.
Ser um herói. Palavras bonitas. Ideais bonitos. Mas Kevin sabia, com uma clareza que só vem depois de ver sangue de perto, que o mundo não tinha espaço para heróis como nas histórias. Não como ele imaginava na infância, de capa ao vento e justiça no punho. Ser um herói, no mundo real, era suar, sangrar e engolir orgulho. Era fazer o que precisava ser feito — mesmo quando ninguém aplaudia. E mesmo quando ninguém mais acreditava que fosse possível.
O plano de Kevin mudara tantas vezes quanto os rostos que vira cair em batalha. Quando mais jovem, achava que bastava ser forte. Depois, que bastava ser conhecido. Mas agora sabia que o verdadeiro herói não era o mais falado — era o mais preparado. E preparação custava caro. Muito caro. Era preciso ouro, influência, acesso. Era preciso abrir portas sem precisar pedir licença. E para isso, Kevin precisava de algo que ele nunca teve o luxo de ignorar: dinheiro.
Ele poderia, é claro, ter simplesmente aceitado o que o pai lhe ofereceu. A herança. A segurança. Uma vida de privilégios fáceis. Mas também sabia que, ao fazer isso, teria vendido sua liberdade junto. Porque o dinheiro do pai vinha com algemas — douradas, confortáveis, mas algemas ainda assim. E quem é preso ao passado da própria família não pode proteger o futuro de ninguém.
— Ahh… — suspirou ele, com as mãos nos bolsos, observando o céu cinzento acima das torres altas. A brisa trazia o cheiro de pão fresco, fumaça e problemas.
Sua cabeça doía — uma dor que não vinha de pancadas, mas de pensar demais em coisas que não tinham resposta fácil. A verdade é que Kevin, se quisesse, já poderia ter parado. Tinha ouro guardado o bastante para viver duas vidas simples, longe do perigo. Um pequeno campo nos arredores do reino, uma casa de madeira, talvez até uma família. Ele podia desaparecer do mundo e ninguém o culparia por isso.
Mas havia algo dentro dele que não o deixava. Uma voz insistente, incômoda, que dizia: “Você prometeu ser diferente.” E ele prometeu. Para si mesmo. Para os mortos que deixou para trás. Para cada um que morreu esperando por alguém que jamais chegou para salvá-lo.
Sim, seu nome corria de boca em boca. Era respeitado dentro e fora do reino. Suas façanhas, reais ou exageradas, eram contadas em tavernas, e ele havia aceitado missões que outros recusaram, enfrentado coisas que homens mais velhos tremiam só de ouvir. E tudo isso lhe rendeu recompensas — ouro, status, reconhecimento. Mas não era o bastante. Ainda não era.
Porque ele sabia que heróis de verdade não aparecem por acaso. Eles são forjados. Como lâminas. Com fogo, tempo e perdas.
Para financiar o sonho que carregava no peito, Kevin sabia que precisaria de mais. Muito mais. Não só dinheiro para armas, armaduras e suprimentos. Mas dinheiro para contratar gente. Para criar uma rede. Para poder chegar onde fosse necessário, quando fosse necessário. E, acima de tudo, para não depender de ninguém. Porque o momento em que você depende, é o momento em que deixam de te respeitar… e começam a te controlar.
E havia outra coisa. Uma verdade silenciosa que ele jamais dizia em voz alta, mas que carregava todos os dias.
— Nem todo mundo quer ser salvo — murmurou, parando por um instante diante de uma fonte no centro da praça.
Alguns o olhavam como se fosse um tolo por ainda tentar viver com honra. Por acreditar que era possível fazer a coisa certa, da maneira certa. Mas Kevin sabia — se ele mesmo não acreditasse, então quem mais o faria?
Ser um herói, para ele, era como andar por uma ponte de vidro sobre um mar de tubarões. Um passo em falso, e você despenca. Mas se atravessar… talvez inspire alguém a tentar também.
E é isso que o mantém em movimento.
Nem tudo era desgraça — Kevin sabia disso. Ainda que o mundo o puxasse para a lama de tempos em tempos, ele não podia se dar ao luxo de reclamar. Havia construído algo, mesmo que ainda inacabado. Tinha uma base, uma estrutura. Tinha pessoas. E em um mundo como aquele, onde confiança era mais valiosa que ouro, isso era quase um milagre. Sua equipe, embora não partilhasse do mesmo ideal heroico — esse delírio perigoso que ele ainda chamava de sonho — era composta por indivíduos extraordinários. Eles se mantinham firmes, lutavam com ele, não por ele. E isso bastava.
Saito era um deles. Um dos que Kevin considerava mais do que apenas aliado. O jovem carregava um turbilhão dentro de si, e talvez por isso mesmo, Kevin gostava tanto dele. Via em Saito uma chama semelhante à sua — intensa, rebelde, mas em guerra consigo mesma. E havia também sua amiga de infância, aquela que havia permanecido ao seu lado quando tudo em sua vida começava a rachar. Alguém que conhecia seu silêncio, que sabia interpretar seus sorrisos disfarçados, que enxergava o homem por trás da fama.
Há algumas semanas, ele finalmente teve a conversa que estava adiando há meses. Ela o amava — e ele sabia disso. Mas amor, na vida de um homem como Kevin, era um luxo perigoso. E mais ainda… uma distração fatal. Ele deixou isso claro. Disse-lhe que não podia, nem queria, pertencer a ninguém. Que sua vida estava comprometida com algo maior, mais abstrato e talvez mais cruel do que qualquer relacionamento poderia suportar. Ela ouviu, não com alegria, mas com compreensão. E por isso, ele a respeitava ainda mais.
Foi nesse turbilhão de pensamentos que um pequeno vulto interrompeu seu passo. Um menino, franzino, sujo de poeira e com os olhos arregalados, surgiu do beco como se fosse parte da paisagem urbana.
— S-Senhor… — a voz era hesitante, mas decidida.
Kevin ergueu o olhar, curioso. A voz o arrancara de seus devaneios.
— Hhpm… aconteceu alguma coisa? — perguntou com gentileza, embora houvesse nas entrelinhas uma pitada de desconfiança. Nenhuma abordagem era apenas o que parecia ser.
— Um moço… me pediu pra entregar isso aqui. — O garoto estendeu um envelope lacrado. Papel grosso, sem remetente, sem inscrição — o tipo de carta que não queria ser encontrada por acaso.
Kevin a pegou, examinando com os olhos antes de tocar o lacre.
— Como era o homem que te deu isso? — perguntou, voz ainda controlada, mas com um fio de tensão que apenas quem o conhecia notaria.
— Tinha cabelo laranja… vestia umas roupas caras. Falava como quem tem certeza que o mundo é dele… — disse o menino, coçando a cabeça.
Kevin franziu levemente a testa. Não conhecia ninguém com essa descrição. Pelo menos, não ainda. E isso, por si só, já era motivo para cautela.
— Certo. Obrigado, garoto. — Enfiou a mão no bolso e tirou algumas moedas, entregando-as sem cerimônia.
— V-Valeu, senhor! — o menino sumiu quase tão rápido quanto apareceu.
Kevin então se afastou da praça, buscando um canto mais discreto entre os arcos de pedra de uma ruela vazia. O mundo parecia em silêncio por um momento, como se prendesse a respiração junto com ele. Quebrando o lacre com o polegar, abriu a carta com cuidado, atento ao menor detalhe — o cheiro do papel, a textura, a caligrafia.
Os olhos percorreram as primeiras linhas e se estreitaram. O corpo, por um instante, ficou tenso, como se o sangue tivesse engrossado nas veias.
— …I-isso… — murmurou para si mesmo, relendo a frase que o havia feito congelar. Não havia assinatura, mas o conteúdo dizia mais do que nomes jamais poderiam.
Fechou a carta com cuidado, como quem guarda uma adaga dentro do casaco.
— Preciso mostrar isso pro Saito. — Sua voz agora era firme, decidida, quase fria. Havia peso nas palavras, como se tivesse acabado de aceitar que o mundo ao qual tentava resistir o puxava de novo para dentro.
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