Capítulo 140 - Momento Para Relaxar
A manhã chegou abafada e cinzenta, como se o próprio céu soubesse do peso que carregava aquele dia. Restavam apenas dez dias até o fim do prazo dos Pecadores, e cada minuto parecia um passo mais fundo na boca do inferno.
Saito levantou-se devagar, como quem carrega chumbo nos ossos. Tinha dormido pouco — quase nada. As horas passavam como navalhas, cortando sua mente sem piedade. Dormir era um luxo, um risco, um convite para pesadelos. As dores de cabeça, constantes, vinham como marteladas silenciosas. Não era apenas o cansaço. Era tensão pura, envenenando o corpo. Cada som o fazia estremecer. Cada sombra na parede era um vulto, uma lembrança de que alguém — ou algo — poderia estar vindo.
Na cozinha, a luz da manhã se filtrava pela janela em tons pálidos. Ele colocou água para ferver, preparou um pão seco e se sentou à mesa em silêncio, tentando mastigar alguma paz que já não existia. Seus pensamentos giravam entre as preparações da missão, as rotas de fuga, a possibilidade de emboscada, e o rosto de sua mãe. Ela.
A porta se abriu suavemente. E então ela entrou.
A mãe de Saito ainda era uma mulher jovem, mas o peso da gravidez e da preocupação esculpia em seu rosto uma beleza calma, terrosa. Usava um vestido simples, de algodão claro, e andava com a mão sobre a barriga como se segurasse o mundo.
Ela o viu, e sorriu — aquele sorriso sereno que só mães sabem oferecer, mesmo quando tudo está desmoronando ao redor.
— Bom dia, meu filho. — disse, aproximando-se com doçura. Seus olhos o examinavam com um carinho cirúrgico, percebendo cada traço de cansaço em seu rosto.
Ela se curvou levemente, afastou uma mecha rebelde da testa do garoto e depositou um beijo suave ali, como quem sela uma oração. Saito permaneceu imóvel por um instante, como se aquele gesto pudesse curá-lo de algo que nenhuma espada ou feitiço conseguiria.
— Como você está, Saito? — perguntou com voz baixa, envolta em preocupação disfarçada por ternura.
Ele demorou a responder. Quis dizer a verdade, vomitar tudo ali mesmo: os Pecadores, o prazo, o sangue, a pressão, o pavor de falhar, o medo constante de voltar pra casa e encontrá-la morta. Mas não podia. Não com ela carregando uma vida dentro de si. Ele respirou fundo e forçou um sorriso, desses que doem mais do que qualquer ferimento.
— Estou bem, mãe. Só… cansado.
Ela sentou-se à sua frente, cruzou os braços sobre a barriga e inclinou-se, olhos nos olhos.
— Tem certeza? Você parece esgotado, Saito. Seu rosto… seus olhos… — Ela pausou. — Você tem saído de casa como se estivesse indo pra guerra.
Ele desviou o olhar. As mãos tremiam levemente, então as escondeu debaixo da mesa.
— É só coisa do trabalho, mãe. Está tudo sob controle. Não precisa se preocupar.
Ela não respondeu de imediato. Apenas observou o filho por longos segundos. Sabia que havia algo errado. O instinto de mãe é uma coisa afiada demais pra ser enganada com palavras simples. Mas ela respeitou o silêncio dele. Não pressionou. Apenas baixou um pouco a voz.
— Tudo bem. Se você não quer me contar, eu entendo. Só me promete uma coisa.
Saito levantou os olhos, agora mais frágeis.
— O quê?
Ela esticou a mão por cima da mesa e pousou-a na cabeça dele, acariciando os fios escuros com dedos lentos, quase cerimoniais.
— Me promete que você vai voltar pra mim. Inteiro. Vivo. Promete que, seja lá o que esteja fazendo lá fora, você vai voltar pra casa. Que vai cuidar de si mesmo… e de nós dois.
Ele sentiu o nó na garganta subir tão rápido que por um instante achou que não conseguiria falar. Queria dizer que não podia prometer isso. Que nem mesmo os mais fortes, nem mesmo os mais preparados, poderiam prometer isso. Mas mentir era necessário. E se havia algo que ele podia dar àquela mulher, era esperança — mesmo que fosse feita de vidro.
— Eu prometo, mãe. Eu vou ficar bem.
Ela sorriu com os olhos úmidos, como quem acredita por escolha, não por convicção. E naquele instante, naquele pequeno instante, Saito desejou que aquela promessa fosse verdadeira.
Porque o que vinha pela frente… era mais que um desafio.
Era uma sentença esperando ser cumprida.
⧫⧫⧫
A missão do grupo começaria naquele dia. O primeiro passo seria viajar até o vilarejo onde o troll havia sido visto pela última vez. O local ficava na direção do reino dos elfos — relativamente próximo, sendo um dos vilarejos humanos mais próximos da fronteira élfica. Ao todo, existiam dez vilarejos considerados os “fundos” do território humano, marcando a transição para as terras élficas. Aquele vilarejo era um deles.
Por causa dessa proximidade, diversas teorias começaram a surgir durante a viagem de carruagem. Uma delas, formulada pelo grupo de Saito, sugeria que o troll poderia ter vindo diretamente do território élfico — mais precisamente de Abelium, a Floresta Sagrada dos elfos. Um lugar onde, dizem, quase nenhuma alma ousa pisar nos dias de hoje.
Mas aquilo não passava de especulação, surgida durante as longas horas de tédio na estrada. Após o primeiro dia de viagem, Kevin sugeriu uma parada em um local previamente escolhido por ele: um lago conhecido nas redondezas como o Lago da Mulher Caída. O nome fora dado depois que um homem encontrou, anos atrás, o corpo de uma mulher vestida de branco às margens do lago. Desde então, o nome pegou.
Apesar do tom sombrio, o lugar não era considerado amaldiçoado — era apenas um nome chamativo, que acabou tornando o lago famoso. Com o tempo, passou a atrair visitantes interessados em sua beleza tranquila e seu ar de mistério. Kevin sabia que a equipe estava exausta — tanto pela missão quanto pela pressão do prazo iminente: o fim do mês, quando se encerrava o tempo dado pelos Pecadores para que eles entregassem a garota conhecida como Little Girl. Por isso, ele teve a ideia de parar ali, oferecendo ao grupo um breve momento de descanso para aliviar a tensão.
O caminho até o lago era ladeado por árvores e havia sido aberto por moradores de vilarejos próximos, justamente para facilitar o acesso de carruagens e visitantes. Desde que o lugar se tornara popular, os próprios locais contribuíram para torná-lo mais acessível, estimulando o turismo.
Ao chegarem à clareira, o cenário roubou o fôlego de todos. Cercado por árvores densas, o lago cintilava sob a luz do dia, alimentado por um rio cristalino e uma bela cachoeira ao fundo. A natureza parecia respirar em harmonia naquele canto isolado. Eles não estavam sozinhos — cerca de doze pessoas aproveitavam o banho no rio, e quase ao mesmo tempo em que chegaram, outro grupo também apareceu em uma carruagem.
— Que lugar lindo! — exclamou uma garotinha do grupo recém-chegado, colocando a cabeça para fora da janela da carruagem com os olhos brilhando de encanto.
— Ei, irmã! Não fica se pendurando assim! Você vai acabar caindo! — alertou um jovem de cabelos castanho-escuros que conduzia a carruagem, virando-se brevemente para trás com um tom preocupado.
Saito observou os dois com um olhar distante e pensativo. Será que ele também seria assim com o irmão — ou irmã — que estava por vir? Será que ao menos teria essa chance? Com tantos problemas empilhados sobre seus ombros, a morte parecia mais próxima a cada dia. E ele estava com medo. Muito medo.
— Saito.
— Hã?! — Ele se sobressaltou com o chamado, o coração quase saltando do peito. — K-Kevin? O que foi?
— Vamos trocar de roupa — disse Kevin, com um sorriso tranquilo. — A gente também merece um descanso.
O sorriso gentil de Kevin arrancou de Saito um breve sorriso em resposta, ainda que cansado.
Depois de se trocarem, o grupo se dirigiu ao lago. Apenas Little Girl permaneceu à margem, sentada à sombra de uma árvore, com um livro aberto sobre os joelhos. Embora seus olhos estivessem fixos nas páginas, era evidente que ela não lia de verdade.
O restante mergulhou na água, buscando um momento raro de alívio. Os últimos dias tinham sido um verdadeiro inferno. A tensão, o medo e a ansiedade os haviam corroído a ponto de paralisar até mesmo as conversas mais simples. Mas um deles ainda insistia em tentar arrancar um sorriso dos outros.
Saito estava parado, encarando Little Girl em silêncio, quando de repente foi atingido por um jato d’água no peito.
— Grr… sério isso…? — reclamou, girando lentamente para fitar Kevin com um olhar nada amigável.
— Ué, que foi? Se for homem mesmo, revida! — disse Kevin, com aquele sorriso provocador que ele adorava exibir.
— Beleza então… mas lembra que foi você que começou, seu otário.
Saito arregaçou as mangas com determinação, e a guerra começou. Jatos d’água voaram de um lado ao outro entre os dois, rindo como crianças. No meio da brincadeira, acabaram acertando Tuare e Leiana, que logo se juntaram à confusão para formar um combate equilibrado: dois contra dois.
Mesmo com os pensamentos sombrios rondando, por um breve momento, eles riram de verdade. O peso em seus ombros não desapareceu, mas ficou um pouco mais leve. Pelo menos para aqueles quatro que estavam dentro da água.
À margem, Little Girl os observava por trás do livro que fingia ler. Seu rosto permanecia neutro, mas por dentro, sentimentos conflitantes ferviam. Eles estavam se divertindo juntos… como uma família. Mas ela sabia que não fazia parte daquilo. Nem poderia.
Ela era diferente. Aqueles monstros a haviam moldado, arrancado partes de sua alma, deixado marcas que jamais sumiriam. E por mais que tentasse, jamais poderia ser como eles. Não era uma garota normal. Não era uma amiga.
Era apenas um pequeno monstro.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.