Capítulo 142 - Apenas Diga “Sim”
Saito revirou-se na barraca por um bom tempo, até que finalmente desistiu de tentar dormir. O silêncio da noite era inquietante demais. Sem fazer muito alarde, levantou-se e saiu para o lado de fora. O grupo estava a poucas horas do destino, e, como ainda havia tempo até o amanhecer, Kevin decidira montar acampamento próximo à floresta. Dessa forma, chegariam ao vilarejo pela manhã ou início da tarde.
Apesar de ter relaxado consideravelmente após os acontecimentos do dia, a mente de Saito ainda estava inquieta. Não era como se suas preocupações tivessem desaparecido de uma hora para outra.
Kevin dividia a barraca com ele, enquanto as outras garotas dormiam em outra barraca próxima. Quando Saito se moveu para sair, acabou fazendo um leve ruído.
— Vê se não vai ficar muito tempo acordado lá fora… — murmurou Kevin, deitado de lado, sem sequer se virar.
— Hahaha… — Saito soltou uma risada baixa. — Você tem um sono muito leve…
Lá fora, a escuridão era quase total. Quase. Uma luz forte chamava atenção vinda de dentro da floresta. Intrigado, Saito caminhou em silêncio até identificar a fonte da luz: uma lamparina, pousada no chão ao lado de uma figura sentada contra uma árvore.
Era ela. Little Girl. Estava como sempre — serena, fria —, os olhos neutros voltados para um livro grosso que repousava em seu colo.
— Hm… — murmurou Saito, apenas para si, mas a garota ergueu o olhar por um breve instante, séria. Logo, voltou à leitura.
O jovem hesitou. Mesmo não sendo fã da garota, ainda estavam na mesma equipe. Se algo estivesse errado com ela e ela não dissesse nada por orgulho ou costume de se virar sozinha, isso poderia colocar o grupo em risco — especialmente com o confronto contra o troll se aproximando.
Depois de alguns minutos de ponderação, ele caminhou até ela.
— Ei. — chamou, recebendo novamente aquele olhar neutro.
— O que foi? — respondeu ela, sem tirar o livro do rosto.
— Não está conseguindo dormir?
— Hmph… não. Mas não precisa se preocupar, estou bem.
Saito não acreditou naquela resposta. O rosto dela dizia o contrário. Mesmo assim, não insistiu. Apenas se sentou na árvore ao lado, em silêncio.
— Posso te perguntar uma coisa? — perguntou, após alguns minutos, olhando para o céu estrelado.
— Pode.
— Você… gosta de alguém?
A pergunta surgiu num tom neutro, quase como uma observação.
Little Girl franziu levemente o cenho. Não entendeu o que Saito queria dizer com aquilo, mas, de qualquer forma, estava ali há um tempo, relendo a mesma página enquanto pensamentos sombrios tomavam conta de sua mente. Conversar… talvez fosse uma distração aceitável, por ora.
— Não tem ninguém… — começou a dizer, mas hesitou. Era só dizer “Não tem ninguém que eu goste”. Tão simples. E ainda assim, por algum motivo, seu corpo se recusava a completar a frase. — Eu… amo minha família.
— Sua família…? — Saito ficou boquiaberto por um instante.
A surpresa não veio só pelas palavras. Mas também pelo modo como a menina abaixou a cabeça, como se as lembranças que acabara de evocar a machucassem. Saito sabia que ela havia sido separada de sua família, mas nunca soubera detalhes. Naquele momento, entendeu que havia mais profundidade nela do que jamais imaginara.
— Sua família… eles ainda estão vivos? — perguntou Saito, com a voz baixa.
— Estão… — murmurou Little Girl, enquanto uma imagem lhe vinha à mente: seus pais abraçando outra criança — o filho deles, o filho que a substituiu. — Mas eles não precisam mais de mim.
— Hã? Do que você tá falando? Você já tentou procurá-los? Se eles estão vivos…
— Eu não posso fazer esse tipo de coisa… — ela interrompeu, com um tom de irritação contida. — Assim como coloquei você, Kevin, Tuare, Leiana e as famílias de vocês em risco… faria o mesmo com eles. Eu não posso.
Saito quis responder, dizer algo para contrariá-la. Mas as palavras morreram em sua garganta.
Ele sabia que ela não estava mentindo. Também carregava a angústia constante de saber que, por causa dela, sua família havia se tornado alvo dos Pecadores. Por mais que tentasse racionalizar, por mais que dissesse a si mesmo que ela não tinha culpa, ainda sentia medo. E raiva. Uma raiva amarga, silenciosa.
Mas o que o impedia de explodir não era apenas o medo. Era algo mais cruel: empatia.
Little Girl tinha mesmo medo de colocar sua família em perigo. Mas não era só isso que a impedia de procurá-los — e ela sabia disso. O que a paralisava era algo ainda mais profundo. Ela tinha medo… de si mesma. Medo daquilo que os Pecadores haviam feito com ela. Do monstro que ela temia carregar dentro de si.
Ela não queria levar sua escuridão para perto das únicas pessoas que talvez ainda a amassem.
— E não há nada que você possa fazer… — murmurou Saito, quase como se estivesse admitindo uma derrota.
— Sim…
Mesmo naquele momento, ele não conseguia evitar o ressentimento. Não era justo, ele sabia, mas ainda assim sentia. Sua família estava em risco. Seus sonhos estavam em risco. Tudo por causa dela.
Mas o que mais o incomodava… era sentir pena.
Pena de uma garota que não podia sequer visitar seus pais. Que vivia carregando o peso de um destino que nunca pediu. A verdade é que sua vida tinha sido marcada desde o dia em que foi sequestrada pelos Pecadores. E ele? Quem era ele para ajudá-la? Para tentar salvá-la? Qualquer tentativa colocaria tudo o que ele amava em perigo.
— Eu sei que você sente raiva de mim, Saito.
— Ah… — ele ficou surpreso. Não esperava que ela dissesse aquilo. Não em voz alta.
— Você tem amigos. Tem seus sonhos. Tem uma família. Se eu tivesse tudo isso… também odiaria quem colocasse tudo em risco. — Sua voz foi perdendo força. — Eu não passo de um peso. Um fardo ambulante que machuca todo mundo que se aproxima. — Ela abaixou a cabeça, as lágrimas começando a escorrer por seu rosto. — O mundo estaria melhor se eu não existisse… se eu tivesse sido só mais uma das crianças mortas naquela merda que os Pecadores fizeram… Eu… eu não sei mais o que fazer…
Saito viu.
Viu aquela menina que sempre fora ríspida e fria, agora encolhida contra os próprios joelhos, chorando como a criança que ainda era. E então percebeu: quanto ela havia aguentado sozinha? Quanto havia suportado calada?
Ele sempre enxergou a força dela. Mas esqueceu completamente do resto. Ela era apenas uma criança.
Por mais grossa, insuportável ou difícil que fosse… ela só era uma criança tentando sobreviver.
— Little Girl… — murmurou Saito.
— Vocês deviam me entregar…
— O-O quê…? Como assim? O que você tá dizendo?
Mas, no fundo, ele sabia. E, por um breve instante, aquilo pareceu… certo. Era a saída perfeita. Se ele a deixasse afundar um pouco mais, se não dissesse nada, talvez conseguisse convencer os outros a entregá-la para os Pecadores. E então, tudo acabaria.
Sua família estaria segura. Ele voltaria a dormir à noite, sem o peso do medo esmagando seu peito. Bastava um empurrãozinho. Bastava deixá-la acreditar que era mesmo um fardo, que era melhor se afastar. Ela estava tão fraca, tão vulnerável…
Era a chance de salvar a si mesmo — e a todos os outros.
Ele só precisava dizer sim.
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