Capítulo 144 - O Vínculo da Equipe
— Vai ficar tudo bem… — repetiu Kevin com uma entonação exageradamente dramática, pressionando as mãos contra o peito como se encenasse uma peça de teatro.
— Dá pra parar com isso?! — Saito explodiu, o rosto completamente vermelho de vergonha. Era claro que estava tentando soar bravo, mas o rubor intenso em suas bochechas o traía.
A reação foi imediata: a carruagem inteira caiu na risada. Tuare gargalhava com o rosto encostado na janela, enquanto Leiana se curvava de tanto rir. A interpretação de Kevin da conversa da noite anterior tinha sido surpreendentemente fiel — e completamente debochada.
A verdade é que, quando Saito e Little Girl discutiam na calada da noite, os tons exaltados de voz acabaram acordando os demais. Embora tentassem voltar a dormir, acabaram sendo arrastados pelo conteúdo da conversa. Agora, era impossível não tirar sarro da situação e da postura inesperadamente heroica de Saito.
Little Girl, por sua vez, mergulhava o rosto em um dos livros que pegara da mochila. Seu rosto estava tão vermelho quanto o de Saito. Ela se encolhia, desconfortável, tentando se esconder no fundo do assento. Nunca antes tinha se exposto daquele jeito. Mostrara fragilidade, mostrara dor… e alguém tinha presenciado isso. Pior: todos tinham.
— Sério, Saito… — disse Kevin, ainda entre risos, enxugando uma lágrima do canto do olho — Você precisa me ensinar essa. Foi digno de um protagonista de um conto heroico.
— Eu juro que vou te bater… — ameaçou Saito, mas sua voz soava mais como um grunhido derrotado do que um aviso real.
— Calma, calma… não precisa ser agressivo. Hahaha!
Apesar da provocação, Kevin estava visivelmente orgulhoso. No fundo, ele tinha escutado tudo, desde o início. Ficara em silêncio para não atrapalhar. Aquilo que Saito disse — e principalmente como disse — o havia tocado profundamente. Era o tipo de coisa que não se espera de um amigo que geralmente evita palavras sérias. No entanto, ele jamais deixaria passar a chance de tirar um sarro. Era parte da amizade, afinal.
— Olha! Um vilarejo à vista! — gritou Leiana, se inclinando pela janela, o corpo meio para fora da carruagem.
Saito e os outros se aproximaram da lateral para olhar. A estrada de terra serpenteava por um campo de gramíneas secas, e adiante, as casas simples de madeira e pedra se agrupavam em torno de uma pequena praça com um poço no centro.
— É um vilarejo bonito… — comentou Tuare, observando os detalhes da arquitetura rural. As casas tinham telhados inclinados, cobertos por musgo e folhas, e cercas de madeira delimitavam hortas e pequenos currais.
— Tem mesmo um troll por aqui? — perguntou Saito, desconfiado. — Parece tudo tão… calmo.
— Isso é mais comum do que parece — respondeu Kevin, assumindo um tom quase professoral enquanto segurava firmemente as rédeas da carruagem. — Vilarejos que ficam entre a fronteira de dois reinos normalmente são esquecidos. Ficam fora das rotas comerciais principais, longe das preocupações políticas e dos problemas maiores. Por isso, acabam sendo pacíficos.
Saito assentiu em silêncio, enquanto Kevin continuava:
— A maioria dos comerciantes nem se dá o trabalho de vir até lugares assim. Não há muitos compradores, não há movimento. Tudo aqui é local, simples. A gente só veio porque o contrato nos trouxe, mas aventureiros raramente passam por aqui. Se for pra fazer dinheiro, é melhor ir para um centro movimentado como Icca.
À medida que se aproximavam, a vida pacata do vilarejo começava a se revelar: algumas crianças corriam descalças por entre as casas, rindo alto, enquanto dois idosos conversavam sentados em um banco sob a sombra de uma árvore frondosa. Ao avistarem a carruagem se aproximando, os moradores pararam o que estavam fazendo e começaram a cochichar, com olhares curiosos e desconfiados.
Visitantes eram raros por aquelas bandas. Uma carruagem desconhecida cortando o vilarejo era, para eles, quase um acontecimento extraordinário — algo que se comentaria por semanas na feira local.
— Lá vamos nós… — murmurou Leiana, ajeitando o cabelo e esticando o pescoço como se se preparasse para uma apresentação.
— Pronto, chegamos — anunciou Kevin, puxando levemente as rédeas dos cavalos até que a carruagem parasse diante da praça central do vilarejo.
Um silêncio quase pastoral dominava o lugar, interrompido apenas pelo trotar suave dos cavalos e o murmúrio curioso de alguns moradores. Os companheiros já haviam descido da carruagem e aguardavam do lado de fora, olhando em volta com atenção e expectativa.
— Vou procurar um local seguro para estacionarmos a carruagem e deixar os cavalos — disse Kevin, lançando um olhar de comando para o grupo. — Enquanto isso, quero que se dividam em duplas para começarmos os trabalhos.
Ele apontou com o queixo para Tuare e Leiana.
— Vocês duas, vejam se conseguem encontrar uma pousada decente onde possamos passar a noite. Deem preferência a um lugar discreto, mas confortável.
As duas assentiram, prontas para a tarefa.
— Saito, Little Girl — continuou ele, voltando-se para os dois — quero que conversem com os moradores. Qualquer informação sobre movimentos estranhos, criaturas nas redondezas ou até mesmo rumores de um troll já vai ser útil.
Kevin cruzou os braços, olhando para todos com seriedade.
— Ainda não temos ideia de onde essa criatura está, então cada pista, por menor que seja, pode fazer a diferença. Depois que concluírem suas tarefas, nos encontramos novamente aqui, no centro da vila. Aí discutimos os próximos passos.
— Certo! — respondeu o grupo em coro, com energia renovada.
Sem perder tempo, cada dupla seguiu em sua missão. Tuare e Leiana caminharam rumo a uma ruazinha estreita entre as casas, conversando baixo sobre possíveis hospedagens. Saito e Little Girl tomaram o caminho oposto, olhos atentos ao redor, em busca dos primeiros aldeões dispostos a falar.
Kevin ficou para trás, observando os companheiros se dispersarem entre as vielas simples do vilarejo. Com um leve sorriso, passou a mão com carinho no pescoço de um dos cavalos, que relinchou suavemente.
— Acho que estamos melhores do que antes… — murmurou, quase para si mesmo.
E era verdade. Apesar da constante sombra que os “Pecadores” lançavam sobre eles, esta missão tinha sido diferente. Menos tensão, mais companheirismo. Pela primeira vez, Kevin sentia que estavam começando a funcionar como um grupo de verdade — não apenas aventureiros reunidos por conveniência, mas aliados com um propósito comum.
Ele ainda sentia o peso do fim do mês se aproximando, como uma pedra no fundo do estômago, mas havia, naquele momento, uma centelha rara de esperança. Talvez, só talvez, estivessem começando a construir algo mais sólido — um vínculo, uma direção, um futuro.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.