Capítulo 145 - Duplas
As ruas do vilarejo pacato eram silenciosas, pontuadas apenas pelo som suave dos passos das duas garotas e pela brisa leve que balançava os estandartes desbotados das casas. À medida que caminhavam, o sol da tarde banhava as construções simples com uma luz dourada, tornando o cenário quase sereno demais para a tensão que carregavam nos corações.
A conversa entre Tuare e Leiana já havia mudado de assunto algumas vezes, saltando de trivialidades a observações sobre o vilarejo. Mas, como sempre, Leiana decidiu apimentar o clima com um sorriso travesso no rosto.
— Entãooo… como está indo a sua relação com o Kevin, Tuare?
Tuare, que estava distraída observando uma pequena horta em frente a uma casa, parou por um breve instante, pegando a pergunta no contrapé.
— Nossa relação? — repetiu, franzindo o cenho, desconcertada. — Você sabe que somos só amigos…
— E até agora não rolou nenhum avanço? Nenhuma conversa sobre… “aquilo”? — Leiana perguntou com malícia evidente, mal conseguindo disfarçar a curiosidade vibrando em sua voz.
Tuare desviou o olhar.
— “Aquilo”…? — murmurou, já sabendo muito bem do que a amiga estava falando, mas se recusando a encarar o peso da lembrança de imediato.
O que Leiana chamava de “aquilo” era um dia que Tuare preferia manter enterrado no passado. Um dia em que, durante uma conversa acidentalmente ouvida, Kevin deixara claro a Saito que não tinha qualquer intenção de se envolver romanticamente com ela. Naquele momento, todas as esperanças silenciosas que Tuare alimentava se desmancharam como vidro despencando no chão. Mesmo sabendo, no fundo, que Kevin sempre fora mais reservado e contido, ouvir aquelas palavras arrancou dela a ilusão de que talvez houvesse algo entre os dois. Ela fugiu com os olhos marejados e o coração despedaçado.
Desde então, aquele dia se tornou um tabu silencioso entre os dois. Nenhum deles tocou mais no assunto. Seguiram em frente como se nada tivesse acontecido, como se o silêncio pudesse apagar a dor.
— Até agora… a gente não conversou sobre aquele dia — confessou Tuare, a voz baixa e carregada de desânimo. Seus ombros se curvaram um pouco mais, como se as lembranças tivessem peso físico. — Mas agora não dá pra ficar pensando nisso. Com os Pecadores no nosso encalço, estamos praticamente com uma lâmina no pescoço… Não dá pra perder tempo com sentimentos e essas coisas de relacionamento, sabe?
Leiana soltou uma risadinha debochada, com um olhar de quem enxerga muito mais do que a amiga está disposta a admitir.
— Você fala isso, mas tá doidinha pra falar com ele.
— S-sua…! — Tuare gaguejou, vermelha, batendo de leve no ombro da amiga, envergonhada.
Leiana parou de andar por um instante e virou-se para ela, ficando mais séria.
— Tuare, você precisa fazer alguma coisa. Não dá mais pra deixar tudo pra depois. A gente não sabe o que vai acontecer até o fim do mês. Não podemos nos arrepender por ter ficado caladas, por não termos dito o que queríamos… ou feito o que deveríamos.
Sua voz começou forte, mas à medida que falava, foi perdendo firmeza, se transformando em algo mais vulnerável.
— Leiana…? — Tuare a chamou, notando a mudança no tom.
Um sorriso se abriu no rosto de Leiana, ainda que seus olhos estivessem um pouco marejados.
— Eu pedi meu namorado em casamento.
— O quê?! Você… você pediu ele?! — Tuare arregalou os olhos, surpresa, quase esquecendo o que estavam fazendo ali.
— Sim — respondeu ela com simplicidade, como quem tira um peso do peito. — Ele não ia pedir. Dizia que ainda era cedo, que a gente precisava esperar… mas, bom, você sabe. A gente pode morrer depois do fim do mês. E se isso acontecer, pelo menos vou morrer sabendo que tentei. Que não deixei nada importante por dizer.
As palavras de Leiana ficaram ecoando na cabeça de Tuare por alguns segundos, profundas, cruas e reais. Elas pareciam cortar mais do que confortar — e talvez fosse exatamente isso que ela precisava ouvir.
⧫⧫⧫
Little Girl e Saito caminhavam lado a lado pelas ruelas tranquilas do vilarejo, o som de seus passos abafado pela terra batida e pelas vozes dos moradores ao longe. Durante os minutos em que investigaram sobre o troll, apenas Saito realmente se dedicava a conversar com os habitantes. A garota, como de costume, permanecia em silêncio, logo atrás dele, observando cada movimento com um olhar atento, porém reservado.
Ela não era do tipo que puxava assunto. Suas palavras eram tão raras quanto diretas, e por isso o trabalho de coleta de informações ficou inteiramente nas mãos de Saito.
— Ahh… — suspirou ele, encostando o ombro numa parede de madeira envelhecida após terminar de falar com mais um morador. — Quem devia estar fazendo isso era o Kevin… Ele sim é bom em lidar com as pessoas…
— Hm… — murmurou Little Girl, encarando-o por um breve instante antes de virar o rosto, desviando o olhar como se suas próximas palavras não fossem importantes. — Você não está indo tão mal assim.
Saito piscou, surpreso.
— Isso foi… um elogio? Você me elogiou?!
— Não foi um elogio! — rebateu ela na mesma hora, franzindo a testa e cruzando os braços. — Você não merece elogio!
Saito riu baixinho, divertido pela reação exagerada dela, que claramente tentava esconder um leve embaraço.
Após um curto descanso, retomaram a busca. Com o tempo, conseguiram reunir algumas informações cruciais: o troll realmente não havia atacado diretamente o vilarejo, mas havia sido avistado nas proximidades por algumas pessoas. Assustados, os moradores haviam enviado um pedido de ajuda à guilda, solicitando uma execução. A recompensa, no entanto, era baixa — reflexo da condição econômica do vilarejo.
Provavelmente por isso a missão ainda não havia sido aceita por nenhum outro grupo. Zepelin, percebendo a situação, decidiu usar o caso como teste para Saito. Para ele, não era apenas uma missão de caça, mas um desafio pessoal. Além do monstro, havia toda a negociação envolvida com Zepelin, e principalmente, o acordo para garantir a proteção de sua família.
Depois de algumas horas de investigação, ambos concordaram que já tinham reunido informações suficientes — ou melhor, Saito havia reunido. Agora, seguiam pelas ruas estreitas de volta ao ponto de encontro marcado por Kevin.
Durante toda a tarefa, nenhum dos dois mencionou o acontecimento do dia anterior. O silêncio sobre o assunto era quase confortável. Ainda assim, Saito percebeu uma leve mudança na forma como Little Girl o tratava. Menos distante, talvez. Menos fria.
Enquanto dobravam uma esquina e atravessavam uma viela apertada entre duas casas de pedra, Saito acabou esbarrando em alguém. Era uma figura encapuzada, envolta num manto negro.
— Ah, me desculpe. — disse ele, instintivamente.
— Tudo bem. — respondeu a figura com uma voz feminina, fria e impassível.
Foi nesse instante que tudo aconteceu.
Um raio cortou o ar, disparado em altíssima velocidade na direção da mulher encapuzada. Ela girou o corpo num movimento preciso e ágil, desviando por pouco do ataque. A explosão do feitiço atingiu o chão logo atrás dela, levantando fumaça escura e poeira.
Com o impacto, o capuz caiu, revelando o rosto da mulher: jovem, de cabelos negros lisos e uma beleza quase hipnotizante — fria como gelo.
— Você é muito ingênuo, Saito. — disse Little Girl, já com seu cajado em punho, apontado diretamente para a desconhecida. Sua voz carregava uma acusação contida, misturada a um toque de impaciência.
Saito nem sequer teve tempo de reagir ao ataque dela. O disparo fora tão repentino, tão veloz, que ele mal compreendeu o que estava acontecendo até ver a cratera fumegante no chão. A garota à sua frente, porém, não parecia abalada. Pelo contrário — seus olhos demonstravam calma absoluta.
Com um movimento fluido, ela sacou uma espada e a apontou na direção deles.
Saito arregalou os olhos. Por um instante, o mundo pareceu parar. Ele reconheceu aquela arma — não havia como não reconhecer.
Era a sua espada.
Instintivamente, levou a mão à cintura e sentiu o vazio onde deveria estar a bainha. Seu corpo ficou tenso. O ar ao redor parecia mais pesado de repente.
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