Capítulo 15 - Jogo de Paciência
GolbZedh deixou sua casa ao amanhecer, determinado a aproveitar a feira no vilarejo mais próximo. O reino dos elfos, vasto e diverso, era formado por quatro grandes cidades: três delas pertencentes aos elfos e uma ocupada pelos elfos negros.
Além dessas grandes cidades, havia uma infinidade de vilarejos espalhados pelo território, pequenos assentamentos que prosperavam nas margens da densa floresta de Abelium. Diferente das grandes cidades, estrategicamente erguidas a uma distância segura da floresta, esses vilarejos viviam em sua sombra, quase como se fossem parte dela.
GolbZedh não residia no vilarejo propriamente dito, mas sim em uma casa isolada, escondida entre as árvores. Periodicamente, quando seus mantimentos acabavam, ele precisava fazer o caminho até o vilarejo mais próximo para reabastecer seus suprimentos.
A cada mês, uma pequena feira tomava vida no coração do Vilarejo Bion, um evento aguardado por muitos.
Ali, os moradores locais ofereciam uma diversidade de produtos — comida fresca, ferramentas, e até itens peculiares que só alguém que vive na fronteira da floresta poderia fabricar. Durante a feira, os preços caíam graças aos descontos generosos dos lojistas, tornando-a essencial para aqueles com poucos recursos.
Famílias inteiras costumavam abastecer-se ali, comprando suprimentos suficientes para durar até a próxima feira.
O Vilarejo Bion, maior que muitos outros, tinha sua própria reputação. Embora não chegasse ao porte de uma cidade, sua feira atraía gente de todos os cantos. A variedade e a qualidade das mercadorias eram irresistíveis, e o burburinho das pessoas enchendo as ruas era quase tão constante quanto o vento entre as árvores.
GolbZedh caminhava entre as barracas lotadas, equilibrando o peso de uma mochila carregada de legumes e outra nas costas, cheia de ferramentas recém-compradas. Ele observava o vai e vem das pessoas, o aroma de pão assado e especiarias flutuando no ar, quando dois elfos passaram ao seu lado, suas vozes firmes contrastando com a agitação ao redor.
Vestiam armaduras impecáveis, o emblema reluzente de cavaleiros sagrados gravado nos uniformes. A presença deles parecia abrir espaço na multidão, o ar ficando mais denso e pesado. GolbZedh os observou por um instante, o olhar atento de quem sabe que algo importante sempre está por trás de discussões tão acaloradas.
— Já é a quarta vez que passamos por essa vila… que saco — reclamou um dos elfos, a voz carregada de tédio. Ele arrastava as palavras, como se até falar fosse um esforço desnecessário.
Seu companheiro estalou a língua, lançando-lhe um olhar de reprovação. Era evidente que ele não tinha paciência para as lamúrias alheias.
— Você sabe como é — respondeu com um tom seco, quase como se recitasse algo que já dissera inúmeras vezes. — Os capitães estão sob pressão dos nobres. Precisam encontrar o elfo negro que assassinou os pais adotivos. Já checaram a cidade de elfos negros e não encontraram nada. Ele também não está em nenhuma das cidades grandes. Faz sentido procurar em vilarejos como este.
— Eu sei, eu sei — retrucou o primeiro, levantando uma mão em sinal de rendição. — Mas ainda assim, é um saco. Todo mês mandam uma equipe pra esses vilarejos, sempre durante as feiras. Você sabia que tem gente que já foi deslocada das cidades pra cá umas oito vezes? Oito!
Ele gesticulava com exagero, como se quisesse que o mundo inteiro compartilhasse sua indignação. Enquanto falava, sua frustração parecia ecoar algo mais profundo: um cansaço com a própria vida que levavam.
Os elfos das cidades grandes viviam num mundo completamente diferente dos que habitavam vilarejos como aquele. Os camponeses e artesãos que povoavam essas pequenas comunidades tinham pouco em termos de bens materiais, mas ainda assim viviam com um senso de propósito que muitos invejavam.
Nas cidades grandes, o luxo e o poder financeiro criaram outra realidade. Mesmo aqueles que levavam uma vida modesta nas metrópoles ainda estavam alguns degraus acima dos que viviam nos vilarejos. Mas havia uma exceção gritante: Infra, a sombria cidade dos elfos negros.
Infra era um abismo. Um lugar que sugava a esperança e esmagava os que ali viviam. Era raro alguém escapar de suas garras. Para muitos, era uma prisão sem muros, mas com correntes invisíveis tão reais quanto qualquer cela de pedra.
O primeiro elfo bufou, chutando uma pedra no caminho, enquanto o segundo apenas seguia em silêncio, os olhos atentos ao redor. Para eles, a diferença entre as vilas e as cidades não era apenas econômica. Era um lembrete cruel de onde pertenciam — e para onde não poderiam escapar.
Tiko, o elfo negro procurado por todo o reino, provavelmente nasceu em Infra. Era o que GolbZedh imaginava, afinal, Tiko é um elfo negro. Mas, diferente de muitos, algo aconteceu na vida de Tiko que poderia ser descrito como um milagre.
Ele foi abandonado — ao menos, era o que parecia. Um bebê largado perto de um rio, enrolado em um pano, nos arredores de uma cidade grande de elfos.
Dois elfos, conhecidos de GolbZedh, o encontraram. Kalarik e Dina. Eles acolheram a criança e a criaram como se fosse seu próprio filho. Kalarik era um médico renomado, conhecido por salvar vidas com suas invenções farmacêuticas brilhantes. Dina, por outro lado, fazia parte de uma equipe de elite dedicada ao estudo do abismo da magia, buscando compreender e expandir seus limites.
Ambos eram pessoas extraordinárias — gentis, inteligentes, com um passado em comum que os moldou. Quando jovens, em uma viagem de carruagem entre cidades grandes, os dois sofreram um acidente grave. Teriam morrido, se não fosse pela intervenção de um elfo negro.
Ele os salvou, sem pedir nada em troca. Aquele ato mudou a forma como Kalarik e Dina enxergavam os elfos negros, desafiando os preconceitos que a sociedade lhes impunha desde o nascimento.
GolbZedh, como amigo próximo do casal, não permaneceu imune a essa mudança. Convivendo com eles, seus próprios pensamentos começaram a se transformar.
Com o tempo, ele percebeu que a superioridade que muitos elfos acreditavam ter sobre os elfos negros era uma ilusão cruel. E mais: enxergou que os elfos, como raça, replicavam com os elfos negros as mesmas injustiças que eles próprios sofriam nas mãos dos humanos.
Os elfos negros eram forçados a viver em Infra, uma cidade esquecida e miserável, construída para restringi-los.
Eram tratados como escória, insultados, cuspidos, e, por vezes, espancados em público nas cidades grandes.
Qualquer possibilidade de ascensão era esmagada pelo medo de que, um dia, os elfos negros pudessem tomar o que os elfos consideravam seu por direito.
No final das contas, GolbZedh viu que os elfos repetiam com os elfos negros o mesmo ciclo de opressão que tanto desprezavam nos humanos. A única diferença era a direção em que apontavam o dedo.
Kalarik e Dina também carregaram suas próprias cicatrizes. GolbZedh ainda podia lembrar claramente das noites em que os dois batiam à sua porta, os olhos pesados e os ombros curvados pelo cansaço.
Eles falavam de Tiko, o filho que amavam tanto, mas cuja existência parecia ser um constante desafio em meio à hostilidade de uma cidade de elfos. Não era o menino que lhes causava dor, mas sim o mundo ao seu redor.
Dina, em particular, era frequentemente consumida pela culpa. Havia momentos em que suas palavras quebravam no meio, as lágrimas enchendo seus olhos enquanto confessava que, antes de ser salva por um elfo negro, ela mesma já fora como os outros — arrogante, cheia de preconceito. Isso a corroía por dentro.
Conforme Tiko crescia, o ódio da cidade crescia junto. E não demorou para que esse ódio deixasse de ser apenas contra ele e passasse a atingir também sua família. Cartas ameaçadoras, insultos lançados em público, sussurros que os seguiam a cada esquina.
O medo se tornou uma presença constante, especialmente por Jack, o filho de sangue, que começava a entender o perigo ao seu redor.
GolbZedh, vendo o cerco se fechar, sugeriu que enviassem Tiko para Infra, a terra dos elfos negros. Talvez lá ele estivesse seguro, longe de olhos preconceituosos. Mas Kalarik e Dina recusaram, quase sem pensar. Para eles, Infra não era uma opção — não para Tiko.
Ele havia sido criado entre os elfos, em uma vida completamente diferente daquela que esperava por ele em Infra. Ali, onde o governo mal conseguia proteger seus próprios cidadãos, Tiko estaria perdido, vulnerável.
Sem alternativas, continuaram a protegê-lo como podiam.
Até que a tragédia os alcançou.
Kalarik e Dina foram assassinados dentro de casa. Tiko nunca deu detalhes sobre o que aconteceu naquela noite. Ele simplesmente apareceu na porta de GolbZedh, arrasado, o corpo tremendo, o olhar vazio. Não havia muito que ele pudesse dizer. Apenas que, nos últimos instantes de vida, Kalarik usou suas últimas forças para dar uma ordem: “Vá até GolbZedh. Lá você estará seguro.”
Tiko não faz ideia de quem matou seus pais e ainda por cima, ele foi taxado como criminoso e agora está foragido por todo o reino. Agora ele mora na casa de GolbZedh e se esconde por lá.
O elfo idoso sai para comprar os suprimentos, já que Tiko não pode ficar dando as cara por aí, e Tiko aproveita que mora ao lado da floresta de Abelium para caçar para ambos.
Tiko não fazia ideia de quem havia matado seus pais. Pior ainda, fora acusado do crime e agora era um fugitivo procurado por todo o reino. Escondido na casa de GolbZedh, ele vivia nas sombras, evitando qualquer exposição. O elfo idoso era quem saía para comprar suprimentos, enquanto Tiko aproveitava a proximidade da floresta de Abelium para caçar, garantindo que ambos tivessem o que comer.
Embora Tiko jurasse não saber por que Kalarik e Dina foram assassinados, GolbZedh tinha suas próprias teorias, e elas pareciam fazer sentido. Talvez algum nobre — possivelmente um dos que haviam ameaçado a família no passado — tivesse ordenado o ataque. Mas por que matar Kalarik e Dina e não apenas Tiko? Essa pergunta atormentava GolbZedh.
Ele refletia: matar Tiko diretamente seria uma solução simples, mas pouco eficaz para os objetivos de quem tramou tudo isso. Se Tiko morresse, Kalarik e Dina poderiam se revoltar e levantar ainda mais problemas contra a elite.
Ao assassinar os pais e incriminar Tiko, a mensagem transmitida era muito mais clara, muito mais venenosa: “Elfos negros são perigosos.”
Agora, os boatos corriam soltos pelas cidades élficas. A história do jovem elfo negro, acolhido por uma família bondosa que lhe deu tudo — amor, abrigo, proteção —, mas que, em troca, teria matado os pais a sangue frio antes de fugir, apenas reforçava os preconceitos mais arraigados.
A narrativa era cruel, mas eficaz. Os nobres conseguiram o que queriam: eliminar uma família incômoda e alimentar o medo e o ódio contra os elfos negros.
Enquanto isso, os cavaleiros encarregados da busca de Tiko não conseguiam esconder a frustração.
— Onde diabos esse desgraçado está escondido? — perguntou um deles, franzindo a testa com evidente irritação. — Ele não foi encontrado em Infra, não apareceu em nenhuma cidade grande e nem sequer foi visto comprando comida nesses vilarejos. Isso não faz sentido!
— E se ele estiver morto? — sugeriu outro, com um tom quase cínico.
— Aí é que eu fico puto! — respondeu o primeiro, com uma explosão de raiva. — Estamos gastando tempo caçando um fantasma? É isso?!
O que os cavaleiros não sabiam era que Tiko continuava vivo graças a GolbZedh. O velho elfo fazia questão de manter um perfil discreto, comprando o necessário para os dois. Tiko raramente saía de casa, e quando o fazia, era apenas para se aventurar na floresta ao lado, longe dos olhos curiosos de qualquer um.
Era um jogo de paciência e estratégia. Enquanto permanecessem escondidos, fora do alcance dos nobres e de seus lacaios, Tiko e GolbZedh conseguiriam sobreviver — ao menos por enquanto.
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